Nos Extremos do Amor e da Morte

Em sua ópera de tempestade insana “Tristan und Isolde”, Richard Wagner faz com que esses dois personagens da célebre lenda medieval bebam filtros mágicos que supostamente causariam suas mortes. No entanto, acreditando beber a morte, Tristan e Isolde bebem o amor: apaixonam-se inexoravelmente. Era esse o real efeito do filtro. Buscando a morte, encontram o amor. Nessa obra de Wagner, é a morte que conduz ao amor, e não o contrário. Seguir uma paixão absurda seria a conseqüência última daquelas almas atormentadas que desejam acabar com suas vidas e com o mundo que as cerca. Amor e Morte! Apesar de toda exploração desse tema mítico, o homem ainda não chegou a compreender a fundo os segredos desse estranho e terrível matrimônio... Quanto a mim, deixarei aqui mais um capítulo dessas núpcias fatais, o qual certamente não será definitivo, mas creio que poderá consistir em um pequeno, porém apocalíptico acréscimo a essa trágica saga.

Certa vez, um anjo, ainda não sei se bom ou mau, disse-me que o amor existia. Acreditei. Por isso hoje estou aqui. Sei que estas auras densas e carregadas que me cercam por toda a parte são fruto dessa maldição que arrasto comigo como um manto negro. Talvez agora eu tenha atingido o ápice de meu horror. Tudo desmorona ao meu redor.

Um furacão atingiu minha cidade esta semana. Nada de especial no fato, furacões em minha época tornaram-se absolutamente comuns, não fosse pelo motivo catastrófico de que esse foi um dos mais aniquiladores de toda a história. Só na minha cidade, mais de 50.000 mortos. No entanto, o clima doentio de absoluta desolação que agora impera entre os habitantes não é fruto somente do furacão desastroso. A decadência humana chegou ao seu extremo. Somente isso explicaria as pessoas que matavam-se mutuamente naquele prédio. Escondi-me atrás daquelas colunas para não ser assassinado. Respingou sangue em minha roupa, havia mortos por todos os lados.

Felizmente, consegui escapar. O que mais me impressionava naqueles instantes era a expressão espiritual de profundo e pleno ódio e perversidade naquelas faces. Parecia que eu distinguia fantasmas demoníacos naqueles olhos inflamados de sangue. Ao sair às ruas entupidas de lixo e de cadáveres, por muito pouco não vomitei ao sentir-me inebriado pelo fedor insuportável que se erguia e se alastrava como repugnantes ondas que eram quase visíveis, quase palpáveis.

Como um desgraçado condenado ao inferno de Dante, perambulei entre o sangue dos mortos e entre os restos da miséria humana. Não poderia permanecer naquelas ruas. Não poderia continuar sendo observado através daquelas janelas em ruínas pelos sórdidos rostos que me ameaçavam com olhares repletos de maldade. Não sei dizer até que ponto eram humanos ou monstruosos aqueles olhos que me dardejavam de horrores. Só o que sei é que deveria fugir de tais ruas infernais o mais rápido possível. Sentia presenças infaustas ao meu redor, minha intuição alertava-me de ominosos agouros que me obscureciam. Deveria partir.

Mais uma tempestade absurda formava-se. Nuvens de treva absoluta derramavam-se em vertiginosas velocidades por toda a imensidão celestial. Nebulosas carregadas de horror e ameaça erguiam-se como castelos de morte pelos ares doentes de poluição. Ainda o sol anômalo queimava a dor da minha pele mesmo obscurecido pela escuridão tempestuosa. Ao olhar para trás, enquanto os prédios que me cercavam desmoronavam lentamente, pude distinguir uma multidão de semi-humanos disformes a me perseguir armados com metralhadoras, machados, punhais, em cujas faces a foice da morte resplandecia negramente. Necessitei correr com todas as forças do meu desespero.

Principiou a chuva demoníaca e torrencial. Era ácida. Felizmente, pude abrigar-me sob algumas árvores que sobreviviam na periferia desolada da cidade. Creio que consegui despistar os monstros antropomórficos que lacrimejavam de sede pela minha morte. Atolado na lama e ensurdecido por armagedônicos trovões, agachei-me exausto sob as árvores quase sem folhas. Minha pele queimava pela chuva impiedosa.

De súbito, a tormenta cessou por completo. Ergui minha fronte castigada em direção à negra desolação do horizonte e pude perceber que as nuvens agora se dissipavam. De modo que em questão de poucos minutos um sol terrivelmente escaldante surgiu vitorioso no céu que por um momento estava livre de fumaças e gases asfixiantes. Se antes minha pele ardia pela chuva ácida, agora eram os ultravioletas solares que castigavam como um chicote o meu tato. Deixei a exígua proteção das míseras árvores para afastar-me ainda mais da cidade, visto que já ouvia novamente os gritos aberradores da multidão de zumbis; sim, porque talvez seja essa a melhor definição para os monstros-humanos que ainda deviam estar em meu encalço.

