2001 - Bate Papo
Bate-papo
Uma imagem fora de foco aparece no campo de visão.
- São Paulo vinte e dois de setembro de dois mil e um. - diz uma voz feminina.
Vozes confusas tomam conta da tela e a câmera balança bastante.
Finalmente a imagem torna-se clara e uma morena, bela e sorridente aparece segurando um microfone.
- Olá! Meu nome é Maria Clara e para o programa SUB POP de hoje teremos uma entrevista animada e esclarecedora, com Saturno, este rapaz de origem índia, de compridos cabelos negros que afirma ser um vampiro e ter cerca de quatrocentos e cinqüenta anos!
Ela se vira para o rapaz.
- Boa noite Saturno, agora são vinte horas. Lugar propício para uma entrevista não?
O jovem não parece muito a vontade com a luz forte da câmera.
- É. Essas casas abandonadas são os lugares onde me escondo durante o dia... – responde ele.
A câmera dá um zoom, mostrando a decadência do lugar.
- Mas a crença popular não é a de que os vampiros vivem em cemitérios?- pergunta ela, irônica.
- À vezes eu até fico... O problema é o cheiro. Nós vampiros temos os sentidos muito ampliados. – responde ele ignorando o sarcasmo.
- Entendo. Como se tornou um vampiro?
- Para resumir: há alguns séculos atrás eu era um caçador e apesar da hora avançada queria algo melhor que um macaco para comer. Fui atacado por um vampiro, mas consegui matá-lo e como ele havia chupado meu sangue... Bem, eu também chupei o sangue dele.
- Uau! - a repórter ficou espantada levando a mão aos lábios.
O vampiro ri e completa:
- Não foi bem uma vingança; é que nós acreditávamos que quando alguém rouba seu sangue, rouba sua alma. Eu queria minha alma de volta.
- Aí você virou um vampiro.
- É isso aí!
Maria Clara pegou um papel e leu algo que estava escrito.
- Vampiros são poderosos, mas tem fraqueza ao alho, ao dia etc. O que é verdade o que é mentira?
O imortal sorriu de modo condescendente.
- Esta é uma pergunta interessante, o vampiro tem na luz solar seu pior inimigo, e quanto maior for o ferimento que sofremos, menor nossa capacidade de regeneração.
Um tiro, alho e até uma cruz não tem efeito algum sobre nós. Apenas a fé pode destruir facilmente um vampiro! - explicou Saturno.
- Então os cristãos podem acabar com os vampiros?- pergunta a repórter incrédula.
- Acho que não expliquei direito. Religião não tem nada a ver com isso. Qualquer pessoa pode ter fé, só que isto é uma coisa raríssima. É muito fácil falar: “eu acredito”!
Maria Clara lê sua ficha por alguns momentos.
- E como usar a fé contra os vampiros? – perguntou ela.
- Bem... Normalmente usam-se objetos benzidos. Cruzes, espadas... As pessoas acreditam que um vampiro não pode entrar em uma igreja porque é a casa de Deus, mas isto não é verdade. É que a energia da fé acumulada ali é tão grande que torna o lugar perigoso para nós! – disse o índio sério.
- Existe algum limite para a idade dos vampiros?
O índio pensa na pergunta por alguns segundos e responde:
- Não. Você pode encontrar vampiros com um milênio ou mais. Só que estes são muito perigosos...
O olhar que Saturno lança fez a repórter engolir em seco e ela acha melhor mudar de assunto:
- Vamos para as fofocas! – ela dá uma risadinha e completa – Dizem as más línguas que você tem uma companheira...
Saturno fica sério por alguns instantes antes de dizer quase para si mesmo:
- Eu acabo arrancando estas más línguas. Sim. Ela se chama Ângela.
- E ela está aqui hoje?
O jovem de cabelos negros dá de ombros.
- Não. Ela foi na Fofinho, curtir o bom e velho Rock´nroll!
A morena olha sua pauta, mas prefere perguntar outra coisa.
- Essa sua relação com o rock... Você não acha estranho? Afinal você é um índio!
- Realmente é estranho! – o filho da noite completa – Nos anos sessenta acabei me apaixonando pelo ritmo, mas já ouvi de tudo. Dancei até Cateretê!
- Impressionante! E esse nome, Saturno, não é um nome de índio. De onde veio este apelido?
O vampiro balança as mãos com veemência.
- Não, não! Esse é meu nome mesmo! Eu explico: meu pai era um espanhol degredado e apesar de analfabeto, tinha um carinho enorme pelas estrelas e planetas...
A moça escuta a explicação e logo dispara outra pergunta:
- Quantos vampiros existem?
- Muitos. Para você ter uma idéia para cada onze mil humanos, há um de nós. Como vê, não somos poucos! A morena respira fundo. A próxima pergunta era potencialmente perigosa.
- Por que se alimentar de humanos?
A resposta veio de pronto.
- Precisamos sobreviver. Assim como vocês.
O jovem fica pensativo naquele momento.
- Mas vocês não deveriam matar e beber o sangue de seres irracionais, como nós fazemos?
- Seria o certo, mas por algum estranho motivo, o sangue animal não nos sustenta muito...
Maria Clara pensa um pouco se deveria fazer a próxima pergunta e acaba fazendo-a:
- Se somos tanto em comparação com vocês, seria fácil exterminá-los, por que isso não acontece?
- É. Os humanos poderiam acabar facilmente com os vampiros se quisessem, mas estão tão entretidos com sua curta vida, que não vêem nada ao redor de si.
