-EMÍLIA E ALICE-



- Que susto! Parece um fantasma, o que você quer? Está me espionando?
- Não consigo dormir. Você me enganou, planejou tudo desde o início e eu acreditei nas suas mentiras.
- Hoje é minha noite de núpcias, não vou perder  tempo discutindo. Só vim pegar uma  garrafa de água.
- Quero só ver quanto tempo isto vai durar.
- Está agourando meu casamento? Enlouqueceu?
- Sei que vai se arrepender e voltar.
- Isto não vai acontecer. Quero começar vida nova com meu marido. Ter vizinhos, amigos, ir ao cinema , festas...nunca fomos ao cinema.
-  Depois que deixei o caminho livre, é fácil me descartar. Quer um café? Acabei de passar neste instante. Um encanador! Casou com o encanador em dois segundos.
- Diogo. O nome dele é Diogo. Nossa, como este café está forte!  
- Você sabe ... não consigo fazer nada sem sua ajuda.
-  Já está na hora de tentar, sei que  é perfeitamente capaz de se virar sozinha. Hoje em dia, podemos pedir praticamente tudo,  usando os serviços da internet.
- O computador e os gatos serão minha companhia. Não entendo, o que eu fiz de errado?
-  Nada. Eu me apaixonei, ele é mais velho e me dá segurança. Venha conosco, este lugar é uma prisão.
-  Eu não saberia viver em outro lugar. Nunca vou abandonar nossa casa. Nunca.
- Estou que não me agüento de sono, este café não serviu pra nada. Ai meu Deus! O que você fez...



                
-----O ENCANADOR-----

Emilia entrou no quarto e fechou a porta. Diogo encarou a moça:- Sou eu idiota, não disse que ela ia deixar?
-  Alice morre de ciúmes, nunca imaginei que fosse conseguir.
- Minha irmã e eu não negamos nada uma à outra. Perdeu a aposta, agora vai ter que me ajudar.
- Tem certeza que vai levar esta besteira adiante? Eu não tenho nada a perder.
- Pois eu tenho, não quero ficar sozinha. Um trapo velho jogado nesta casa triste.
- Nunca vi um trapo velho mais gostoso. Dá tempo de fazer coisinhas?
-  Acho que você é meio pervertido. No fundo, está adorando a idéia de ficarmos todos juntos.
- É o sonho de todo homem, duas mulheres lindas e muita sacanagem.
- Então levante daí depressa e vamos seguir meu plano.
O casarão estava corroído pelo tempo, precisava de reformas urgentes. Era o fim de um clã cheio de histórias tristes. Todos mortos, uma desgraça após a outra. No final sobraram as irmãs, bichinhos do mato espiando o mundo pela janela:
- Se não fosse o encanamento, não  teria conhecido minha irmã. Nunca recebemos ninguém. Alice ainda sai, faz as compras e vai ao banco. Eu não gosto muito de gente, prefiro meus gatos.
- Mas foi pra cama comigo na primeira noite. Gostou tanto de mim?
- Coitado, não  queria que Alice fosse a primeira.
- Mentirosa. Depois abriu mão para a irmãzinha ficar comigo. Nunca se arrependeu?
- Meta-se com a sua vida, não pedi sua opinião. Encanador.
- Agora sou seu cunhado, poderia ser seu marido, mas você estragou tudo.
- Minha irmã sempre sonhou em casar, eu não faço  a menor questão.  Além do mais, não te amo, já disse mil vezes e  você continua insistindo. Gosto de “trepar’’ com você, só isto.
 - Chega menina, agora está começando a ficar sem graça.
- Calma. Vamos lá...
- Isto deve ser trauma de infância, acho que você não é muito boa das idéias.
- É mesmo? Então somos todos loucos.
- Emília,  agora somos uma família.  Já pensou nisto? Eu, você e Alice.
- Se não andar depressa, amanhã não seremos mais nada.
 

                               -----PLANOS-------

A velha camionete ocupava quase toda a entrada da casa. Precisando de muitos reparos, quase tudo funcionava de maneira improvisada. 
Diogo suspendeu o pesado capô enquanto Emília posicionava o cabo de vassoura:

- Cuidado! segure com atenção. Vou mexer nas velas e nos cabos. Isto vai retardar nossa viagem por alguns dias.
- Estou segurando, fique calmo, solte a correia também.
O baque surdo.  Emília assistiu calmamente enquanto o rapaz se debatia. Com o taco  de beisebol, desferiu vários golpes nas pernas e costas do cunhado. 

Suspendeu ligeiramente a tampa do motor; ele deslizou para o chão, ainda estava  consciente. 
Emília olhou por alguns segundos e bateu com toda a força. A cabeça de Diogo pendeu em um ângulo absurdo.
Sem ao menos verificar os sinais vitais, arrastou o corpo até o buraco onde antes existia um poço. 
Não era a primeira vez que usava o local como túmulo. Uma tampa de concreto com mais de 10 cm havia sido afastada.  Enrolou o cadáver em um lençol grosso, cobriu com bastante  cal e empurrou poço abaixo.
 
