Bom Apetite
Jonathan, o fiscal, há 26 anos trabalhava no primeiro andar da Secretaria da Vigilância Sanitária Nacional. Adorava o que fazia. Sua área: alimentícia.
Quarentão e solteirão. A carrancudice era primaziada pelas suas horríveis sobrancelhas grudadas. Um corpo forte de cabelos grisalhos, olhos escuros e profundos. Gostava de roupas pretas, sentia-se o próprio Tommy Lee Jones! Usava até os óculos escuros!
Era um orgasmo inspecionar os estabelecimentos e encontrar irregularidades.
De manhã sempre no escritório. De tarde: inspeções. Sua secretária, Tina, muito competente, cuidava de tudo.
O “MIB” morava sozinho. Apartamento aconchegantemente pequeno. Suficiente para ele.
Puteiros de vez em quando para aliviar a mente. Gostava das putas gostosonas e experientes, nada de molecas cheias de nhe-nhe-nhens.
Na sua carreira multou centenas de botecos e fechou outros tantos. Suborno: umas oitocentas milhões de vezes. Como cidadão de respeito, claro que aceitou todos. Hoje não mais.
A segunda personagem da nossa história: dona Euvira. Conhece-a? Permita-me apresentá-la rapidamente. 68 anos, viúva, sem filhos. Solitária. Veio do nordeste tentar a vida na cidade grande. Como prostituta conseguiu juntar dinheiro e montar seu negócio. Para ela sua lanchonete e mini restaurante era tudo. Sua vida resumia-se a isso.
Jonathan visitou o estabelecimento.
- Pois não senhor? – A jovem morena sorriu.
- Uma coxinha por favor. – Olhos argutos correram pelo local.
D.Euvira estava no caixa.
Ele reparou de imediato que: garçonete sem uniforme; sem touca; manuseio impróprio dos alimentos; unhas compridas.
- Essa coxinha foi feita hoje?
- Não senhor, é de ontem de tarde.
- Certo. Uma coca.
D.Euvira, desconfiada, aproximou-se.
- A senhora é a dona deste lugar?
- Sim, sou eu mesma.
- Qual o nome da senhora por favor.
- Quem quer saber?
- Eu, Jonathan, fiscal da Vigilância Sanitária Nacional, a senhora poderia dizer seu nome por favor.
- É Euvira. Em que posso ajudá-lo?
- D.Euvira, seu estabelecimento está fora dos padrões de higiene estabelecidos pela Secretaria. Reparei que a garçonete está sem uniforme, unhas grandes, seus alimentos estão vencidos, a chapa está imunda e tenho certeza que encontrarei uma infinidade de irregularidades. Para começar quero os atestados de saúde da senhora e da moça e de quem mais trabalha aqui. Depois visitarei a cozinha e demais dependências.
- O senhor tem alguma identificação?
- Claro! Está aqui. – Exibiu todo orgulhoso sua arma mortal: a carteirinha.
- Está bem, fique a vontade - Suspirou.
- Obrigado D.Euvira, poderia trazer-me os atestados de saúde?
- Eu não tenho.
- Então a senhora será multada e seu estabelecimento interditado, isso ocorrerá em cinco dias a contar de hoje.
- Escute, senhor Jonathan, não há outra maneira de resolvermos isso? Um cafezinho talvez...
- Não, infelizmente não há.
- Por favor, dê-me mais um prazo então! Esse é o meu ganha pão, sou sozinha e ....
- Está bem! Está bem! Pare de reclamar! Voltarei dentro de quinze dias.
Cumprimentou as duas com uma mesura e saiu. Sem pagar.
D.Euvira ficou parada olhando. "Tenho quinze dias!”
Na mesma tarde, MIB, interditou dois bares.
No apartamento, em cima de uma mesa de canto, havia uma caixa de madeira cheia de terra com vários pedaços de papelão fincados ordenadamente. Um cemitério em miniatura. As lápides de papelão exibiam nomes de estabelecimentos fechados. Uma coleção de troféus.
Já estava escrevendo o da D.Euvira...
Quinze dias depois ...
D.Euvira trabalhou muito. Garçonete uniformizada, unhas aparadas, chapeuzinho e tudo mais. Documentos em ordem e casa limpa!
Chegou. Inspecionou tudo. Beleza. Apenas um problema foi encontrado: Um camundongo dentro da panela de feijão. (Não conte para ninguém, mas, foi Jonathan quem o colocou lá!)
- Estaria tudo em ordem D.Euvira se não fosse esse pequeno problema. Infelizmente terei que interditar o estabelecimento e multá-la por insalubridade.
- Por favor senhor eu não posso ficar fechada, é a minha única fonte de renda, não tenho ninguém...
- Não me interessa! A senhora faz mal à saúde pública
D.Euvira encarou-o com lágrimas. “Um dia pagará!”
