Xadrez
Hoje resolvi te contar uma história que, há quarenta anos, guardo comigo.
Morava com meus pais e cinco irmãos em três cômodos. Meu pai trabalhava numa indústria. Ganhava pouco. Minha mãe não trabalhava. Um infarto fulminante levou o velho.
Mamãe arranjou um emprego de doméstica e eu, sendo mais velho, fui a luta também. Com doze anos consegui uma colocação de contínuo num escritório contábil. Bons tempos aqueles! Conheci muitos lugares. Muito legal!
Foi nessa época que mamãe, ainda nova, arranjou um traste para namorar. Depois de um tempo, para minha desgraça, casaram-se.
Sempre apoiei minha mãe para não permanecer sozinha o resto da vida. Ela escolheu esse calhorda, eu a respeitei.
Para mim abriram-se as portas do inferno!
No namoro ele era um doce de coco com caramelo! Solícito, simpático, um gentleman! Pois sim! Quando o lazarento foi de mala e cuia para casa ...
- Vá tomar no cu moleque! Essa mulher é minha! – Gritou com meu irmão de três anos que, com sede, pediu água para mamãe. Estava com sede.
Quando o vi soluçar silenciosamente num canto meu espírito se abateu. Fúria e ódio brotaram na terra fértil da minha alma. Abracei meu irmão. Dei-lhe água. Falei para ele ir para a rua com os outros.
Armei-me com um pedaço de madeira disposto a abrir a cabeça do desgraçado. Eu tinha doze anos.
- SEU DESGRAÇADO! – Expectorei e voei em cima dele.
Levei um murro no nariz. Caí sentado.
- Filho!! – Mamãe gritou.
- Esse moleque queria me bater com o pau! Tive que derrubá-lo! – Latiu.
- Tudo bem Len. Tudo bem.
- Você vai ficar do lado dele mãe?! – O nariz pingava.
- Vamos lavar esse nariz filho.
Longe da vista dele.
- Filho! Você não pode agredir as pessoas assim!
- Mãe!! Ele me agrediu! Agrediu o Fred! Agride a senhora ...
- Chega! Ele é meu marido! Precisamos dele aqui! Resista.
- Quando arrumar um emprego melhor, vou embora daqui. Sentirei falta apenas dos meninos. Sai! Não precisa me ajudar. – Resignei-me e como uma ostra me fechei.
Desisti de enfrentá-lo. Desisti de amar quem quer que fosse. Desliguei-me de tudo e todos. Trabalhava, estudava de noite. Aos sábados lia e escrevia. Não conversava com ninguém mais. Nem com Fred, a quem eu amava muito. Amava. Era melhor assim. Pelo menos na minha cabeça adolescente.
Quatro anos depois...
Fiz uma ficha num escritório de advocacia. Chamaram-me. Fui contratado.
Assistente de Advocacia. O dono do escritório era o Dr. Eduardo. Muito jovem, bonito e chato. Mimado. Nojento. Nascido em berço de ouro, teve de tudo na vida, papaizinho montou o escritório e blá, blá, blá!
Bem, ganhando mais, aluguei um quarto para mim. Era uma espelunca! Sentia-me livre! Pela primeira vez era dono do meu nariz. Mamãe e os meninos choraram com minha despedida mas, sempre os visitava quando o filho da puta do débil mental não estava. Levava doces e um pouco de dinheiro sempre que podia. No fundo sempre os amei e sempre o odiei.
Por influência do mimadinho conheci a Arte de Caissa, o jogo dos Reis.
- Sabe jogar xadrez quadrúpede? – O chefe me perguntou.
- Não. Gostaria de aprender.
- Posso ensiná-lo, se quiser.
- Claro que quero! – Eu nem ligava para os xingamentos. Aprendi a me encapsular.
Aficcionei-me! Comprei “Mi Sistema” do Ninzowitch, Xadrez Básico, e outras literaturas clássicas do jogo. Depois do horário eu e o coisa jogávamos. Ele era muito bom! Não conseguia ganhar dele.
O xadrez é um jogo de estratégia. É uma batalha em sessenta e quatro quadrados. A tensão é constante. Diferente da dama, cada peça se move de um jeito. Os peões por exemplo, são peças fracas e as primeiras que se sacrificam, só andam para frente, comem as outras peças dos lados, transformam-se em peças de maior valor quando alcançam a outra extremidade. O objetivo do jogo é encurralar o Rei, daí o xeque-mate. As regras básicas aprendi com o chato. Depois fui estudando e aprendendo mais.
O Dr. Eduardo era o mais jovem dos advogados da cidade. Sua inteligência era admirada pelos colegas. Aos 26 anos de idade foi considerado o melhor advogado. Não perdeu nenhum caso! O orgulho agora era sua marca principal.
Sua belíssima noiva o traiu. Coitado. Jovem, inteligente, promissor e corno! Amava demais aquela vaca! Seus pais eram muito legais e me adoravam.
Uma segunda-feira Dr. Eduardo entrou no escritório todo desalinhado. Não era do seu feitio. Elegância era um hábito. Cabelos desgrenhados, roupa amassada. Seu humor estava péssimo. Imagine as humilhações que eu passei! Vou apenas falar uma delas:
- Sabe – Começou o advogado comigo – Estou pensando em fazer pós-graduação em Antropologia.
- Puxa! Que legal Dr. Eduardo ... – Respondi.
- Assim, aprenderei melhor em como pessoas como eu devem entender e tratar pessoas como você. – Saiu.