Ligou os irrigadores do gramado e começou a lavar a caminhonete. 
O rancho não tinha vizinhos.  A estrada passava tão distante, que não ouviam qualquer ruído. Para fazer compras na cidade, perdiam quase uma hora de viagem: 

- Emília, por favor, me ajude! Estou muito mal, não consigo respirar.
- Calma, já vai passar, trouxe a fórmula do papai. Beba um pouco.
- Isto está velho demais, não serve para nada.
- Não diga isto, papai era um bom médico.
- Papai está morto há mais de dez anos. Morto!
- Todos estão mortos, só sobramos nós duas e a casa .
- Emília, juro que não vou embora. O que você fez com Diogo?
- Não acredito mais nas suas promessas. Não adianta, não vou te soltar.
- Onde está Diogo? Fale de uma vez, está morto?
- Está com a família, não era isto que ele queria? Ser parte da família.
Alice testou as cordas apertadas, precisava aproveitar o primeiro deslize.  Emília estava alterada e com certeza faria alguma coisa errada. Era questão de tempo, quanto mais nervosa, menos atenta. Conhecida todos os hábitos e reações.
Analisando friamente, estava presa no quarto dos fundos e alguma droga corroia seu estômago.   A irmã precisava de companhia, tinha medo de ficar sozinha.
Emília entrou com uma tigela de sopa, ajustou a cama hospitalar e começou a servir a irmã:

-  Ainda bem que mantivemos este quarto. Foi nesta cama que titia morreu, lembra? Ela era forte, durou quase três meses. Papai e mamãe não agüentaram nem um dia, você lembra?
- Pare Emília, o que você colocou nesta sopa? Se me matar,  vai ficar sozinha. Já pensou nisto?
- Milhões de pessoas sobrevivem,  usando os serviços pela internet. Sem precisar sair de casa....

- Sei que falei esta bobagem, por favor, me perdoe.

- Perdoar, você se perdoa por ter matado nossos pais?
- Eu  fiz o pudim de chocolate para o papai. Puseram veneno  suficiente para matar um cavalo.Juro que não tive culpa.
- Eu sei, mamãe envenenou o doce.

- Mentira, porque ela faria isto?
- Papai estava com a cabeça virada por uma mocinha. Já tinha montado até casa, mamãe não aceitou.
- Não acredito, eles se amavam, eram felizes.
- Pense bem, papai nunca deixaria um veneno tão perigoso ao nosso alcance. Nunca passou pela sua cabeça? Naquela noite, mamãe nos mandou para o quarto, de castigo sem sobremesa.

- Porque está contando isto agora? Durante todos estes anos, escondeu a verdadeira culpada. Você vai me matar?

- Ouvi seus conselhos, é hora de aprender a me virar sozinha.

- Você precisa de mim, não vai sobreviver sem sair desta casa.

- Milhões de pessoas reclusas, sobrevivem  usando os serviços pela internet.



                    --- PEQUENAS MALDADES ----


Emília ignorou os gritos da irmã, não queria assistir a agonia de Alice, era como enxergar a morte no espelho. Finalmente seria a única.  Sem a cópia estragada, sempre dependendo dela para tomar decisões. 
Foi Emília quem decidiu esconder os corpos dos pais. Tinha apenas nove anos de idade e já demonstrava os sinais do mau instinto.
Emília ficou fascinada com o mundo  dos venenos.  Começou  fazendo experiências no laboratório do pai, testou  as doses nos próprios gatos. Com o tempo, dominava a arte de matar sem deixar qualquer resíduo. 

Foi assim , que a visita  da tia bisbilhoteira, terminou da pior maneira possível. 
O jovem gerente do banco, desconfiado com o sumiço do médico, marcou uma visita. 
Pouco depois, caiu morto,  vítima de botulismo. 
A pequena lanchonete fechou as portas e a cidade passou a temer os fast-food. 

Emília garantiu o sustento falsificando assinaturas,  forjou a existência dos pais  e  garantiu a sobrevivência das duas. Emília não permitiu que fossem mandadas para lares adotivos ou instituições.
Jogar o corpo da irmã no sumidouro, foi mais difícil que ela imaginava. Sentiu saudades da antiga  Alice, a melhor amiga antes de aparecer o encanador. 
Decidiu terminar tudo com muita rapidez e evitou olhar o rosto desfigurado da irmã. .
Um carro velho,  comia poeira na estradinha acanhada. Emília apertou os olhos tentando enxergar o motorista, não conseguiu. O homem  desceu apressado, tinha um rosto familiar: 

-Sou Carlos, irmão do Diogo. Atrasei para o casamento, eles já partiram?
- Foram no mesmo dia, a cerimônia no civil foi rápida e eles aproveitaram o resto do dia.
- Uma pena, estava por estes lados e resolvi arriscar. Meu irmão não atendeu minhas ligações.
- Eles ainda devem estar na estrada, disseram que vão viajar um tempo sem rumo.
- É a cara do meu irmão, adora uma aventura.
- Quer entrar um pouco? Tirar a poeira do corpo, dar uma descansada. Chegar aqui foi difícil?
- Muito, me perdi várias vezes. Vou aceitar a oferta, estou quebrado de cansaço.
- Sou Alice, não precisa ficar acanhado.
- Pensei que Alice fosse o nome da noiva, meu irmão falou que  eram gêmeas. Só não disse que eram tão novinhas.
- Imagine, já tenho dezoito anos. Vai ver,  ele contou que me conheceu primeiro. Mas casou com a Emília.
- Acho que ele andou aprontando confusões.
- Que nada!  Vamos entrando? Acabei de fazer um café fresquinho.
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 26/10/2008
Reeditado em 25/11/2008
Código do texto: T1248592
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