O Terceiro Grau (Baseado em fatos reais)
O Terceiro Grau
“Nossa luta não é contra a carne e o sangue,
e sim contra as hostes espirituais da maldade nos lugares sobrenaturais.” São Paulo aos Efésios.
Como uma pluma descia do céu. Asas douradas refulgiam em glória. Vestes brilhavam como o bronze polido exposto ao sol. Longos cabelos castanhos incendiavam o rosto perfeito e magnífico, que, transmitiria serenidade e seriedade ao mais perverso e inumano ser. Ao pousar na Terra seu esplendor diminuiu. Os olhos, globos de safira, sabiam o que queriam. As roupas, que cobriam um corpo perfeitamente musculoso, eram uma túnica dourada presa a um cinturão de bronze sobre uma calça cáqui coberta de ouro em pó. Parecia calçar estrelas, pois, suas botas, da mais pura prata lustrada brilhavam. Tanto vestimenta como pele fulguravam como o nascer do sol em miniatura.
- Olá Elkron.
- Olá Sawel. Onde está o garoto?
- Levarei-o até ele.
Sawel era tão magnífico quanto Elkron. Um Samurai Angélico, cabelos negros em rabo de cavalo, olhos negros e puxados. No cinturão uma cimitarra azul-metálico com o corte dourado reluzia e vibrava levemente. Quando em batalha transformava-se em puro diamante e como fogos de artifício emanavam glória e força.
- Você recebeu ordens de Miguel?
- Sim.
- O garoto precisa ser assistido o tempo todo. Quererão matá-lo. O General não permitirá.
- Estarei com ele todo o tempo.
- Não deve lutar com eles Elkron. Quando precisar chame-me. Tome. Use isso.
Estendeu o musculoso braço entregando uma trombeta feita em uma única peça de rubi.
- É a trombeta de Elohim. Gabriel pediu que te entregasse. Ele está na Pérsia.
- Minhas ordens são apenas para assisti-lo. Não defendê-lo.
- Sim Elkron. Sua presença inibe a ação deles. Você é o mais fulgurante de nós todos. Foi criado e designado para ocasiões como essa. Sua presença já é uma defesa.
- O Senhor sabe o que faz. Vamos?
Como águias chamejantes riscavam o céu na velocidade dos cometas. Um rasto prateado e pipocante fora deixado como aviso aos outros.
Lá embaixo. Nas profundezas, dois olhos reptilianos, semicerrados, vermelhos com riscos negros olharam para cima. “O exército celestial...” – A voz líquida, pastosa, rouca e apodrecida. Quando respirava, além de chiar, exalava um filete de fumaça sulforosa, amarelada.
A criatura disforme e negra engolia a luz. Ao seu redor trapos encardidos e nodosos avermelhados, enegrecidos e amarronzados, como os elétrons de um átomo adoentado, esvoaçavam. Um deles soltou-se. Planou para longe da criatura. Pousou na copa da árvore do clube. Cresceu. Inflou.
- Olha pai!
- Ah! É um macaco!
- Não pai! É um ninho!
- Para mim é um macaco!
- Não tem rabo ou braços! Não tá vendo que é um ninho?
- Ah! Parece... Mas, eu acho que é um macaco! – Brincando com a filhinha de três anos.
Ambos estavam enganados.
Aquele corredor era maligno. Algo se escondia lá.
- Mãe, minha cama se meche de noite! – A garota reclamou.
- É você quem está sonhando minha filha. Não é nada.
Elkron e Sawel chegaram. A entidade maligna, ao vê-los sorriu. Os dois somente o olharam. Ignorando-o como um inseto.
- O garoto é aquele ali Elkron.
- Eu sei. Sua aura é muito brilhante.
Neil tinha quatro anos. Era o penúltimo da família, seguido de Pedro, um ano, o caçula. A mais velha, Tâmia, dormia no corredor e era sua cama que se mexia de noite. Depois Joel e por fim Cloe, antes de Neil e Pedro. Filhos de um pai e marido alcoólatra dona Gê sofria muito. Como pai era muito legal, nunca maltratou os filhos, mas, como marido...
O menininho não sabia explicar, mas, sentia muitas vezes o ar carregado. Principalmente no corredor. Detestava brincar lá.
Numa das noites...
- Mãe, por que o pai está colocando as nossas coisas no caminhão?
- Vamos embora dessa casa filho.
Sua cabeçinha não entendeu nada.
Sobre o caminhão, acompanhando-o, duas asas fulguravam na escuridão. Embaixo do veículo o ser negro se escondia. “Maldita luz!”
