VÍTIMAS NOTURNAS

1

O automóvel preto deixa a casa.

No primeiro andar, no terraço, Júlia fica seguindo-o com os olhos analíticos. Para onde vai D. Myrtes a essa hora da noite? Sempre ao último dia de cada mês, ela ganha a rua, à mesma hora, nove da noite, como se tivesse um compromisso... Mas, o que tem ela, Júlia, uma simples empregada caseira com a vida da patroa? D. Myrtes é nova, bonita, merece, e tem o direito, de curtir a vida, ir para onde bem quiser! O melhor que faz é deixar de xeretar a vida alheia. Sorri, e retrocede ao interior da residência, precisa lavar os pratos, talheres e ainda fazer a arrumação da cozinha, se reentregar à tarefa diária.

- Quem me mandou nascer pobre? E, sem estudo...

Sim, tem, e deve, se contentar com o emprego, seu "ganha-pão" certo, que a ajuda a manter a casa, com a colaboração do marido, o Pedrinho, ajudante de mestre-de-obras.

Cantarolando, lava a louça. De uma casa próxima, um cachorro late, pedindo a liberdade. A água desce e as mãos escuras correm a bucha sobre os pratos. Mas, para onde vai mesmo à patroa?

- Um dia, eu descubro.

Fecha a torneira e poe o último prato no escorredor.

2

O automóvel roda macio, devagar. A mulher à direção segue os passantes no calçadão à beira-mar, com o mar de ondas nervosas vindo morrer na praia deserta, próxima. Sim, analisa os pedestres, principalmente os homens solitários. E ante a figura alourada, grande, atlética do rapaz no abrigo sozinho, sorri, antevendo a cena de logo mais.

- Quer uma carona?

O carro preto, importado. O rosto alvo. Os olhos negros. Os caberlos longos, sedosos. O sorriso de covinhas numa promessa... Como não aceitar o convite que se lhe apresenta como o chamado ao prazer?

- Aceito.

A porta se abre. Fecha-se. E o casal se afasta na noite que envelhece, como se nada testemunhasse.

3

O corpo repousa, exausto ao lado. A cabeça arreada sobre o peito largo. A respiração ritmada. Os dois furinhos paralelos ao lado esquerdo do pescoço, já arroxeados...

Ligando o carro Myrtes afasta-se ainda sentindo nos lábios entreabertos o gosto adocicado do sangue da vítima, após a carícia manhosa e o súbito ataque dos seus molares que de repente crescem pontiagudos, sugadores.

- Por este mês já basta.

Fala baixinho, dando voz ao que sente. Agora, só para o mês. Sorri e prossegue dirigindo, sentindo o corpo mais forte, na energia adquirida.

- Poxa! Agarrei no sono...

- Depois do amor, sempre nos dar o sono. Isso é normal, querido.

- Pois é. Mas, para onde me leva?

A voz dele (mais fraca?) indaga. Ela responde:

- Está bem ali na esquina?

- Certo, minha garota sexy.

Myrtes volta a sorrir, iluminar as faces com as covinhas graciosas. Então, a porta se abre e o rapaz saltando:

- Quando a gente se ver de novo?

- Você é quem determina...

- Me passa o número do seu celular.

Abrindo a bolsa ao ombro, ela então retira o papelzinho e entrega-o. Feito o quê, o carro novamente se afasta, perdendo-se na noite, enquanto o jovem erguendo a mão, com a palma desta, esfrega o pescoço, sentindo-o dolorido.

- A "gata" é muito quente: mordeu-me!

Fricciona o pescoço. Pensativo, com uma repentina dúvida.

- Ela me mordeu, como uma vampira.

Uma vampra...

A dúvida persiste. Inquietando-lhe a alma.

* * *

Paulo Carneiro
Enviado por Paulo Carneiro em 22/10/2008
Código do texto: T1241944