Nós

Sinto pena.

Meu meio irmão. Nunca mais foi o mesmo desde o acidente que matou sua família: mulher e filho. Eram tudo para ele. Coitado. Hoje, vive trancafiado no apartamento com medo de tudo. Atende somente a mim. E algumas vezes se assusta com minha presença. Sempre me anuncio antes de chegar, ou bater. E nunca devo pronunciar “Eu”.

- Quem é?

- Sou eu Fred. – Esqueci do EU!!

- Não conheço nenhum Eu!! VÁ EMBORA!! – Chorando

- Fred, é o Nícolas.

Silêncio.

Passos. Trinco abrindo-se. Um olhar cansado e desconfiado pela fresta:

- Nic?

- Sim Fred. Sou eu o Nic. – Esqueci de novo!!

Plam! Bateu a porta na minha cara.

- NÃO DIGA QUE É EU!!!!! NÃO DIGA QUE É EU!!!!! NÃO DIGA QUE É EU!!!!!

Silêncio.

Toc-toc-toc.

- Fred? É o Nic. – Lembrei ...

Passos. Trinco abrindo-se. Um olhar cansado e desconfiado pela fresta:

- Nic?

- Sim. Nic.

A porta se abre.

- Entre logo! Anda! Antes que eles te vejam! Depressa, vamos ....

- Já entrei Fred. Feche a porta.

Antes de fechá-la olhou para fora somente com a cabeça. Fechou. Olhou no olho mágico. Voltou-se para mim. Sorria.

- Trouxe frutas Fred.

- T-t-t-trouxe maçãs? Vermelhinhas? – Sorrindo e gesticulando com as duas mãos.

- Sim, bem vermelhas e grandes, elas gostam de você.

- Nic?! – Olhando sério para mim.

- Nic?! – Aproximando-se devagar e apontando o dedo.

- Sim Fred o que foi? – Eu já assustado...

- Você não foi seguido foi?

- Claro que não! Vamos olhar pela janela.

- NÃO!!! Não faça isso ... Eles podem nos ver! – Com a mão na boca.

- Fred, ninguém me seguiu, vamos olhar a janela está bem? Juntos. E você poderá ver por si mesmo.

- Promete que não foi seguido?

- Prometo.

- Tá. Vamos olhar então. Ande devagar. Agache-se – Sussurrou.

De cócoras abriu a cortina bem devagar. Eu estava em pé olhando-o.

- Ahá!! Olhe lá! – Ele apontou com fúria e tremendo. – Eu disse que você foi seguido! Ela virá me enforcar ... – Levantou-se bem devagar, andou de costas até a parede.

- Ela vai me enforcar, me enforcar, ela vai me enforcar ... – Balançando a cabeça e tremendo. Começou a chorar.

- Fred. Escute. É só uma criança! Ela não vai fazer nada! Veja, até já foi embora!

Os soluços diminuíram. Olhou para mim um pouco mais confiante.

- Você promete?

- Sim. Prometo. – Quase disse EU prometo, anunciaria a terceira guerra mundial!

Amava-o. Consegui fazê-lo sentar e comer maçãs após lavá-las mais de cinco vezes com sabão! Os germes sabe? os germes andavam em cima dela cobrindo-a toda e....

- Tomou o remédio Fred?

- Claro que não! Elas podem me envenenar!

- Vou buscá-los.

Fred só tomava os remédios se eu os desse. Tinha medo de que suas próprias mãos o traíssem envenenando-o!

- Fred, vou embora agora. Você está bem não é?

- Sim, estou. Vou dormir.

- Certo. Durma bem, amanhã volto com biscoitos. – Tomando o máximo de cuidado com a pronúncia do bendito EU.

Fred verificou tudo. Tudo trancado. Deitou-se. Levantou-se. Verificou tudo de novo. Deitou-se. Levantou-se. Verificou tudo de novo ....

Um dia, distraidamente disse EU.

Qual a razão de eu não pô-lo numa instituição? Grana. Falta dela. As da prefeitura são uma merda. Jogam a pessoa lá e esperam sua morte lenta. Uns batem a cabeça na parede até sangrarem e não são socorridos. Outros ficam trancafiados e gritando o tempo todo. Vários estrebucham no chão e lá permanecem. Muitos se suicidam. Fogem. Matam outros. Alguns sofrem “acidentes fatais”, como eles chamam. Além disso tudo, eles têm a Caixa Branca, que é uma sala atrás do prédio. Toda pintada de branco. Uma solitária na realidade. Não! Não vou colocá-lo na instituição do município. Cuidarei dele. Faço isso desde crianças.