Chegaram.
- Mãe! Que casa é essa?!
- Vamos morar aqui agora filho.
- Tô com medo! É muito escuro!
- Calma, o pai vai dar um jeito.
Deu. No dia seguinte havia luz. Do dia.
O garotinho acordou ao lado de sua mãe, que, como um pássaro acolhe sua ninhada, estava com os outros três ao lado e um no colo.
O casebre abandonado era herança de família. Tinha um terreno enorme ao redor. Estava imundo, sem luz ou água. O telhado apodrecido, nunca consertado, permitia generosa visita da chuva. O banheiro era uma saleta escura sem pia ou chuveiro. O vaso entupido foi resolvido com martelo e talhadeira. Descarga não existia. Necessário baldes de água também para os banhos. Papel higiênico: jornal rasgado.
Não pense que isso era na roça ou numa cidade distante. Não! Era num bairro muito popular e urbanizado da cidade grande. Tão grande quanto a falta de vergonha na cara do pai em dar um pouco mais de conforto à sua família.
Neil se mudou para aquela casa horrorosa quando contava com cinco anos. Seu pai, velhaco desde a juventude, fez a família sair de noite para não acertar com ninguém o que devia. Nove horas da noite. Escuridão total na velha e imunda morada nova. O chefe da família não teve a pachorra de ir antes ver o local para verificar, no mínimo, água e luz.
Uma casa abandonada e sem luz era um pesadelo na mente de um garoto de cinco anos!
As crianças possuem uma capacidade de adaptação muito mais eficiente que os adultos. Ao raiar do dia vislumbraram um mundo novo. O quintal enorme, o barracão, a pequena plantação de milho, mais três cômodos inexplorados e repleto de enigmas.
A aventura começou.
- Olha Joel! Um cofre!
- Veja ali uma mala!
- Cloe! Olha dinheiro!
- É dinheiro antigo Neil.
- Legal! Vamos brincar!
- Joel! Achei discos!
Tiveram uma infância espetacular naquela casa que aos poucos se tornara um lar. Tâmia, muito esforçada, trabalhava e trazia mais dinheiro que o pai. Os menores brincavam muito o dia inteiro. A matriarca gostava de criar bichos. Patos, galinhas, cachorros e gatos eram comuns. A cadela mais incrível de todas viveu e morreu naquela casa. Sua trágica morte trouxe um clima pesado e melancólico. Parecia um velório de gente.
Elkron sempre presente dia e noite. Sempre brilhando.
Rodeando a casa a entidade maligna queria atormentar.
Era uma manhã fria de inverno. Os dois amigos estavam no barracão. Era fechado grosseiramente com tábuas e placas de zinco. Perto da porta havia uma abertura de modo que os de dentro poderiam ver os pés do recém chegado.
- Estou sentindo algo estranho Timba!
- O que é?
- Sei lá! Um medo repentino.
- Deve ser impressão sua Neil.
- Não. Não é impressão.
Neil olhou para as tábuas velhas e placas de zinco enferrujadas e trincadas. Alguém os observava. Na frente do barracão havia uma fossa improvisada coberta com compensado. Rangia sob o peso dos pés.
- Timba! Tem alguém lá fora! No quintal!
- Será sua mãe?!
- Não! Ela está trabalhando e meus irmãos estão na escola.
Um vento forte soprou. Pés peludos e apressados foram vistos de relance na abertura ao lado da porta. Correram. Os garotos se alarmaram. Armaram-se com paus e foram verificar. Nada. Entreolharam-se. E correram esbaforidos para a rua.
Todos dormiam tranquilamente. Joel, o mais velho dos irmãos que sempre dormia com uma roda de rolimã sobre o travesseiro, acordou. De sua cama podia ver a cozinha. Algo se movia sobre a mesa.
- O que é isso?! – Firmando os olhos para ver direito.
Uma fumaça amarronzada dançava em cima da mesa. Estava tomando a forma de um homem.
Joel continuou a olhar intrigado. O medo não o apanhou.
A fumaça transformou-se num velho. Usava chapéu e uma calça de couro cheia de tiras nas extremidades. Duas pistolas descansavam nos coldres. Os olhos vazios frios o olhavam.
Instintiva e lentamente pegou a rolimã. Arremessou-a como uma bola de baseball. Girou no ar com graça e precisão. Atravessou o peito do cowboy, abrindo uma generosa fenda. O espectro sorriu, olhou para o lado e viu Elkron encarando-o. Esmaeceu. Joel não dormiu mais naquela noite.
