Caçada Noturna
Uma bela fotografia da cidade. O rio podre contrastanto com os modernos edifícios. O enorme espelho, contrariando-os, duplicava-os com o céu, ora claro, ora escuro. Com o toque sutil da imagem o negror e a podridão ficavam submersos na fétida massa morta e borbulhante.
Uma imagem do modernoso estado social.
O fedor ácido fecal empesteia os barracos marginais com viadutos como tetos, infecciona o restante de vegetação sobrevivente nas bordas. Assassina animais que dependem do rio.
Adiante, o lixão. Mina de ouro para ratos e baratas de todos os tamanhos. Crianças maltrapilhas e encardidas, abandonadas, chafurdam na imundície.
Meio sanduíche, jogado fora pelo nojo da maionese, é um banquete às margens do infecto. O sortudo de cabeça grande e magricela o encontrou. Limpa-o com cuidado e, antes de devorar divide-o com os irmãos. Absorvem o sabor com inocentes olhos fechados. Devagar. O deleite deve durar ao máximo!
No abismo escuro da massa negra apodrecida dois etéreos olhos, invisíveis, observam. A aura alaranjada do cabeçudo despertava na criatura, fome.
Um dia ensolarado e calmo. O ser sombrio espera a hora certa. Que aura aquela! Uau! Que aura!
O magricela morava num barraco, era noite, dormia em sua cama feita de caixotes no chão de barro batido e com um cobertor todo remendado. Ele e mais quatro irmãos no mesmo lugar e o mesmo cobertor. A mãe no chão, encolhida sobre um papelão, lembrava uma cadela. O pai ..., bem, marcou um encontro com a irresistível, ardente e arrasadora cachaça.
Na total escuridão aqática e pestilenta algo se move. A água salobra permanece incólume. A criatura imaterial, que alimenta-se sem morder ou mastigar, emerge como uma ave pescadora. O manto negro paira sobre o rio, a luz parecia ser absorvida pelo negror monstruoso. O rio não a refletia.
Uma massa de veludo negro, espinhenta e cheia de peçonha. Os espinhos lembravam parafusos macabros na cabeça e nas costas. Muitos deles. Rubros, negros, sombreados em cinza, alguns entortados. Os magentos olhos, gotejantes de veneno enxergavam longe. Os parafusos funcionavam como radares. Procuravam as mais belas auras.
No sobrevôo baixo pela favela um barraco chamou-lhe a atenção. Os mais sensitivos podiam sentir sua presença. Nos terreiros, quando se aproximava de um, alguns macumbeiros pressentiam e muitas vezes olhavam diretamente para ele.
Aaahhh! Que aura maravilhosa! Em cima do barraco o corvo do inferno, parado, olhava para baixo. Seu nome era Chyd. Vibrou!!
Atravessou o frágil teto. Uma entidade maligna. Antiga. Mais morta do que viva. A aura. Oh! A aura!! Tão clarinha! Chyd paira sobre o garotinho que emana um brilho alaranjado. Farejou, sentiu. Seus braços eram dois filetes estendidos. Um dos espinhos atarrachados em seu dorso se solta e flutua, o filete direito o enrola. Olha mais uma vez a luz alaranjada emanando, que prazer! Espeta o parafuso negro no crânio do garoto e o torce até cravá-lo bem fundo. A peçonha inicia seu trabalho. O garoto começa a arfar e seu sono é atormentado. Uma fumaça negra o envolve. Engole sua aura. Apagando sua luz. Falindo, os pulmões secretam catarro, o tórax chia e a tosse sufoca. Mortalmente doente. Sua aura agora é negra e pertence ao porco espinho dos infernos.
O vapor enegrecido que emana do garoto banha Chyd que se delicia. Como areia numa ampulheta a vida infante se esvai.
Que noite agradável! Não precisa mais atacar ninguém. Que aura! Chyd sai tão sinistra e sorrateiramente como entrou. Imperceptível.
No barraco, o garotinho ainda sofre. O oxigênio encontra bloqueios, o cérebro se amortece. Artérias se rompem e banham a massa cinzenta. O coração bombeia ar e se fende. O corpo em colapso estica-se e morre. No crânio da criança o nefasto espinho adquire uma tonalidade escarlate.
No limbo a escuridão é papável. Uma gelatina enegrecida e pútrida entra em seus olhos, boca, nariz e ouvidos. Não consegue gritar. E o que ele ainda não sabe: isso não é mais um pesadelo.
O espinho alaranja-se. A escuridão o toma por completo e ele então flutua. Faz parte dela agora. O garoto do sanduíche não existe mais. Um cadáver no meio dos vivos. Um a menos para comer na miserável casa. Um marginal a menos nas ruas no futuro. Um a menos para competir no lixo.
O choro silencioso da mãe pela manhã. Os olhos vagos dos irmãos. Ele se foi. Para onde e como ela não sabe. Na mesma manhã foi enterrado no mesmo lixão que ele comeu o sanduíche.
Do túmulo um filete escuro invisível sobe e do fundo do rio Chyd o vê. No crânio do menino o espinho está com uma luz brilhante e bem laranja. Amadureceu. A colheita será esta noite.
O negror, somente por prazer desliza pelo rio, entra em esgotos. Saindo em vasos sanitários de algumas casas somente para ver auras vermelhas, verdes ou brancas. Todas saborosas! As alaranjadas são as melhores! Outras cores como: azuis, podem indicar câncer e as roxas, inflamações. As negras, morte.
No dia seguinte, no lixão, algumas crianças procuram restos de comida e na escuridão apodrecida Chyd observa.