Sem Nome
“Eles sempre deixam a porta aberta... hoje eu vou lá!”
Um vento frio passeava lentamente pela rua. Orgulhava-se ao verificar que todos que recebiam seu abraço se encolhiam. Adorava a madrugada. Lá na frente, dobrando a esquina vinha um homem. Pelo menos protótipo de um. Franzino. Baixo. Cabelos curtos e negros como seus olhos, pés, pernas, braços e mãos. Parecia que tudo nele era curto. Inclusive sua cabeça que acomodava uma avelã cinzenta e atormentada. Só ele o via. O infeliz estava acompanhado. Lembrava-se deles. Bateram de frente. O sujeito estava sempre a perambular pela noite e não se incomodava com seu abraço e sempre, sempre estava acompanhado. Durante o dia a companhia sinistra e fria desaparecia com a estrela matutina. Gostava da luz do luar. Não! Não era romântico. Sim, era sinistro. Esquisito. Causava um frio na espinha de quem passava perto.
Sempre frio. Sempre calor. Sentimentos de indecisão, culpa, rancor e mais desgraçada obsessão. Um tomento perseguidor. Uma mania. Um impulso incontrolável. A avelã sem sossego. Totalmente atormentada. O assédio, estupro mental e anímico. O cerco das emoções positivas. O engano da Sombra Inconsciente disfarçada, o bloqueio da razão. O monstro se ergue depois da aparente derrota e arreganha os dentes num sorriso hediondo e então a compulsão emerge do abismo desolado, árido, frio e sombrio de sua alma - “Eles sempre deixam a porta aberta ...”
O transeunte invisível mas, sensível ao tato humano, parou seu passeio para observar. Raramente fazia isso. Não se importava com questões humanas. Não era seu departamento. Nesse dia resolveu observar devido a esquisitice do companheiro.
O rato humano parou em frente a um portão. Trancado. Trepou e pulou. Plam! Percorrendo distâncias o plam entrou pelos orifícios escuros atingindo o martelo que retumbou na bigorna acordando o cérebro que deu o alarme e os olhos cansados e argutos do velho abriram-se. O vizinho da direita, que tinha uma filha, sentou-se na cama alarmado, escutou algo? Talvez. Esperou um pouco mas, o atraente e irresistível Morpheus* venceu. Abraçou o velho acolhedoramente. Segundos depois roncava. Bem como os donos da casa que deixavam a porta aberta. Só que eles não ouviram nada. Ainda.
Bingo!!
A porta estava destrancada e mais, entreaberta!? Luz do corredor acesa?! Uau!
Pés pequenos e imundos apertaram o assoalho. Nenhum som. O rato gatuno ataca outra vez! No quarto os três dormiam. Mãe, pai e filha. Nas entranhas do pai a bexiga suplicava ao cérebro para aliviar-se e sempre o fazia de madrugada. Um baque! “Será o gato? Não, o gato não faz esse barulho”. Escuro, frio, um sobressalto interno. “Alguém entrou em casa!” Sem fazer barulho ergueu-se. Descalço também. O taco de Beiseball nas mãos. Esgueirou-se até a porta. Agachado olhou entre as frestas do rack vendo-o.
Nascido de uma família pobre o moleque que, para os padrões de beleza exigidos pela sociedade, receberia o rótulo de no mínimo ridículo. Para os preconceituosos, baiano. Mais tarde, respeitando ironicamente a individualidade, o chamamento dos amigos: Ratinho. Seu nome verdadeiro eu não sei. E sinceramente não me interessei por esse particular. Espero que não se importe.
* Morpheus, segundo a mitologia grega era o deus do sono.
Ratinho nunca teve brinquedos legais. Pelo menos comprados. Começou a roubar bem cedo. A ratoneira família não se importava com o que ele fazia ou deixava de fazer. Aliás, nem ligavam para ele. Um camundongo chamaria mais a atenção. Mas, não ele. Insignificante. Um tolo. Na escola um perfeito desastre. Desistiu de estudar na quarta série. Perambulava pelas ruas o dia inteiro. Pedia aqui e ali. De noite ia para casa. Que vida besta! Sem atrativos. Isso era viver? O único prazer que tinha era roubar. Quando suas mãos pequenas e larápias surrupiavam algo sem serem percebidas a avelã pueril liberava as enzimas da euforia e prazer. Ahhh, que delícia! Um orgasmo emocional. Passageiro. Precisava repetir. Tornou-se vício é claro.
Perto da favela numa encruzilhada a bruxa fez seus votos aos Exus. Frango frito, pinga, pipocas espalhadas, velas, tudo sobre um pentagrama feito a giz. Ele viu tudo. Sim, o mesmo que parou para olhar o Ratinho entrando na casa. Era caminho de seus passeios. Parou, olhou e deu a volta. Não quis apagar as velas bruxuleantes. Seguiu seu caminho.