Saturno estava visivelmente constrangido.
- Em que os vampiros são melhores do que nós, os humanos?
Aliviado pela mudança súbita de direção, o índio responde com prazer:
- Somos muito mais disciplinados e a todo custo evitamos aparecer. Mas os seres humanos têm sorte!
Ela franze a testa.
- Por quê?
- Vampiros não ficam mais inteligentes com a idade!
Eles riem com gosto, até o cameramen.
Com lágrimas nos olhos Maria Clara pergunta:
- E o que vem com a idade então?
- Bem, se em vida um vampiro era um imbecil, continuará sendo depois de transformado, porém seu corpo se regenera em uma grande velocidade, sua força é maior que de cem homens juntos, seu poder mental faria com que você abra a porta para ele, anda a luz do dia sem dificuldade entre outras coisas.
A repórter fica espantada.
- Nossa! Andar luz do dia? E você já tem essa capacidade?
- Em parte. Posso até sair, mas minha pele começa a queimar lentamente.
O jovem de cabelos negros parece meio incomodado com a revelação.
- Você disse que o poder mental de um vampiro pode fazer um humano lhe abrir a porta, isto quer dizer que vocês realmente têm que ser convidados para entrar dentro da casa de alguém?
Saturno balança as mãos e a cabeça negativamente.
- Não, não. Eu posso entrar na sua casa quando quiser, mas os mais Antigos, por terem sido vivos em uma época em que o respeito pelo território dos outros era absoluto não ousam entrar sem convite. Algo cultural sabe?
Ela olha sua pauta de perguntas e dispara:
- Você acredita em Deus?
O índio pesa a pergunta por alguns momentos.
- Não. Não do modo em que muitos acreditam. Um velinho de barbas brancas entre as nuvens? Eu hein? Acredito que seja uma espécie de energia supra-inteligente!
- Hum. – a repórter baixou os olhos para seus papéis – E em alienígenas?
A resposta veio de pronto.
- Não só acredito como já tive dois contatos, e em um deles quase morri!
A moça se inclina mais para frente no sofá puído.
- Parece interessante. O que aconteceu?
- Te conto outra hora. Sério!
Ela volta a se afastar, ligeiramente decepcionada.
- Sem problema. O que você acha da política?
- As pessoas deveriam se ligar mais. O Brasil é um dos poucos países do mundo com tantos recursos naturais, mas o povo se vende por muito pouco...
Nesse momento escutam barulhos de passos e Saturno sorri.
- Ângela chegou!
Uma garota de rosto claro e cabelos negros levemente encaracolados. Ela parece surpresa com a presença da repórter e da câmera.
- Angel. Essa jornalista quer nos entrevistar!
A jovem parece um pouco contrariada.
- A gente não ia pra Guarulhos?
O vampiro desviou o olhar para os lados, dá pra ver claramente que a garota exerce um forte poder sobre ele.
- Ia...
Vendo que sua chance de entrevistar um vampiro real ia se diluindo, Maria Clara pediu:
- Desculpe incomodar vocês, mas não gostaria de ser entrevistada também? Vocês vão aparecer no programa de segunda! No SUB POP!
Mesmo pouco à vontade ela senta-se no velho sofá e abraça seu índio amado de modo muito protetor.
- Há quanto tempo você é uma vampira?
Ela olha fundo nos olhos da repórter que estremece.
- Seis anos. – responde finalmente.
- Hum... Bem... E você já manifestou algum poder?
Ângela começa a ficar à vontade e mexe em seu cabelo cacheado.
- Bem... Minha força é maior que de um humano comum, posso enxergar na escuridão total e as coisas de sempre. Não sinto o gosto das coisas, calor ou frio e não saio no sol nem ferrando!
O cameramen pede uma pausa para trocar a bateria da câmera.
Tudo pronto e Maria Clara continua com as perguntas:
- Vampiros não sentem gosto de nada? Nem de sangue?
O celular toca e Saturno pede licença para atender em outro cômodo em ruínas.
- Bom... O gosto das coisas vai sumindo lentamente e um dia você descobre que não tem paladar. Quanto ao sangue... Não tem como explicar! Você não sente o gosto... É mais como... Sei lá! Uma sensação maravilhosa!
A garota parece sonhar ao tentar descrever o gosto do sangue.
- E o sol? Logo depois de ser mordida você já evitava o sol?
O rosto dela que demonstrava prazer, muda para uma máscara sombria.
- Não foi tão rápido. No começo sentia uma tontura terrível e depois de uns três dias já não podia mais sair à luz!
Saturno entra na sala sem fazer som algum e sua voz grave faz com que os dois humanos dêem um salto.
- Ângela. Precisamos ir. Agora.
- Por que a pressa? O Show vai começar às dez...
Ele observou os dois jornalistas por um momento indeciso se falava ou não.
- Coisas para resolver. Uma ligação de Caronte.
A garota se levanta imediatamente pegando na mão dele.
Antes de ir embora o jovem de cabelos negros agradece a entrevista e avisa que acha uma ótima idéia um livro sobre ele.
Diz que pretende ligar para a repórter em breve.
Os dois saltam por uma janela no quinto andar e quando o cameramen corre até lá só vê o chão frio.
Olha para trás e vê moça assombrada.
- Cê viu isso? Clara? O que você tem?
- Eu... Eu não contei para ele sobre a biografia. Não contei para ninguém...
Nesse momento, um arrepio frio sobe pela espinha dos dois jornalistas, que não acreditavam realmente que estavam diante de dois vampiros.
Fim.