Dona Gê ainda maltratada pelo marido buscava conforto nas missas. Neil sempre a acompanhava. Não sabia direito, mas, parecia ser portador de um radar espiritual que o alertava de presenças etéreas e malignas.
Na adolescência, saindo da missa de domingo com sua mãe, uma das irmãs o parou para cumprimentá-los.
- Oi Gê!
- Oi Wal.
Ela olhou para Neil. Ele a encarou embaraçado. Ao lado dele e muito grande, Elkron cumprimentou o companheiro com cabelos de fogo que acompanhava a moça.
- Rapazinho! – Disse ela sorrindo - Vejo uma pomba branca pousando sobre sua cabeça! Você tem o dom!
- Amém Wal. Amém. – Respondeu a mãe. Neil sorriu sem graça. Elkron e o companheiro sorriram com prazer e beleza.
Seu desejo era se tornar clérigo. Iniciou sua carreira como coroinha.
Gostava muito de ler. Principalmente histórias fantásticas. Aos dezesseis amava King, Poe, Maupassant, Kafka e Lovecraft. Leu Bram Stocker, Mery Shelley, Stevenson. Filmes de terror eram um banquete ! Vampiros era sua maior obsessão. Nessa época iniciou suas leituras sobre Teologia, onde conheceu o lado cristão de ver o mal. Aos dezoito foi para o seminário.
Seu pai morrera há alguns anos, a cirrose devorou seu fígado. Tâmia, a mais velha, juntamente com a mãe e Cloe sustentavam a casa. Neil ajudava no que podia, pois bancava seus estudos. Todos estavam orgulhosos em ter um irmão seguindo a carreira clerical.
- Para mim é um absurdo! Uma petulância sem precedentes estudar Deus! Como temos a ousadia de estudar a Deidade Suprema! Teologia? Estudo de Deus?!!?! Mestrado em Divindade!? Francamente acredito que...
- Professor! – Interrompendo o docente de Teologia Sistemática.
- Diga Neil.
- Discordo do senhor. O Altíssimo revelou-se em Sua Palavra, a Bíblia. Revelou-se na História dividindo-a em antes e depois. Não acredito ser petulância e sim humildade. Ele se Revelou para que O conhecêssemos. E ainda declarou: “A vida eterna é essa, que te conheçam a ti ó Deus”.
- Sim, meu caro jovem, sei que...
- Revelando-se gradativamente, após a Queda, ordenou que tivéssemos um relacionamento com Ele. É mais que natural que o estudemos. Para mim é um prazer saber sobre Ele para o senhor não?!
- Entendo seu ponto de raciocínio prezado aprendiz. O que eu quis dizer é que... O que foi que disse mesmo?
Os outros seminaristas gargalharam. A aula acabou.
- Neil! Pega leve com o homem! Ele é o mais tradicional dos professores!
- Sim Eclésio, tradicionalmente burro! Ele é professor de Teologia Sistemática e nunca falou nada sobre a Revelação Progressiva ou a Revelação Messiânica no Velho Testamento!!
- É. Tenho que concordar com você. Estudou o Aoristo e as Declinações?
- Sim. Você ainda não entendeu?
- Bem, Línguas Originais não é meu forte...
- Eclésio, é o seguinte, Aoristo é parecido com o nosso particípio.
- O que é particípio?
- Ai, ai...
Neil, melhor aluno da classe. Lia muito. Santo Agostinho, Lutero e Calvino eram seus heróis. Amava a Teologia Sistemática e Geografia Bíblica. Aluno aplicadíssimo. Sua menor média era 8,5.
- Como podemos entender a Eleição? Deus elegeu alguns e reprovou outros? Faria Ele, acepção de pessoas? Digo e confirmo, sou Arminiano e não acredito que um Deus todo amor e graça condena, simplesmente por sua vontade, pessoas ao inferno! _ O professor de Soteriologia discursava até que um dos alunos levantou a mão.
- Pois não... Neil não é?
- Sim. Acredito que a Eleição é incondicional professor.
- Para mim é arbitrária e muito comodista.
- Deus tem obrigação de salvar alguém?
- Bem...
- Deus tem o direito de escolher salvar?
- Claro que tem...
- De acordo com Efésios capítulo 1 Ele olhou para quem para eleger?
Professor abrindo a bíblia...