Meia noite e moleque na rua. Foi apresentado para uma dama muito atraente. Cheia de graça, doce, suave, cheirosa, fácil e barata. Vestido verde esvoaçante com uma brisa própria saudava seu mais novo amigo deixando-o extasiado com sua suave aragem. A auto-estima dá um salto, a avelã é tomada de uma alegria, a boca se abre num sorriso. Prazer físico e emocional. Estava perto da encruzilhada quando a larica o dominou. Típico do final do prazer que a donzela verde sempre proporciona.
Há! Qual o quê! Um franguinho assado, pinga e cigarro tudo de graça! Sem ninguém olhando. Com essa larica toda? Só se for agora!
Esbaldou-se!
Em cima do trabalho bruxo algo foi invocado. Um ser disforme, uma mistura de negro-cinza-marrom como treva, carne podre e terra. Dois rasgos alaranjados no retalho negro esvoaçante sobre um manto igualmente ondulante se distinguiam da massa como os olhos da maléfica criatura. Ao lado mais dois trapos de escuridão balançavam. O predador encarava a presa como uma aranha sobre a mosca. O que a ondulava e a mantinha no ar era sua maldade. Vivia emergida numa fumaça ocre avermelhado com retalhos de uma fazenda enegrecida pelo tempo voando ao redor da coisa. Uma criatura das profundezas num aquário disforme flutuante. Aquilo era um sorriso? Não dá para descrever.
Desceu.
O líquido podre e carregado de maldade espalhou-se pelo chão, um dos retalhos que lembrava um braço acariciou a cabeça da outra criatura que devorava o frango amaldiçoado.
Sentiu o toque. Suave. Gostoso. Malignamente prazeroso.
“Beba” – O demônio sussurrou no timbre típico da linguagem negra, venenosa e úmida. Um filete do líquido maldito ergueu-se até a boca do menino que já estava em pé, influenciado pela perniciosa potestade aérea.
“Estamos unidos agora”. - Gorgolejou o negror cinza podre numa voz podre e cinza.
Olhos esbugalhados, corpo retesado. Imóvel. O garoto permaneceu ali alguns minutos. A avelã viajou no tempo. Viu batalhas antigas, reis bárbaros, bruxas e seus feitiços. Sobe as batalhas e as bruxas milhares de retalhos negros, cinzas, escarlates, âmbares, roxos. Voavam, o líquido maligno era espesso. Um enxame borbulhante negro-rubro-âmbar de perniciosidade.
O ritual acabou. O mal se instalou.
Não se lembra como chegou em casa e, exausto, Ratinho desabou no colchonete encardido sobre as tábuas em cima do caixote ensebado. Só acordou depois das duas horas da tarde.
Seus pensamentos estavam confusos. A obsessão aumentou e ele tinha a nítida impressão de estar acompanhado o tempo todo. A mania de perseguição o perseguia.
Ratinho tinha agora 13 anos. Furacões hormonais.
Como não era um belo exemplar da raça humana mas, fazendo jus à sua alcunha nunca namorou. Nunca beijou. Sempre desejou. Desejara sua irmã mais que tudo. 12 anos. E por incrível que possa parecer era mais ajeitadinha, tinha pernas mais grossas, bumbum empinado, morena, cabelos ondulados, peitos despontando naquele ar jovem-moça. Na gíria masculina bem gostosinha. E na cachola do irmão acompanhado irresistível.
“Você a quer?” – O funesto acompanhante indagou no seu gorgolejo sussurrante e nefasto.
“Posso dá-la a você! Sei que a quer. Convide-a para ir até o laguinho que eu faço o resto.”
Estava combinado.
O hospedeiro não percebia que sua pouca humanidade aos poucos estava minando-se. Como um bom parasita alimenta-se do sangue da vítima a coisa esquisita alimentava-se da alma do infeliz.
Árvores, pássaros, arbustos, um jardim natural cheio de tons de verde. Flores vermelhas e amarelas brotando nas árvores atraíam insetos e pássaros. No meio do local o céu refletido ondulava com o movimento dos animais aquáticos. Nos cantos do parque quase deserto, muita vegetação, uma atmosfera misteriosa e fria afastava as pessoas. Nesse dia a atmosfera estava ainda mais carregada com a presença apodrecida. O ar amortecia-se ao seu redor, o clima pesado e estático, totalmente envenenado.
- Vamos até ali Bianca, ninguém vai lá! Queria ver o que tem. – Pediu Ratinho.
- Tá bom!
Totalmente imersos no clima misterioso do lugar o irmão abraçou a irmã por trás e começou a acariciá-la.
