Constução Civil

Construção Civil

Não sei se realmente foi isso que aconteceu.

Na minha idade esquecer-se é um hábito. Ultimamente tenho tido umas paredes branqueadas na velha cachola. Meu bestunto não é mais o mesmo.

Moro nessa rua há 85 anos. Vi-a engatinhar. Conheci pessoas admiráveis. Outras terríveis. Outras tantas que morreram. Incluindo meus dois filhos e minha mulher. Conto com 98 agora. Vivo completamente só. Há pouco conheci um jovem. Visita-me sempre que pode. Conversamos durante muito tempo. Depois vai embora. Chama-se Clayton. Um bom rapaz.

Nos últimos meses, talvez anos ... maldição! Não me recordo! O barulho da construção sempre me irritou. Os desgraçados trabalham de noite! Céus! Que inferno! Marteladas, britadeiras, escavadeiras, concreteiras, zum-zum-zuns e trololós. O que eu gostaria nessas horas é que a senilidade afetasse meus ouvidos! Mas, não. Escuto como um gato. Até o que não quero.

O que me deu um pouco de sossego nessas barulhentas noites eram as visitas do Clayton. Faz tempos que não vem. Será que o que ele esperava veio buscá-lo? Sempre comentava de um comboio que o conduziria para não sei onde! Nunca entendi direito. Ele comentou, uma vez, que iria embora em breve. Tinha negócios em outros lugares. Realmente um bom rapaz! Gostaria de tê-lo como genro.

Anoiteceu. Daqui a pouco o inferno! Raios! Aí .... já começou! ...

- E aí Barba?! Mais concreto? – Gritou o crioulo troncudo lá de baixo.

- Não Binho, ainda não! Já-já: massa mole!!

Eu ouvia muitas conversas. Qualquer um ouviria aquela gritaria! Minha parede era colada com a maldita e demorada construção. O que me incomoda mais sabe o que é? Os outros vizinhos não escutarem nada! Diabos! Ainda não esclerosei! Não que eu saiba. Minha pressão é estável, não tenho problemas urinários, minha próstata está muito bem obrigado. Faço caminhadas diárias e alimento-me bem com verduras, legumes, frutas, arroz integral, aveia e carnes brancas e, acima de tudo, mantenho o bom humor! Dou um pau em muito jovenzinho por aí em termos de saúde física e mental. O que me atrapalha às vezes são as falhas de memória. Muito comuns nessa porra de idade.

Costumo não pensar na morte. Apenas em viver. Quando ela chegar vai me achar muito bem. Aí irei com ela para o outro lado. Enquanto isso, vivo. E vivo bem. As perdas que eu tive me desestruturaram um tempo. Mas, a vida continua. E eu continuei com ela. Barulho lazarento!

- Bel! Ôôô Moacir, cadê o Bel!

- Sei lá! Estava com o Enja.

- Grande! Cadê o Enja?!

- Estava ali com as plantas conversando com o Bel.

- Lá vamos nós andar a construção inteira de novo ....

Eu já sabia o nome de um monte deles. Reclamo às vezes da minha memória, mas ouvir a mesma coisa várias vezes! Além de encher o saco! Era Bel; Enja era o engenheiro; Moacir; Cacimba; Cabeção; Ludeco; Negão; Zumbi; Grota; Timba o eletricista; Bebê o tratorista, e aí vai meu amigo ...

- Rapaz! E aquela morenaça?! Comeu?

- Lógico que comi Negão! Não resistiu ao papai aqui!!!

- Que firmeza!

Quando envelhece o sono diminui. Quatro horas de sono para mim são suficientes. Gosto de deitar tarde. Eram dez horas. Bateram na porta.

- Clayton!

- Olá seu Carlos. Demorei para voltar mas, estou aqui de novo. – Sorrimos.

- Que prazer meu amigo! Entre, entre.

- O senhor deve ter esperado bastante minha volta não?

- É meu filho, esperei sim. Você sabe, velho e sozinho. É chato às vezes.

- Compreendo.