- Eu digo professor. Ele olhou para si mesmo. Não olhou os mortais e disse esse eu quero, esse eu não quero. Foi incondicional. Olhando para si mesmo denota que ele usou todo seu potencial amoroso, pois sua essência é amor. Eleição, portanto não é arbitrária, indigna. Antes é amorosa e fruto da misericórdia. Deus não tem obrigação de salvar ninguém. Dos condenados Ele decidiu salvar alguns.
Na sua simplicidade estudava muito. Lia várias obras chegando a conclusões próprias. Nessas ocasiões lembrava-se da pomba branca.
Sendo um excepcional aluno, tornava-se sempre o líder do grupo. Ajudava professores a corrigirem provas. Alguns mestres sentiram-se ameaçados pelo aprendiz, reclamaram com o Bispo. Fora chamado ao temido Gabinete.
Nas aulas que se seguiram, calou-se. Apenas ouvia.
Noite chuvosa aquela. Blackouteou o bairro todo. Em frente à sua casa havia uma favela. Era bem conhecido e chamado de padre. Ouviu alguém chamando.
- Olá! Sou eu Neil!
- Padre Neil? Pode me ajudar?
- Claro que sim. O que houve?
- Minha esposa padre! Ela... Está... Com espíritos...
- Minha nossa! Não posso conduzir exorcismos ainda...
- Padre... Por favor... – Lágrimas nos olhos do homem.
Precisava de autorização do Bispo. Talvez, autorização expressa do Cardeal Diocesano. Certas ocasiões até o Papa era consultado. Nem havia terminado os estudos ainda. A Ordem Sagrada tinha normas e hierarquia. Exorcismo somente no Terceiro Grau da Ordem. Não estava nem no Primeiro!!!
Seu coração encheu-se de misericórdia. Ao seu lado, invisível, uma mão brilhante pousou. “Coragem meu amigo! Você consegue!”
Quase 23:00h de uma chuvosa sexta-feira. O bairro em blackout. O exorcismo seria na favela.
Neil entrou no cubículo de barro batido. Pressentiu uma presença maligna não tão poderosa . Marrie estava deitada na cama com os braços cruzados no peito. Os polegares estavam presos entre o médio e o indicador, fazia duas figas com as mãos. Olhos fechados.
Elkron abriu suas asas dourando o ambiente. Olhou para a criatura dentro da mulher, falou nada.
Dentro da possuída a hediondez retorcia-se, odiava àquela luz amaldiçoada. A coisa era uma massa peluda e fedorenta. Pele toda enrugada e escamosa embaixo dos pelos negros ridículos. A carranca escorria uma gosma acinzentada, dois buracos eram seus olhos, sem nariz ou orelhas. A entidade atormentadora olhou Neil e na voz da moça:
- Posso sair daqui padreco filho da puta, mas virá outro em meu lugar!
Elkron olhou para cima. Mais três figuras, parecidas com a primeira esvoaçavam. Uma delas ela amarela esverdeada, cor dos mortos. A outra tinha uma tonalidade marrom e a terceira negra e gosmenta e brilhante como asfalto derretido. Todas baforavam enxofre. Pararam. Entreolharam-se.
Com as garras estendidas voaram para cima de Elkron.
- Desfaça essas figas filho das trevas! Eu sou servo do Altíssimo, seguidor dos ensinamentos do Senhor e da Sua Imaculada Santa Mãe, ordeno que desfaça essas figas e retire-se desse corpo que é obra de Deus...
O bicho contorceu-se.
Elkron brilhou intensamente, agachou-se e numa explosão de luz multicolorida decolou como um foguete. Um rastro luminoso denunciava sua rota. Os demônios rodopiaram no ar. Seguiram a luz.
O barraco estava iluminado com velas. O demônio usando o corpo da mulher olhou-as e apagou-as todas. Fez o fogão tremer e as panelas caírem...
- Você não me assusta criatura dos infernos. Élcio, acenda as velas de novo. Em nome da Mãe de Deus e da Santa Trindade você não as apagará mais e sairá desse corpo agora.
“Esse padreco tem muita força! Estou sentindo-me fraco... Maldito! Vou matá-lo! Seu anjinho não está mais aqui para protegê-lo infeliz!”
Neil estava pegando a água benta quando foi surpreendido pela moça querendo esganá-lo. Segurou seus braços e rezando o Pai Nosso sentiu o a possessa desfalecer. Deitou-a na cama e benzeu-a. Passou óleo em sua testa e borrifou água benta em todo o aposento. Percebeu que a presença demoníaca se fora. Olhou para todos os lados.
- Você tem algum objeto maligno nessa casa Élcio?
- Tenho apenas um colar que minha esposa encontrou na rua e...
- Deixe-me ver.