- Ratinho! Oquecetáfazendo! – Tentando desvencilhar-se.
- Ah, vai Bianca! Deixa eu te dar uns pegas vai! Nunca catei mina nenhuma cênunqué?
- Não! Não quero! E vou embora daqui ...
“Não, não vai”.
Ratinho a segurou com força e ela não resistiu. Algo a dominou além do irmão. Não podia gritar nem se mexer. Foi forçada a se entregar, corresponder à volúpia do irmão que foi beijando-a, tirando sua roupa, lambendo-a. Seus braços antes inertes envolveram o corpo do irmão e logo o recebeu dentro dela. Na loucura do momento o rato foi dominado pelo prazer extenuante e eletrificado. Intensificado pelo prazer do monstro logo acima dele. Um cordão umbilical que emanava maldade ligava os dois. Um filete escarlate saía de trás da coisa e ligava-se na espinha do rato que na volúpia ensandecida e desenfreada num vai e vem fulminante sentiu um prazer jamais imaginado. Fechou os olhos e num total e incestuoso êxtase enforcou a irmã. Percebeu minutos depois. Deitado em cima dela após sua primeira explosão dentro de uma vagina de verdade reparou que Bianca não se mexia. Olhos saltados e língua para fora. Rosto arroxeado. Suas miúdas mãos fizeram o serviço.
O prazer mórbido. O desejo de continuar transando. Não hesitou. Novamente introduziu e começou tudo de novo.
Seguindo o filete rubro depararíamos com algo mais grotesco. A coisa acima dele flutuava em frenesi, arqueava-se, levantava o retalho que era sua cabeça, estendia os outros dois trapos podres dos lados. Orgasmo satânico. Podre, negro, cinza, escarlate. As cores misturavam-se no tufão diabólico que se tornou o aquário.
Esgotado, suado, fedido, sujo por dentro e por fora. Possuído. Ratinho estava deitado de costas no chão úmido ao lado do cadáver. Realizado! Que prazer sentira! Tinha que fazer de novo.
A coisa, que há tempos não se divertia tanto, olhou para a menina morta que sangrava pelo sexo. Estendeu os trapos negros que lembravam tentáculos em cima da garota. O corpo inerte começou a escurecer atingindo um tom verde acinzentado da decomposição aceleradíssima. Em minutos o corpo se liquefez numa gosma enegrecida que a terra engoliu. O poder da criatura fez a pasta caminhar por baixo da terra até o lago caindo no esquecimento.
O rato dormia como um gambá depois de se alimentar fartamente num galinheiro.
A comunicação na família dele era coisa rara. Passava o dia inteiro na rua, ia para todas as zonas da cidade. Furtava em todas e em todas assistido e sempre grudado. Quando ia para casa era só para dormir.
Claro que deram falta da irmã e logicamente ele não sabia de nada. Ninguém o viu com ela. A escuridão os escondeu. Mais uma na lista dos desaparecidos.
Tempos depois, muitos estupros pipocaram na cidade. Ninguém via nem sabiam de nada. A polícia não tinha pistas. As sobreviventes não se lembravam de nada. Outras tinham o mesmo fim da Bianca. Em todas as ocasiões o êxtase maldito com sua dança macabra acima das vítimas era inconfundível. Tamanho era o nefasto orgasmo e o sono do gambá várias das coitadas conseguiam fugir.
Uma sensação de saciedade amainou os ataques. Meses se passaram. Ratinho apenas se encontrava cada vez mais com a donzela verde. E numa das conversas com os demais clientes assíduos da fumaça ludibriante do partido verde numa área verde embaixo de uma verde árvore, até banquinhos de troncos tinha para eles. A donzela dançava na roda! Uma felicidade tomava conta do ambiente, a euforia, o bem estar.
- Os inquilinos da minha irmã costumam deixar a porta aberta de noite.
- Sério Maguila?!
- É. Sei lá, deve ser por causa do gato que quer entrar e comer. Deviam deixar a comida lá fora então né?
- Pois é. Mas, cada um com suas esquisitices.
- E aí Ratinho cê tá ficando mais preto ou é impressão minha?
- Ah, sei lá meu!
A obsessão voltou. O prazer em entrar nas casas de noite, roubar TV´s, celulares. Que sensação gostosa! Principalmente se o morador era sozinho, melhor ainda, sozinha.