Por parte de pai é meu irmão. Papai nos deixou para se unir a uma puta depois que mamãe morreu. Nunca casei e moro sozinho e o Fred só quer morar sozinho. Não sai na rua há cinco anos. Não confia em ninguém nem no psiquiatra. Este, diz ele, quer torturá-lo até a morte!

Todas as tardes, depois do trabalho no frigorífico, visito-o. . Trabalho das 6:00 às 14:00h. Sempre ajudo meu irmão com o banho, comida e remédios. Lavo sua roupa e limpo sua casa. A empregada que arranjei, coitada, queria assassiná-lo com uma faca! Ela nem sequer chegou a ir no apartamento!

Subi as escadas.

Toc-toc-toc.

- Quem é?

- Nic.

Silêncio.

Passos. Trinco abrindo-se. Um olhar cansado e desconfiado pela fresta.

- Está sozinho? – Perguntou.

- Sim estou sozinho. Trouxe iogurte e biscoitos.

- Entre depressa...! Rápido Nic...! Mas, que droga!!

Mesma coisa. Olhar para fora e verificar. Há cinco anos. Sempre a mesma coisa.

Estava exausto nesse dia. Ajudei-o com banho, jantar e remédios. Levantei-me da poltrona e mecanicamente disse:

- Eu já vou Fred.

- O que foi que disse?! O QUE FOI QUE DISSE?! O QUE FOI?! O QUÊ?! O QUÊ?! O QUÊ?! – Gritava desesperado colocando as mãos na cabeça e andando para trás.

- Fred, eu disse ...

- NÃO!! Você é igual aos outros! Afaste-se de mim, AFASTE-SE!!!

Confesso que nunca o vi em tamanha crise. Seus olhos estavam esbugalhados, suas têmporas e veias no pescoço saltavam. Arranhava as paredes. Correu até a cozinha e pegou uma faca. Fui atrás dele e tentei acalmá-lo. “Fred, sou o Nic!”, várias vezes gritei.

Os vizinhos apareceram e bateram na porta. O desespero dele aumentou e o meu mais ainda!

- Meu Deus, não! Não façam isso! Por favor vão embora! – Abri a porta e tentei convencê-los a irem embora. Meu segundo erro! E duplo!! Abri a porta e falei com "eles". Fred viu, aí enlouqueceu de vez.

Olhava para cima e para baixo, a faca tremia em sua mão enquanto rodeava a casa vociferando:

- Você me enganou todos esses anos! Quer me pegar mas, não vai conseguir! Afaste-se Eu! Ou o matarei! AFASTE-SE EU!! AFASTE-SE EU ....

- Fred. Sou o Nic ....

- NIC MORREU! VOCÊ É O EU!!!!!

- Não Fred, sou o Nic, seu irmão. Trouxe iogurte para você....

- Iogurte envenenado não é Eu?! Não, não vou cair na sua!

- Fred. Largue essa faca, vamos conversar está bem? – Tentava falar calmamente com ele. Meu coração queria sair pela boca, controlei-me o máximo que pude.

Na fúria que se instalou ele deu um passo para trás grande demais, tropeçou no aquecedor e torcendo-se caiu de bruços. A faca penetrou em sua bochecha esquerda ferindo a línuga. Foi uma sangueira!

Quando a ambulância chegou para levá-lo foi um pandemônio! Voou em cima de um dos paramédicos quebrando-lhe o nariz. Teve que ser contido por mim e pelo motorista. Amarramos suas mãos e pés na maca. Gritava feito um porco sendo imolado! Suas palavras ecoam pela minha mente até hoje: - Eu sabia, eu sabia, você é um deles, você é um deles! Maldito Eu!! – Seu olhar era de muito medo e tristeza. E ódio. Sentia-se traído por mim. Para ele Nic estava morto. Eu era o temido EU.

Agora, sedado e amarrado, dormia como um bebê no quarto nojento do Porco Socorro.

Eu estava no hospital sentado esperando notícias. Chegou o médico.

- Ele é seu parente?

- Sim doutor, é meu irmão.

- O que aconteceu?

Contei-lhe a história. Sua doença e tudo mais.