E assim a semana toda!
Sexta à noite cheguei em casa estressadíssimo. Todos temos limites! Fiz algo que marcou minha vida e a dele.
Peguei um giz vermelho e desenhei um pentagrama no chão do meu quarto. Acendi sete velas negras. Sentei bem no meio fechei os olhos e roguei:
- Pai das Sombras; Entidade das Trevas vingativa e amaldiçoada; Invoco e suplico sua sabedoria e força. – Cortei-me. Coloquei o sangue num copo e bebi – Em sua homenagem bebo meu sangue. Ouça-me! Atenda-me!
Repeti a prece amaldiçoada por sete vezes. Um vento frio cortou-me. A atmosfera eletrificou-se. A fumaçazinha das velas ganharam vida e acima de mim tomaram a forma de uma cabeça de bode. Dentro da minha cabeça uma voz. Disse querer algo em troca. Estremeci. Queria meu dedo polegar. Cortado na hora. Sangrando. Deveria ser jogado na fumaça e com vontade.
Peguei uma faca. Coloquei minha mão direita sobre a mesa e forcei a faca sobre o dedo. A faca encontrou o osso. A coisa sorria. Terminei. O sangue jorrava. Joguei o dedo para ele e enrolei a mão numa toalha.
A fumaça sorriu de novo. Engoliu o dedo. Na minha mente disse que meu pedido seria atendido.
- Desejo, com todas as minhas forças, que o pior pesadelo do Dr. Eduardo se torne realidade.
- Assim seja! – Disse a voz.
Minha mão até então sem dor alguma desatou a doer, e muito! Ainda sangrava, peguei uma das velas e cauterizei o ferimento. Urrei! Mas consegui.
Vinte dias depois ...
Segunda. Dr. Eduardo não chegou. Estava doente. Trabalhava há três anos com ele e fui promovido.
Terça, quarta, o doutorzinho estava acamado num hospital, não sabiam o que era. Sua pele escureceu, ficou perebenta e fedida. Tossia sangue. Eu estava adorando!
Na quinta comprei meu tão desejado conjunto de peças Stauton. Era um sonho realizado! As melhores peças de xadrez. Magníficas! Talhadas a mão. As peças negras eram de uma madeira escura e não pintadas. Simplesmente lindas!
Na sexta Dr. Eduardo morreu. Ninguém explicou sua súbita doença e morte. Um caos na família. Senti uma pontada de culpa quando seu pai me convidou para trabalhar com ele aumentando mais meu salário.
Era uma noite fria e quieta. Da janela do meu novo apartamento podia-se ver a quietude. Estava pensando na guinada que minha vida estava dando. Um salário razoável, ano que vem entraria na Faculdade de Direito com bolsa! Apartamento novo! Muito legal. Meus devaneios foram interrompidos quando ouvi algo no quarto. Um gemido. Muito baixo. “Mmmmmmmmmmmmmmmm.....” – Fechei tudo e fiquei em silêncio. “Mmmmmmmmmmmmmmmmm...” – De novo!
- O que é isso – Alarmei-me e comecei a procurar de onde vinha o gemido agonizante. “MMMMMMMMMMMMMMM!!!! ....” – Mais forte agora! Parecia que alguém estava com a boca costurada e desesperada por ajuda. Encostei os ouvidos nas paredes vizinhas. “MMMMMMMMM”
Não! Não era os vizinhos. Era de dentro do meu apartamento. “Mmmmmmmmmmmm.......” – Parecia que queria ser achado. Não parava. Vinha de dentro do meu armário!
Trêmulo e pálido abri devagar as portas do armário do quarto. “Mmmmmmmmmm....!!” Mais alto e longo. Que agonia!
Coloquei a cabeça dentro do armário e não vi nada. Escutei de novo. Embaixo de mim. “Mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm”
Meu Deus! O som vinha do meu estojo de peças de xadrez! Encostei os ouvidos: “Mmmmmmmmmmmmmaaaaaaaaaaaaaa ......” – Sobressaltei. Ouvi formar uma sílaba. Ouvi de novo. No susto derrubei o estojo e as peças rolaram para todos os lados. Suando e arfando ouvi: “Mmmmmmmmmaaaaaaaaaaaaaallllllll........” – Comecei a recolher as peças. Contei-as. Tinha 30, faltavam duas. Rolaram para baixo da cama. Peguei os dois peões. Um estava diferente.
Estava quente e pulsava. Cerrei os olhos e olhei bem para a peça entalhada. Esse conjunto de xadrez era artesanal. Reis, Rainhas, Bispos, Cavalos e peões eram estátuas ricamente entalhadas na madeira. Os peões eram soldados com roupas e armas. Olhei bem para aquele peão. Permaneci calado. Devia estar mais branco que um vaso sanitário! Tremia e suava frio. O rosto do peão era do falecido. E gemia.
Ainda tremendo peguei o estojo e tranquei-o no armário.
Passaram-se dois anos. Os pais do Dr. Eduardo faleceram. Um de câncer. Outro de infarto. O pai dele deixou a herança toda para mim. Não tinham mais ninguém.
O apartamento onde vivia está trancado até hoje. Bem como o armário e as peças.
Isso faz quarenta anos. Moro sozinho numa bela residência e ainda escuto o gemido que saiu do estojo, só que mais audível: “...mmmmmmmaaaaaaaaaaaaaaallllllllldddddddggggggiiiiitoooooooo...”