- Mas, me diga! Conseguiu aquele trabalho?

- Ainda não. Me recusaram. Digo uma coisa seu Carlos. Vou conseguir! Fiz técnico em Construção Civil e tenho certeza que me aproveitarão melhor. Luto por isso desde ... faz muito tempo! Agora percebo quanto tempo faz!

- O importante filho é não desistir, jamais! Corra atrás do seu sonho e sonhe, sonhe alto. Sabe Clayton, eu trabalhei na grande indústria de automóveis. Queria ser Diretor. Depois de trinta anos na mesma empresa alcancei meu objetivo. Nunca desisti. Aposentei-me como diretor já faz mais de vinte anos. Alcancei o que queria. Casei, criei meus filhos. Não planejei estar só hoje. Mas a fatalidade pode alcançar qualquer um. Nunca conheci meus pais. Saí do orfanato direto para a Carettoni S.A., primeiro e único emprego da minha vida. Nunca desisti. Nunca. Nem de viver. Sou velho, mas, saudável!

- Gostoso ouvir o senhor! Sempre respeitei os mais velhos. Acho legal as histórias e a experiência.

- Tenho que ir seu Carlos é tarde.

- Sim, claro. Volte quando quiser!

- O problema é que sempre quero!

Acredito que adotei esse rapaz. Substituí meu filho mais velho por ele. Amava-o. Ah não! Essa barulheira de novo!

Só ouço a balbúrdia dessa maldita construção quando estou só. Engraçado isso! Nunca perguntei ao Clayton se ele ouve alguma coisa e mais, nunca fui ver o que estão construindo! Fica bem ao lado da minha casa. Taparam com compensados e pintaram tudo de preto. Amanhã vou olhar. Não, vou olhar agora!

Parece que estão construindo um edifício. Pelos meus cálculos estão no terceiro andar e terá uma bela recepção. Meu raciocínio está gasto mesmo! Sabe, nunca parei para pensar nessa construção. Há muito, muito tempo constroem algo e parece não sair do lugar. Espere! Quanto tempo faz que ouço esse prédio ser construído? Céus! Faz oito anos! Oito! Estão no terceiro andar? Há algo errado. Vou falar com alguém. Não havia nenhuma entrada.

De repente estava dentro. Todos pararam o que estavam fazendo. Todos na mesma hora. Todos me olharam. Ao mesmo tempo. Opa! Vieram em minha direção com martelos, picaretas, britadeiras, vagarosamente avançavam. Calculei bem a situação e dei no pé rapidamente! Parei na frente de casa. Não me seguiram. O barulho cessou. Não tenho a mínima idéia de como entrei ou saí dali. E quer saber? Não me importo.

Entrei em casa. Duas da manhã. Dormi.

De manhã repensei minha aventura ... Opa! Estou me lembrando de algo. Meu Deus! Faz muito tempo ...

- Olá meu filho! Como está a construção?

- Bem pai. Ensinando o filhote como se faz.

- Você será um grande engenheiro meu filho!

- Atendi um estagiário essa semana, chama-se Clayton, tem muita vontade. Vi-me nele!

- Legal! Já está até dando treinamento!

- Carlos! Filho! O almoço está pronto.

- Já vamos querida. Vamos lá Enja! É, meu filho um Engenheiro. – Baguncei seus cabelos.

- E a Melinda, voltou da faculdade?

- Não pai, hoje ela tem um trabalho com as amigas. E à tarde estágio.

- Bem, tenho que voltar ao trabalho! Tenho uma visita a um cliente multinacional. Não me espere para o jantar querida. Jantarei com o presidente da Companhia.

- Tá bem Dr. Carlos Diretor Executivo da Carettoni S.A. Estou orgulhosa de você!

- Obrigado! Eu me orgulho de ter uma família como essa! Beijo a todos.

- Pai, hoje a mamãe vai verificar a obra.

- Iiiiii meu filho! Auditoria na certa! – Sorri.