- Entendo. Sabe que não poderei liberá-lo não é?

- Do que está falando doutor?

- Ele tem problemas psiquiátricos sérios. Preciso encaminhá-lo para uma instituição apropriada.

- Não há instituição apropriada doutor! São açougues abandonados! Por favor, deixe-me levá-lo para casa ...

- Sinto muito, é procedimento do hospital. Ele agrediu o paramédico, chegou aqui e teve que ser contido pelos seguranças. Não temos quartos apropriados para ele. Para o bem dele e o seu, preciso encaminhá-lo. Espero que o senhor entenda.

Estava impotente. Não pude fazer nada.

Ia visitá-lo todos os dias no inferno apelidado de Instituição Psiquiátrica Municipal. Acostumei-me com os internos que vinham me cumprimentar. Uns se arrastavam pelos corredores, outros balançavam-se o tempo todo. Vários catatônicos. Mijados. Roupas sujas e fedorentas. O lugar exalava enfermidade e morte.

Fred estava numa cela acolchoada e encardida. Eu o via apenas do vidro da porta. Não falava mais comigo. Tinha o hábito de se jogar contra as paredes. Benditas colchas encardidas.

Um dia o soltaram. Pra quê! Enforcou uma enfermeira. Sufocou-a até a morte. Colocaram-no numa solitária. Era um quarto atrás do inferno. Todo pintado de branco por dentro e por fora. Uma porta de ferro com uma viseira de detento. Sabe aquelas portinholas que se abrem por fora? Daquelas. Apenas uma janelinha no alto. Não o via há meses.

Numa noite decidi ir até lá. Como não tinham o mínimo de controle e já me conheciam, passei algumas horas perto da Caixa Branca, apelido da solitária. Destinada a casos perdidos. Como ele. Diziam que fazia parte do tratamento! Pois sim!!

Sentado num banco próximo, noite de verão, estrelada, gostosa, acabei pegando no sono no banco do jardim. Acordei sobressaltado com baques surdos. Vinham da caixa branca.

Cheguei mais perto. PLAM! PLAM! PLAM! – Compassadamente.

Assustei-me.

PLAM! De novo e de novo ...

Abri a portinhola e então pude ver o que era. PLAM! PLAM! PLAM!

Meu sangue congelou.

PLAM! PLAM! PLAM!

Petrificado demorei alguns segundos para assimilar o que estava acontecendo. Olhei para cima e ela estava lá! Meu Deus! O que era aquilo! O que significava aquilo! PLAM! Bem perto de mim dessa vez. Caí sentado com o susto.

Levantei-me tremendo. A imagem fresa e grotesca na minha mente abalada.

Plam!

Olhei novamente pela portinhola, vi de novo. Plam! Do outro lado. Plam! Do lado esquerdo. Plam! Direita ...

O corpo do meu irmão, Fred, corria desordenadamente no interior da caixa branca.

Estava nu. Os plans era o barulho do choque do seu corpo nas paredes sujas.

Em cima dele, meu Deus do céu, é difícil descrever a cena! Quase encostando no teto estava, etava, estava sua cabeça! Sua cabeça flutuava separada do esquelético corpo! Meu Deus!! Pairava sobre ele como um falcão atrás da presa ... plam! Acompanhava os movimentos desordenados do corpo acéfalo. Até que seus olhos encontraram os meus na portinhola. Sorriu. Malignamente. O olhar cheio de ódio gotejou chamas que se apagaram antes de atingirem o chão. O corpo parou com as mãos em forma de garras viradas para mim. O lustre macabro babando expectorou: - EU!

Saí correndo. Tropeçando.

Não sei quanto tempo passou. Hoje estou aqui. Cercado por paredes brancas. PLAM!

Meu corpo lá embaixo procura por algo ... plam! ... o do meu irmão também ... plam!

Várias vezes damos encontrões um no outro. Ainda sinto pena ... plam! ... Mas agora ... agora entendo o Fred ... plam-plam! Sim. Entendo.

Os nossos acéfalos corpos se abraçaram.

- Esperei muito por esse momento Nic.

- Eu sei Fred. Agora eu sei.

Sorrimos ao olharmos de cima nossos corpos.

Somente agora compreendi: Fred detestava o EU, amava o NÓS.

Alex Holy Diver
Enviado por Alex Holy Diver em 13/10/2008
Reeditado em 16/10/2008
Código do texto: T1225748
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.