- Isso não é novela não minha senhora. Devia ter se esforçado mais! Passar bem!
O estabelecimento foi fechado e o ânimo da velha também. Dívidas pipocaram. Ela morava numa casinha comprada com muito esforço. O desgosto foi tão grande que adoeceu. As semanas iam passando e suas reservas acabando. Energia e água cortadas. Não conseguiu o valor para reabrir o negócio.
Compadecida da amiga de tantos anos D.Marlene, sua vizinha, ajudava no que podia. Todas as noites D.Euvira pegava três a quatro baldes de água na casa da compadecida.
A saúde piorou.
Por duas noites o barulho do portão da D.Marlene não foi ouvido e nem os baldes de água foram enchidos.
Sozinha. Abandonada. Há dois dias sem vida o corpo trancado no banheiro apodrecia.
Antes de atravessar o rio desejou com as últimas forças que o senhor Jonathan fosse punido. Nessa, ou na outra vida! Amaldiçoado seja!
Algo a ouviu.
Jonathan estava satisfeito! Mais estabelecimentos interditados, multados, fechados. Um orgasmo!
Sentado na poltrona assistia TV. Pegou no sono. Acordou. Olhando para a TV viu a propaganda de um restaurante belíssimo. Muito chique mesmo. Não tinha cadeiras e sim poltronas. Diversos ambientes e uma comida para lá de fina. Salmão, Lagosta, Caviar, Pratos Holandeses e por aí vai. Atendiam somente com reserva.
Como nunca ouviu falar desse lugar?!
-Meu Deus! Que troféu!
Ansioso demais, no dia seguinte estava lá. A estrutura impressionava. Estranhou. Todos esses anos sem saber desse lugar. “Tudo bem vai. Um a mais.”
Foi muito bem recepcionado. Teve que se identificar logo, pois atendiam somente com reserva.
O gerente, sorridente e careca, atendeu-o em sua sala. Convidou-o para conhecer o restaurante.
“Que diabos é isso?!” Jonathan reparou que o homem piscava de uma maneira muito estranha. Era uma piscada normal, como a nossa, e , lembrando um réptil, três piscadas muito rápidas para cima!
Inquietou-se.
O solícito gerente exibiu os documentos ao fiscal. Tudo em ordem.
Atestados de saúde, licença, recolhimento de impostos, tudo impecável.
O careca simpático com piscadas alienígenas levou o visitante para conhecer as dependências.
- Por aqui sr. Jonathan, levarei o senhor para a nossa cozinha.
Perfeita! Totalmente branca; uma infinidade de cozinheiros e assistentes todos de branco; toucas, luvas e máscara. Lembrava um hospital de luxo. Os instrumentos de cozinha brilhavam.
O primeiro estabelecimento a estar tudo em ordem.
O fiscal implacável perguntou se havia um prato especial em meio a tantos.
- Ah, sim. Existe sim. É um prato que preparamos com um dia de antecedência. O cliente deve solicitá-lo e no dia seguinte degustá-lo. Gostaria de experimentar?
- Claro! Será um prazer.
Impressionou-se com tudo! Os clientes o olhavam muito. Percebeu as piscadas em vários funcionários. Quando estava inspecionando reparou que alguns o olhavam de esguelha. Tudo bem, podia ser impressão.
No dia seguinte foi experimentar o tal prato, homônimo ao restaurante: Labinak.
Era um cozido flambado de carne importada da Rússia. Servido em uma tigela de bronze.
O gerente afirmou que era um prato artesanal e muito antigo. Degustado pelos nobres de outrora.
Saboreando o bonito cozido perguntou ao gerente, que o acompanhava, que carne era aquela.
- É bovina da espécie asiática como os temperos. Isso lhe confere um sabor diferente do que estamos acostumados.
- Eu gostaria de levar uma amostra para análise em laboratório.
- Mas é claro! Providenciarei num instante. – Estalando os dedos solicitou a um garçom que logo trouxe a amostra. Terminada a refeição ambos levantaram-se.
- Em todos os anos de minha vida como fiscal nunca vi nada igual. Impecável. Nenhuma infração. Tudo em ordem. Pedi a amostra por curiosidade, tenho certeza que – Mas que droga! Aquela piscada de novo!! - não teremos nenhum problema.
- Claro, estamos a sua disposição sr. Jonathan. É nosso convidado, não precisa fazer reserva. Venha quando quiser.
- Agradeço muito a hospitalidade e tenho certeza que voltarei.
Despediram-se. Ao encaminhar-se para a saída novamente reparou nos olhares estranhos e nas piscadelas. Diabos!
A análise do laboratório saiu.
- Jonathan - disse o analista - Eu acho que fizeram uma brincadeira de muito mal gosto com você! Essa carne não é de um animal bovino e sim carne humana!