Por onde quer que eu andasse, somente o que via eram casas semidestruídas, cadáveres de homens, mulheres, crianças e animais em miasmáticos apodrecimentos. Eu avistava os vermes em suas carnes em decomposição. Distinguia as mais repulsivas imundícies acumuladas aos montes: árvores derrubadas, pátios e quintais em ruínas, automóveis abandonados. Ocasionalmente, encontrava alguns animais domésticos esqueléticos, como gatos dignos de dó, cachorros sarnentos, vacas e cavalos esquálidos. Através desse cenário apocalíptico, afastava-me cada vez mais da cidade devastada. Porém, a devastação era absolutamente onipresente.

Aos poucos, aproximava-me dos campos secos, arrasados pelo sol inclemente. Divisava ao longe restos de lavouras melancólicas. Encontrei um pequeno lago de águas sujas; foi a única forma de saciar a minha sede que já se tornara insuportável. Mesmo exausto, a água insalubre deu-me forças para prosseguir afastando-me da dantesca zona urbana. Marchas fúnebres desesperadoramente tristes vieram-me à mente. Alguns vultos levantaram-se no horizonte. Não pude dizer se eram humanos, ou fantasmas ou miragens. Sabia que devia correr, fugir do resto degenerado da humanidade que agonizava.

Há poucos meses atrás, no lugar que então percorria, havia uma belíssima e exuberante mata. Onde está ela agora? Pisava em galhos secos e em animais mortos. Desviava-me dos troncos de milhares de árvores cortadas. Adiante, o que vi? Ah sim, o riacho que cruzava a mata. Aproximei-me dele, de suas águas outrora cristalinas. Podridão era tudo o que via, era tudo o que cheirava, era tudo o que sentia. O reflexo direto da Morte. Mas voltando meu rosto para trás, vi os mesmos vultos fantasmagóricos a me perseguirem. Deveria ir adiante.

Após atravessar com repugnância aquelas águas pestilentas, sempre torturado por um sol aniquilante, e pisando um pasto seco e deprimente, ao longe, no horizonte esfumaçado, avistei uma pequena formação de mata, realmente bastante reduzida. Talvez fosse a minha única esperança, minha última esperança... Absolutamente esgotado, dirigi-me até ela. Minha pele ardia, meus pés sangravam, meus olhos lacrimejavam. Sentia que minha maldição pairava sobre mim com as asas de sempre. Não sei por que, lembrei-me do que disse o anjo.

Aproximei-me da pequena mata. Devia ter sido o que restou da floresta que antes aqui existia. Estava tão perto que já podia distinguir que havia algo como um pequeno lago no interior do quase bosque. Prossegui em sua direção. Então me foi possível avistar também um corpo, mais um cadáver, julguei. Penetrei na mata e rapidamente encontrei-me às margens do lago e do lado do corpo. Era o corpo de uma mulher belíssima. Não parecia ser um cadáver. Talvez dormisse. Aproximei-me, peguei seu braço e examinei sua pulsação. Sim, ela vivia.

Foi quando a moça abriu os olhos. Uns olhos que ao vê-los senti raios penetrarem em minha psique. Ao ver-me, aparentando desespero, abraçou-me dizendo que finalmente eu chegara. Esse abraço e aqueles olhares foram suficientes para que eu me apaixonasse implacavelmente pela mulher desconhecida. Creio que chorei. Creio que choramos em meio ao desastre completo do ambiente em que nos encontrávamos. Mas creio que choramos bem mais pelo sentimento de eternidade e pelo beijo de irradiação atômica que foi inevitável naquele instante.

Então compreendi. Foi necessário que o mundo inteiro acabasse, foi necessário a morte da humanidade para que eu encontrasse o amor. Sim, porque se eu não fugisse da cidade demoníaca e aniquilada, se não fosse perseguido sem trégua por aqueles monstros humanos, se não me dirigisse ao campo para livrar-me deles, e se a floresta não estivesse quase que totalmente devastada, eu jamais teria encontrado aquele lugar. Consequentemente, jamais teria encontrado essa jovem e nunca teria a amado. Pois eu soube que a amo quando a tive em meus braços.

Porém... olho para minha retaguarda. Fantasmas ao longe se aproximam. O céu rapidamente nubla-se e se torna negro. Principia outra tempestade. A fuga prossegue...

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Alessandro Reiffer
Enviado por Alessandro Reiffer em 08/11/2008
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