Naquela tarde todos foram visitar a Construção ao lado da nossa casa onde meu filho, Eduardo, chefiava. Nunca mais os vi com vida. Isso faz ... faz ... sessenta anos?! Céus! Quanto tempo.

De tarde fui até o Clube de Xadrez. Gostava de jogar com o Mulas ou o Pelikian. Aprendi muito com eles. Não queria enfrentar a minha realidade. Comecei a fugir do que me lembrei. Não, não pode ser. Não aceito. Não dá!

Pela primeira vez na minha vida, estou apavorado. Seria a senilidade? Sei que minha memória falha de vez em quando, mas, isso? Não, não pode ser...

Voltei para casa de noite. Encontrei o Clayton na entrada. Esperava-me, mas eu não. Confesso a vocês que não sei o que senti nesse momento. Quase voltei. Não queria encará-lo. Nunca mais. Não queria vê-lo nunca mais. Acenou para mim. Acenei de volta. A merda estava feita. Arrastei-me até ele. Meus pensamentos embotaram. Minhas emoções eram ... sei lá. Não sei o que senti.

- Olá meu amigo! Esperou muito por mim? – Falseei.

- Não seu Carlos. Na realidade acabei de chegar.

- Bem, vamos entrar. Quer um café? – Falseei de novo. Sem encará-lo.

- Não, obrigado estou bem. O senhor está com um semblante preocupado. Há algo errado?

- Clayton ... Não, não é nada. – Falseei novamente.

- Está bem. Se o senhor diz, então não deve ser nada.

Não sou homem de me amedrontar ou recuar. Nessa noite eu quase sucumbi mas, decidi enfrentar. Ele estava na sala. Eu na cozinha preparando um suco. Desisti do café. Vamos lá então.

- Clayton. Há quanto tempo estuda Engenharia Civil?

- Puxa, seu Carlos, uns três anos.

- Há quanto tempo nos conhecemos?

- Nossa seu Carlos, faz muito tempo ... fomos apresentados pelo seu filho. Jantamos juntos e ...

Fui para a sala com meu suco. Não ofereci a ele. Não precisava oferecer. Sentado a sua frente encarei-o pensativo e muito, muito sério.

- Clayton. Quanto tempo faz que meu filho morreu?

- Ahh, seu Carlos, uns anos eu acho. Uns, oito, talvez nove. Porque a pergunta? Estou intrigado. O senhor está bem? Está um pouco pálido.

- Está tudo bem, apenas um pouco apreensivo talvez. – A barulheira das máquinas e conversas e risos iniciaram.

Encarei-o de novo. Tomei um gole do meu suco sem tirar os olhos dele. Ele dos meus. Silêncio.

- De onde vem Clayton?

- Como assim?

- Quem te enviou? – Eu estava ansioso demais. Inclinei-me para frente e continuei a encará-lo .

- O quê?

- Veio para me atormentar?

- Eu ... eu ...

- Como me encontrou?

- Eu ...

- O que você quer comigo Clayton?! – Apontando o dedo para ele. Levantando a voz.

- Seu Carlos ... Eu ... eu

- Desembucha peste! De onde você vem, o que você quer e quem te enviou? DROGA!!!

- S-s-seu Carlos, não sei do que está falando ... Eu estou aqui por que quero estar ... Conheci seu filho e ... Quando ele morreu eu... eu pensei em fazer companhia ao senhor e ...

- MENTIRA! VOCÊ VEIO PARA ME ATORMENTAR!! ATORMENTAR!!

Ele se levantou. Olhou-me com pena e surpresa. Eu ainda não tinha certeza se era ele mesmo.

Acalmei-me um pouco, sentei e o convidei a fazer o mesmo.

- Sabe esse barulho? Escuto-o todas as noites.

- Que barulho seu Carlos?

- Você não o ouve?

- Não. Não ouço nada.

- Não escuta as britadeiras nem as marteladas?

- Não.

- Há uma construção ao lado da minha casa. Trabalham muito de noite. É uma barulheira infernal de várias máquinas além do conversê dos peões.