- O quê?! Impossível! deve haver algum engano.
- 99% de certeza.
- Carne humana!! Mas como...não é possível! Eu estive lá, está tudo em ordem!
- Pegue uma outra amostra. Desta vez confira!
- Eu vou para lá imediatamente.
O gerente atendeu-o.
- Ora se não é nosso amigo! Seja bem vindo.
Foram para o escritório.
- A análise do laboratório identificou a sua carne bovina como humana! O que me diz sobre isso?
- O seu laboratório está equivocado. Obviamente. Acompanhe-me. Vou mostrar-lhe nossos freezers, assim poderá checar por si mesmo e pegar a amostra que quiser. Ok? - Sorriu. Piscou.
- Ok.
Foram. Ao fundo uma pequena porta escondia uma escada.
- Siga-me sr. Jonathan, por aqui por favor.
O corredor parecia não ter mais fim. O fiscal percebeu a mudança de ares. Do simpático para o sinistro. Do amigável para o cruel. O ar estava esfriando. Uma atmosfera maligna e insana pairou sobre ele. Passos. Um baque surdo. Dor cambaleante. Sustentando-se na parede sebosa viu o vulto enorme com o porrete se aproximando e numa fração de segundo ... PLAM! Apagou.
O corpo foi arrastado para uma sala azulejada até o teto em negro. Sete homens encapuzados seguravam velas vermelhas ao redor de uma mesa metálica. Uma espécie de banheira, imunda e fervendo estava no canto, exibia um líquido viscoso e borbulhante.
Aquela canção não era humana. Emanava o mal a cada sílaba. Amedrontaria até mesmo Miguel, o Arcanjo!
Colocaram o corpo, ainda vivo, dentro da negra banheira borbulhante. Debateu-se na escaldação. Um dos açougueiros malignos ergueu-o como um boneco de pano e esmagou o pescoço. Enfim, abatido e escaldado. O cadáver foi colocado na mesa central. Imolaram-no. Torceram a cabeça pendente e o sangue foi drenado pelos dispositivos da mesa. Escorria para um recipiente próprio.
Ao redor do corpo as velas foram postas. Uma a uma. O líquido vermelho, ainda quente e não coagulado, foi servido e sorvido pelos sete em taças de cristal num brinde macabro.
Um outro entrou. Alto e forte, barbudo, roupas ensangüentadas. O açougueiro mor. Desossou o corpo de Jonathan. Tirou toda a gordura, cortou-o em pedaços e pôs numa enorme panela. Com temperos asiáticos o prato seria servido numa travessa de bronze.
Em algum lugar da eternidade...
- Que lugar é este? - Jonathan perguntou intrigado e olhando para todos os lados. O corpo estava todo dolorido. Doía-lhe até mesmo os ossos! A cabeça parecia explodir!
O ambiente enfumaçado cheirava a comida queimada e carne podre. Mesas foram aparecendo em seu raio de visão. Não tinha ninguém. Parecia... um restaurante?!
Jonathan sentiu uma imensa fome. Seu estômago contorcia-se, precisava comer e depressa! Colocou a duas mãos na barriga sentindo imensas pontadas. Sentou-se gemendo. Percebeu, no meio da fumaça, que alguém se aproximava. O piso fervilhava com ratos, baratas, moscas e vermes. Carcaças borbulhavam larvas de mosquitos. No bar bebidas estragadas espumavam putridamente.
O seboso garçom não era humano. Suas mãos encaroçadas, peludas e fendidas trazia uma bandeja. Ao se aproximar esmagou vários vermes. Abaixou-se. Pegou um bocado e comeu, babava. Jonathan então pôde ver sua cara. Era um homem com cara de porco. Meio humano meio porco. A comida esverdeada e cheia de moscas era o cardápio.
Na fome imensa comeu. Acabou. Levantando-se a dolorosa voracidade voltou! O porco trouxe outra travessa tão podre quanto a primeira. A carne servida era uma gosma cinzenta. Comeu. Satisfez-se. Levantou-se. A dor no estômago! A fome. Sentou-se. O porco trouxe outros pratos, Jonathan comeu. Mais fome, o porco, mais comida podre, fome, porco, comida...
Uma mulher proximou-se.
Erguendo a cabeça, com a boca cheia de comida podre, pele esverdeada e doente, os olhos fundos, escuros e cansados demoraram um pouco mas, reconheceram a figura.
Era a dona daquele lugar. Inclinando-se sobre ele sorriu e sussurrou para o desgraçado:
- Sr. Jonathan! Bom apetite!
Saiu. Os vermes no chão se afastavam quando a velha passava. O porco vindo.
No endereço onde o Labinak´s Restaurante estava existia apenas uma casa abandonada com uma velha morta.
O corpo de Jonathan nunca foi encontrado.