Era um colar usado na magia negra. Alguma bruxa o perdera.
- Deixe isso comigo está bem. É um amuleto para conjurar espíritos do mal.
- Claro. Ela ficará bem padre?
- Sim. Está exausta. O espírito se foi.
- Como sabe?
- Confie em mim. - Neil tocou o ombro do homem com olhos marejados.
Um segundo antes do ataque ao padre, no alto a trombeta sagrada foi tocada e Sawel voou como um raio. Com a espada em punho partiu o demônio em dois que desapareceu numa fumaça verde, guinando em seguida para o alto arrancou a cabeça do amarelo. Pegou o marrom pelo calcanhar e empalou-o. Ambos desapareceram. O negro estava em cima de Elkron. Recebeu uma rajada maciça de luz e toda sua escuridão foi apagada deste mundo.
- Obrigado Sawel. Estava sem tempo para agir. Ele chamou amigos.
- Você também.
- Você vale por um exército prezado Sawel!
- Fui desenvolvido para isso. Não hesite em me chamar. São ordens do Capitão.
- Sempre chamarei quando precisar nobre companheiro. Vou ficar com Neil agora e de olhos bem abertos.
- Esses não voltarão mais. Outros serão designados. Querem destruí-lo por possuir o dom.
Duas explosões. Muita luz. Dois rastros.
Suas ordens: Atormente e destrua.
A dupla letal. Um robusto e todo encaroçado. Suas garras e presas afiadas gostavam de dilacerar, maltratar, torturar até a loucura se estabelecer. O outro, pequeno, franzino, pegajoso, gosmento. Quando parado em um lugar uma poça se formava em baixo do negror apodrecido. Ambos com olhos amarelos e hálitos sulforosos, membros da Hoste Espiritual do Mal sob o domínio do príncipe Wohoo. Esse, poderoso, grande e muito forte. Dominador da região, temido por todos. Sua presença emanava malignidade. No seu covil as hostes fervilhavam em voos hediondos enfumaçados. A luz era absorvida. O mal imperava.
Os dois foram designados por Wohoo para a tarefa. Com uma mesura e sem virarem as costas saíram da presença maléfica do mestre e senhor deles. Rumaram para a Catedral Central.
- Padre Neil, recebestes o honorável título de Bispo. Suas contribuições teológicas, seu fervor em ajudar o próximo, seu amor e dedicação são inigualáveis. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, na presença de Maria, nossa Mãe, com a autoridade a mim conferida eu o nomeio Bispo Neil.
A cerimônia durou uns trinta minutos. Agora, depois de tanto esforço e dedicação, recebeu o título. Sem restrições para os sacramentos, podia agora ordenar outros e fazer parte da cúpula.
Participou com todo respeito às reuniões. Foi quando começou a conhecer as outras faces. Elkron estava do seu lado quando chegaram. Ele os encarou sério. Os dois sorriram e se fundiram aos cantos escuros do templo onde muitos outros estavam. A trombeta nas mãos tremeu e cintilou.
Durante alguns meses trabalhou administrativamente nos escritórios da Catedral. Sentia que algo estava errado. Pensamentos estranhos o invadia, quando passava em certos lugares sentia arrepios.
- O que está havendo Neil? – Falou consigo mesmo.
Os dois demônios sobrevoavam sobre ele. Elkron permaneceu quieto e cheio de luz. Os dois pareciam mais resistentes. Nada alarmante. Era esperado.
Bispo Neil conheceu colegas estranhos. A decepção foi enorme quando viu dois deles se beijando, acariciavam-se. Foram para o quarto. Ficou sabendo depois que tal prática era comum, bem como a pedofilia envolvendo órfãos. Os estupros de garotas órfãs também eram comuns.
As duas coisas negras ganharam terreno no coração de Neil. Elkron não brilhava com a mesma intensidade e estava mais afastado.
O mensageiro era vermelho como sangue. Pegajoso e gosmento. Prostrou-se diante de Baal Wohoo.
- Trago ordens superiores meu senhor.
- Diga logo, asco. Não tenho tempo a perder.
- O senhor, Nobre Baal Wohoo, deverá escolher uma horda de sete para acompanhá-lo na empreitada.
- Sua gosma deve ter afetado seu cérebro vil criatura. Está falando do quê?! Que empreitada? Quem ordenou? Só recebo ordens do Príncipe Kosmou.
- Baal Zebub me enviou.
Há muito não recebia uma ordem diretamente do Príncipe das Trevas. Calou-se. Com a mão pediu para o gosmento prosseguir. Sua voz era líquida e profunda.