Gostava de passear. Vinha devagar como sempre. Não gostava de grandes corridas. Em dias quentes era esperado, em dias frios suportável e com resmungos aceito. Muito raramente parava para olhar os acontecimentos. Simplesmente passava. Nessa noite ele parou intrigado em frente a um portão. Era madrugada. Do céu em cima da casa três globos azulados e muito brilhantes com seu núcleo dourado desceram graciosamente decididos. Atravessando o teto cada globo encolheu assim que repousaram em cima de cada uma das três cabeças nos travesseiros. O da menina pairou em cima de sua cabecinha inocente e permaneceu ali, seu núcleo agora era rosado. Iluminando os sonhos, desfazendo pesadelos, suavizando o espírito e protegendo o ambiente de influências agourentas. Os outros dois fizeram o mesmo. Um continuou dourado o outro cor de bronze polido.
Parado, olhava quando avistou na esquina uma figura acompanhada de outra. A segunda muito sinistra. Já a vira antes. A criatura estava colada ao homem que vinha se esgueirando pela rua. Como um rato em busca de uma migalha. Como um verme em busca de alimento. “Eles sempre deixam a porta aberta.” A obsessão, a mania. Com mais de trinta anos a criatura colada a ele o consumiu. Lentamente, pesadamente, arrastando-se pela vida, na realidade uma semi-vida. A avelã atormentada. A alma desgrenhada e desalinhada com a realidade. Sentimentos oblíquos, insanos. Os prazeres que teve foram crimes cometidos contra inocentes e agora estava prestes a cometer mais um.
Dentro da casa, depois do plam, não reparou que foi visto. A coisa companheira sussurrou: “Não posso fazer nada com eles. As luzes azuis estão aqui. Malditas! Lazarentas! Meu poder está limitado. CORRA!” – PLAFT – O taco atingiu um das pernas. Queda.
- Você vai entrar na minha casa filho da puta?!!
Outra paulada. Braço quebrado. O rato tentava se arrastar. As duas acordaram com a barulheira.
- PAI!
- Fique aí filha não venha para cá! – Berrou – Segure ela aí meu bem!
Com o braço quebrado e a perna machucada Ratinho ergueu-se e tentou sair da casa. Em cima da estante da parede logo acima da TV havia uma coleção de pedras. A maior delas estava nas mãos do dono da casa que arremessou com toda força num tiro certeiro. Atingiu as costas do infeliz. As luzes azuis postadas uma de cada lado do dono da casa. Paradas. Apenas ali restringindo o poder do negror.
Mais uma vez a pedra fora arremessada e numa segunda tentativa de fuga Ratinho sentiu uma dor fortíssima na cabeça. Tombou como uma árvore podre ao vento. Que do lado de fora viu tudo. Sangue vermelho escuro e espesso saíram da cabeça do desgraçado. A polícia foi chamada. IML também.
Seguindo os conselhos dos policiais o ofendido defendeu sua família de um agressor. Colocou uma arma fria nas mãos do rato morto e pronto. Legítima defesa.
A coisa sentiu a perda. Não abandonou o hospedeiro. O passeante acompanhou tudo. Queria ver o fim da história toda.
A alma do rato demorou a sair da matéria. Se libertando daquele corpo fedido e sujo. O passeador a viu sair. Toda rasgada, remendada, opaca, um cinza gelado e um ar pesaroso sem brilho algum. De toda sua parte fios cinzentos gotejavam e sumiam no ar sem encostarem no chão. Um filete negro a ligava na coisa podre.
Toda beleza da imagem e semelhança divinas não existia mais. Exauriu-se. Aniquilou-se. Ali, arrastando-se no ar estava o espectro de um rato humano. Corroído pelo mal. Enferrujado. Eterno. O passeador não tinha emoções, apenas a tudo assistia.
A podridão negra e rubra logo acima envergou-se como sentindo uma imensa dor. Em toda a extensão da rua uma névoa pegajosa e negra como piche emergia. Soltando gotas rubras no ar. A rua se movia num negror de total malignidade, crescia, inchava. Uma forma foi tomando vida ao lado da alma e da coisa. Algo imenso e negro cobriu as duas criaturas menores e levou-as ao abismo. Da mesma forma que apareceu foi embora levando a alma penada e a coisa.
O passeador continuou seu caminho. Os globos azulados continuaram rondando aqui e ali. A polícia foi embora. Os três estavam agora conversando com os vizinhos, ainda era madrugada. Embaixo da terra. Muito embaixo, nas regiões inferiores e infernais duas formas se fundem formando uma terceira. A alma ao ser sugada para dentro da coisa contorceu-se, debatendo-se em agonia, balançava a cabeça num imenso e insistente não. Boca aberta gritando a plenos etéreos pulmões algo inaudível. O aspirador infernal se transformou numa esfera negra com um núcleo rubro. Os retalhos negros e cinzas esvoaçavam ao redor lembrava um átomo dos infernos. Ficou assim um tempo. Sua experiência aumentou quando voltou a sua forma original. Saciada. Um triunfo. Nada mudou em seu monstruoso aspecto. Apenas existia um trapo a mais esvoaçando ao seu redor.