- Seu Carlos, o senhor toma algum medicamento?

- Não. Não preciso. Ainda. Depois dessa noite eu já não tenho certeza de nada.

- Clayton, faça-me um favor. Vá embora. Estou muito cansado hoje. Pode voltar amanhã se quiser. E ... me desculpe. Ando preocupado. Nada demais.

Desconcertado e com tristeza nos olhos ele se foi. Não tive coragem de falar mais nada. Precisava ter certeza. Na manhã seguinte fiz uma pesquisa. E lá estava.

Na noite seguinte Clayton voltou.

- Faz quanto tempo que meu filho morreu Clayton?

- Uns cinco ou seis anos. Não me recordo bem.

- Você foi estagiário dele não é?

- Sim, fui sim.

- E desde então tem se dedicado aos estudos?

- Sim. Desde que conheci o Eduardo venho estudando e me preparando.

- Clayton. – Ele me olhou e, pela primeira vez, percebi o vazio em seus olhos. – Meu filho morreu faz sessenta anos.

Passou-se um minuto. Ele de cabeça baixa. Aos poucos ergueu-se. Incrédulo ele colocou uma das mãos na boca e com a outra me dizia não. Derrubou a cadeira que estava sentado quando saiu correndo para a porta. Nunca mais me visitou.

Sabe como minha família morreu? Vou contar-lhes.

Narrei um diálogo deles. Você se lembra? Pode olhar se quiser. Logo acima.

Minha mulher, Iolanda, iria até a Construção do meu filho. Todos estavam lá. Eu estava visitando um cliente lembra? Embaixo do terreno existia lixo tóxico escondido por algum patife. E mais, uma tubulação clandestina de gás de cozinha. Como era ilegal, a tubulação não tinha reparos. Estava podre. Uma das britadeiras encostou em algo. O algo perfurou os tubos enferrujados de gás que encontraram uma faísca. Foi o fim! Um jato de fogo com um metro de diâmetro foi lançado em cima dos trabalhadores. Os andaimes, as ripas, as escoras, tudo que era de madeira queimou rapidamente, bem como os que eram de carne. Os produtos químicos lançados no solo, durante todo o processo do alicerce, lançava um, até então desconhecido, gás inodoro e altamente inflamável na atmosfera da Construção. O dragão enterrado causou um incêndio em pleno ar. Fogo invisível queimava em todos os lugares da Construção.

Ninguém sobreviveu. Saldo de sessenta e três presuntos torrados. Incluindo minha família e o do Clayton que chegou bem na hora da britadeira e o algo. Levou uma rajada que seu corpo em chamas batendo na parede, aterrissou inerte do outro lado da rua.

Minha casa foi uma das únicas a agüentar. Recebi a notícia no mesmo dia. Voltei correndo para ver o horror. Alguns meses depois as visitas do Clayton começaram. Eu não me lembrava direito dele.

O amaldiçoado barulho também começou nesse período.

Ainda ouço o barulho da construção. Olhando da pequena janela que abri, vejo meus filhos e minha mulher conversando. Todas as noites. Uma vez acenaram para mim. Com os braços chamaram-me para ir até lá. Ainda não fui. Talvez eu vá.

O Clayton nunca mais me visitou. Muitas vezes vejo-o caminhando do outro lado da rua. Parece esperar algo. O Comboio talvez. Os livros embaixo do braço.

Olho os trabalhadores. Trabalham, trabalham na Construção Civil de um edifício que não passa do terceiro andar. Há mais de cinqüenta anos.”

Na rua onde seu Carlos morava há somente um lado habitável. Depois do acidente o lado direito inteiro da rua foi lacrado pela Vigilância Sanitária e a Polícia Federal.

Há sessenta anos atrás a manchete do noticiário local:

Suicida-se o Novo Diretor Executivo da Carettoni S.A.

Explosão violenta mata família e amigos do mais novo executivo da Companhia

Alex Holy Diver
Enviado por Alex Holy Diver em 14/10/2008
Código do texto: T1227630
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