- O senhor deve atacar o Padre Neil. Juntar uma comitiva maligna de sete e atormentá-lo. Loucura é o mínimo. As ordens são para tirá-lo de circulação de uma vez. Matá-lo.
Baal cerrou os olhos. Suspirou hálito de enxofre. Finalmente respondeu:
- As ordens foram ouvidas. Serão obedecidas sem demora. Meus cumprimentos ao Senhor das Trevas.
A gosma partiu deixando um rastro apodrecido e amarelo. Baal levantou-se.
- Preciso de sete bons guerreiros. Quem me acompanhará? – Silêncio.
- Ninguém?!
- Eu irei com o senhor. – Um gorila enorme adiantou-se. Mais três levantaram.
- Faltam três. – Pronto.
Todos negros, peludos, o mal neles era tamanho que quase se apalpava. Baal emanava fumaça negra dos pés, uma imensa cimitarra vermelha foi erguida. Os oito voaram atravessando o exército logo acima. Alguns foram atirados longe rodopiando sem parar.
Bispo Neil não se conformou com as atitudes dos colegas. Repreendia-os. Isolou-se. O Cardeal o chamou.
- Meu filho, nossa crença é por tradição e não por fé! Esqueça a fé e abrace as tradições, poderá viver como um rei!
- Com todo respeito por tudo que aprendi e pelo senhor, eu tenho fé. A verdadeira fé. O compromisso com a Trindade e com os fiéis. Desculpe-me, mas não compactuo com o que é mau. As crianças, meu Deus! Isso é maligno!
- Basta Neil! Basta! Ou você abraça a nossa tradição ou se retira da ordem. Se quiser fazer parte da cúpula deve jogar seguindo as regras. Pagaremos para você ficar de bico calado. O Papa não lhe quer mal. Mas, com a condição que já ofereci. Caso contrário, seu bico será calado por nós.
- Retiro agora minha batina. – ficou apenas de calção. – Minhas vestes sacerdotais, meus anéis e tudo que lembre vocês. Essa roupa me enoja assim como todos vocês. Não quero pagamento algum. Prometo ficar calado.
- Saberemos se não ficar.
Virou-se e foi embora. Elkron também.
Baal sorria ao lado do Cardeal.
Neil caminhou sem rumo por algum tempo. Foi para casa de um amigo e narrou-lhe toda história. Jaques emprestou um dinheiro a ele e disse que poderia ficar um tempo em sua casa. Seus pais morreram um tempo atrás. Seus irmãos, todos casados, moravam no interior, outros no exterior. Viu-se só.
Numa noite decidiu sair e respirar ar fresco. Oito poderosas sombras o seguiram.
- Quem é você anjinho? – Baal pegou Elkron pela garganta, erguendo-o. Outro tomou a trombeta. Essa ardeu em suas mãos nojentas e negras, atirou-a longe. – Vai defendê-lo?
Elkron sentiu o hálito sulforoso. Fechou os olhos e começou a brilhar.
Neil parou sua caminhada. Olhou em redor. Algo estava errado. Uma presença maligna estava naquele local. Seu corpo arrepiou-se e seus olhos lacrimejaram. Rezou.
Wohoo olhou para o padre largando Elkron. – Segurem ele!
Dirigiu-se até o ouvido do padre e sussurrou: “Reze! Reclame com Deus do que viu! Reclame! Murmure... Quanta maldade há no mundo Neil... Pobres crianças... Aqueles malditos!...”
No coração do padre a indignação cresceu. Estava sentindo raiva dos colegas por agirem tão mal. Baal sorriu.
- Deixe-o em paz! – A voz retumbou no ar. Baal virou-se.
- Sawel...
A espada fulgurava e retinia em suas mãos, ele, como o sol brilhava intensamente.
- Sabe que não pode conosco...
- Não estou sozinho demônio!
Dos cantos, de trás das árvores, do chão, das lixeiras, vários seres brilhantes com espadas fulgurantes apareceram. Neil ainda rezava...
Uma explosão derrubou Lorde Wohoo no chão. Os seres angelicais inabalaram-se.
Da explosão surgiu Gabriel, o mensageiro celeste. Seu semblante, bem como todo o corpo relampejavam como uma tempestade elétrica. Sua voz lembrava um trovão. Sawel ouviu o amigo:
- Nobre Sawel – Fizeram uma mesura. Os gorilas estavam paralisados.
- Quais são as ordens Gabriel.
- O Capitão tem outros planos meu amigo. Não combata o Baal. Não o impeça de fazer nada.
- O Capitão sabe o que faz. Obrigado honrado mensageiro dos céus. Remeta ao Capitão que suas ordens serão prontamente obedecidas. – Mais uma mesura.
Tanto Baal Wohoo quanto sua negra comitiva não entenderam a língua que os anjos falaram.
Várias explosões. Vários riscos nos céus. Menos um.
- Covardes! E quanto a você anjinho de merda – Aproximando-se e fulminando Elkron com olhos acesos – Não se intrometa! – Hálito sulfuroso e amarelo abraçou o rosto angelical. Permaneceu incólume. Encarou o demônio sem o mínimo sinal de medo ou qualquer outra emoção. Virou-se e foi buscar a trombeta.
- Se você ousar tocar isso, seu anjeco enferrujado – Todos gargalharam – Eu o partirei em dois com minha espada antes que anuncie a primeira nota. - Elkron não respondeu. Não tocou. Postou-se ao lado do padre que ainda rezava. Tocou-lhe o ombro. Neil estava se levantando quando um risco vermelho cortou o ar. A mão direita de Elkron foi decepada. Um jorro de luz saía do ferimento. A espada do Baal, no golpe, foi engolida em chamas. Uma negra cicatriz pulsou, o aço maligno gemeu.
- Não se atreva a interferir nos meus planos maldita placa luminosa!! Não atreva a tocar no que é meu! – O anjo encarou-o inabalado.
- Ele não é seu Baal. Nunca foi. Você o teme! Seu chefe o teme. Todos vocês o temem. Temerão ainda mais quando... – Um dos gorilas adiantou-se e socou Elkron. Este voou longe. Outros quatro estavam em cima dele prendendo-o ao chão.
- Não desafie o Lorde Baal! Nunca o desafie! – Gritou um azulado.
- Você ainda não entendeu não é? – Disso Wohoo – Seus amiguinhos covardes o abandonaram. – Neil agora estava sentado no banco da praça, suas emoções estavam confusas. Sabia que algo terrível aconteceria em breve. Percebia a existência de um mal muito grande naquele lugar. Olhou exatamente para onde o Baal estava. Rezou novamente.
- Não estou sozinho demônio. Não estou sozinho.
Baalorde Wohoo sentiu o corpo incandescer-se por dentro. Ardeu como um ataque maciço de azia; Os outros também. A mão de Elkron fora refeita. Ele estava bem. Do banco da praça um sussurro cheio de lágrimas: “Senhor. Repreenda todo o mal deste lugar...”
21:00 horas.
*Thom estava bebericando no bar. Seu olhar frio e impiedoso procurava alguém. Sua mente insana desejava morte. Precisava saciar-se. Há muito não o fazia. Ao lado dele duas sombras muito negras e grandes o escoltavam por toda parte. Viram quando Baal entrou no estabelecimento.
Neil perambulava pelas ruas. Sentia-se melhor agora. Meditava no que havia sentido na praça. Que rumo tomar? Não sabia. Nesse dia, por mais estranho que pudesse parecer a ele mesmo, sentiu um desejo enorme de colocar novamente a batina. Pôs a parte de cima do hábito e saiu para as ruas.
Thom o viu.
“Um padre! Uau! Muito bom para equilibrar as coisas...” – Acima dele oito gigantescas sombras negras sobrevoavam misturando-se na noite. Elkron os viu.
“Poderia dar aula de filosofia ou religião nas escolas e...
- Padre! – Ele virou-se. Viu um punho crescendo em direção ao seu rosto. Não viu mais nada.
- O-o-onde estou? – Sentiu o corpo preso. Estava amarrado e encostado numa árvore. Era um bosque. Na visão, ainda turva, verificou que não estava só. Apenas alguns passos à sua frente, um grandalhão.
- Olá padre.
- Quem é você? – Já enxergando.
- Meu nome é Thom. Gostaria de jogar com você…
- Jogar?
- Sim. Estamos num bosque bem afastado da cidade. O jogo consiste em você fugir. Se conseguir fugir de mim poderá viver. Se não…
- Não… Não quero jogar! Escute… Deus o perdoará de tudo! Sabe que está com problemas, que não é mal… – Observou os olhos de Thom e foi aí que percebeu que sua “luta não era contra a carne e o sangue e sim contra as hostes espirituais da maldade...”
Thom sorriu. Baal estava bem ao lado dele acariciando seus cabelos. Elkron levou a trombeta à boca. Três se adiantaram para impedí-lo. Tarde demais.
O assassino ajoelhou-se bem na frente do padre. Segurou-o pelo queixo: - Preciso fazer isso. Equilibrar as coisas. É uma necessidade, padre. – Uma faca brilhou na escuridão. O Pai Nosso foi sussurrado.
- Levante-se! Pare de rezar e levante-se! – Thom demonstrava certo descontrole.
Elkron estranhou. Nenhuma explosão foi vista. Não sentiu nenhum dos companheiros. Ouviu gargalhadas. Permaneceu imóvel e quieto.
Neil levantou-se.
- Corra!
- Não jogarei com o que há dentro de você. O Senhor te repreenda espírito imundo! O Senhor te repreenda! Sou um servo do Altíssimo! Ele te repreenda!
A faca cruzou o ar e atingiu o lado direito do abdômen de Neil. O sangue brotou.
- Repreenda isso padreco!
Caiu ajoelhado. – Eu te perdôo meu filho. Não é você...
- Cale a boca! Desgraçado! – Socou-o. – Levanta! Levanta! Com as duas mãos pegou-o pelo pescoço na parte de trás. Neil estava de costas. O sangue ainda escorria do ferimento. Estava ficando tonto.
- Thom... Não faça isso... Você é um dos filhos de Deus. Ele te perdoará! Há um mal em você que o controla. Posso senti-lo! Sei o seu nome.
- Você não sabe de nada! – Colocou-o encostado numa árvore. Encarou-o.
- Baal Wohoo - Reunindo forças – O Senhor Altíssimo te repreenda… – A faca brilhou novamente.
De trás do padre um pequeno ser luminoso saltou. Das suas mãos uma pequena espada brilhante. Baal, surpreendido, cambaleou para trás. O céu explodiu. Uma imensa bola chamejante desceu e estourou em mil cores. O bosque iluminou-se como se uma estrela estivesse pousada ali. Elkron sorriu ao vê-lo. Tinha uma vez e meia o tamanho de Baal. Todos o temiam. Seu corpo brilhava intensamente numa luz dourada e alva. Suas vestes prateadas resplandeciam como a mais bela lua cheia. Seus olhos eram como duas estrelas no rosto. Seu corpo maciço como aço em curvas espetacularmente musculosas faziam Lúcifer tremer. A voz de trovão ribombou e toda a corja negra bufou e se aterrorizou.
- Miguel... – Baalorde Wohoo sussurrou, sua espada chamuscada tremia em suas mãos. O pequeno ser luminoso desferiu um golpe e na distração do inimigo atingiu-lhe o peito. Do profundo corte saiu um jorro de fumaça negra. Ele urrou. Nunca sentira uma dor tão intensa como aquela. Os outros atacaram.
A mão direita de Miguel levantou-se. A rajada de luz foi tão violenta que os sete que acompanhavam Baal foram apagados em segundos. O anjinho empurrava Baal para o abismo. Dois outros anjos magníficos, um louro e outro bronzeado, seguraram os braços do demônio ferido. Nas mãos do Capitão Miguel uma enorme corrente pesada, grande e toda feita em cristal puro tilintou. Lorde Wohoo contorcia-se, urrava. Miguel se aproximou. Sem dizer palavra amarrou-o com a corrente. Cada elo em contato com o corpo do monstro queimava-o como raio laser. Mais urros. O olhar de ódio não abalou um átimo da confiança do Capitão. Com o pé direito, que emanava luz ao caminhar, empurrou o peito do demônio. Caiu na escuridão do abismo. Um grito negro e líquido, cheio de blasfêmia escorreu pelo tempo e escuridão. Não houve eco, o abismo se alimentava do desespero de Wohoo. O abismo se fartaria quando o Baal encontrasse em seu fundo uma jaula de ouro negro, ladeada por sentinelas titânicos.
Padre Neil a tudo viu enquanto caía, as mãos inutilmente agarradas a garganta aberta. Thom estava em pé; nas mãos a faca ensangüentada pingava no chão. Esquartejou o corpo e o queimou. Enterrou o que sobrou em vários lugares diferentes.
Miguel, Sawel e Elkron receberam e conduziram Neil para o repouso eterno. Os demais seguiram a comitiva em sucessivas explosões luminosas.
Thom voltou ao bar. A belíssima mulher estava do outro lado do balcão. Aproximou-se:
- Olá **Aleera…
Observações: * ** Para maior compreensão do enredo aqui proposto com a inserção dos personagens Thom e Aleera, leia Serial Killer, postado no Site.
Alex Holy Diver
10/11/08