Frente aos olhos - Parte 1
De forma atípica, a situação aterrorizante pela qual passei teve início num lindo dia de sol, dos mais propícios a um patético conto de amor.
Recordo-me claramente do desenho que a sombra projetada pelos galhos formava no gramado do mais intenso verde, cor tão marcante quanto eu nunca havia presenciado. Enquanto eu permanecia, já com a circulação das pernas adormecida pela acomodação, sentado à beira da única árvore num raio de alguns quilômetros, ouvia o som daqueles que sempre me acompanhavam nas inúteis caminhadas dos finais de semana, soltando frases seguidas de gargalhadas com motivos desconhecidos, como se estivessem a entrar em êxtase com o simples existir daquele momento bucólico tão irrisório. Com a cabeça baixa, eu apenas traçava o carvão de meu lápis sobre o papel do caderno que jazia em minhas pernas, tentando transcrever o retrato imaginário daquela que seria a minha única fonte de inspiração em meio a tanto tédio. O pescoço já não mais doía, assim como nem me importava com o incômodo da permanência na posição em que estava sentado, com as pernas dobradas e cruzadas entre si. O meu conjunto de traços firmes e negros ia formando a interpretação mais fiel possível do véu avermelhado que constituía os longos cabelos de Estér, emoldurando a face semelhante à própria descrição de um ser mitológico feminino, daqueles em que é impossível notar imperfeições. Enfim, eu me via no limite da dimensão de dois palmos de altura da folha de papel, contendo-me no traçado de seu colo, o que apenas incentivava a fascinação pelo mistério formado na ignorância quanto a tudo quanto eu jamais vira sob as vestimentas de minha modelo inspiradora.
A manhã de aparência monótona se encerrava, dando espaço a face maldosa do sol dilacerante. Eu já me encontrava de pé, iniciando uma busca visual por meus acompanhantes, os quais eu já não mais ouvia, mesmo antes de notar suas ausências. Caminhei ao longo do extenso campo aberto, com passos ligeiros e cabeça erguida, deixando para trás a árvore que me abrigava do sol, assim como as marcas de meus passos machucando a grama. O cenário era tão extenso quanto o limite dos olhos permitia ver.
Olhando rapidamente para trás, notava que a árvore já não mais passava de um pequeno ponto no topo de uma colina, a qual tinha uma inclinação tão suave que só era notada após uma longa caminhada para fora da elevação.
Os minutos passados já se multiplicavam às centenas. O sol já havia se movimentado por um grande ângulo em relação ao momento do início da caminhada e, estranhamente, não existia alguém em ponto algum visível. Tudo se resumia ao longo campo gramado. Nada mais além do infinito tapete verde e meu caderno seguro à mão, resguardando o desenho inacabado com sua rústica capa de couro. Num ato impensado, abri o caderno para visualizar a minha interpretação plástica da bela Estér, numa maneira inútil de reduzir minha agonia, mas quão grande foi meu espanto quando percebi que o desenho mudara estranhamente. Na figura em que eu havia desenhado, além de Estér, também estavam todos que eu então procurava. O desenho havia se tornado muito mais complexo: Todos sentados à beira da árvore na colina. Instintivamente, peguei a borracha em meu bolso e comecei a apagar o desenho, mas fui interrompido por um ruído horripilante que despertou minha atenção. Olhei para a direita, na direção de onde o grito se originou, notando uma espécie de movimentação. Fixando os olhos, notei que se tratava de Lucius, o monótono piadista dos finais de semana. Fechei o caderno, guardei a borracha e corri em sua direção. Enquanto me aproximava, o horror que eu até então não imaginava ser possível se iniciou. Arranquei em desespero para atendê-lo e então perceber, alguns passos antes de alcançá-lo, que estava com um grave ferimento na perna, algo como uma mordida, com grande parcela da panturrilha arrancada, como se fosse por dentes de um lobo ou animal de mesmo porte. Sem saber como agir, eu apenas questionava, aos berros, o que havia acontecido a ele, assim como onde os outros se encontravam. Em minha cabeça, muitas idéias surgiam sobre o que poderia ter acontecido, tendo o rumo de meu desespero aumentado pela falta de respostas de meu interlocutor, que só sabia gritar, com a face assustadoramente contraída e os olhos apontados para o céu, como se a fonte de sua mágoa tivesse surgido nas nuvens que começavam a surgir de forma escassa. Num acesso de compaixão intuitiva, rasguei um pedaço de minha camisa branca, na intenção de resguardar o ferimento. Com a agitação da situação, acabei deixando o caderno cair ao chão, de maneira que ele se abrira acidentalmente da página do desenho, fazendo-me perceber algo assombroso para minha cabeça. No exato momento em que olhei o desenho, reparei a parte recentemente apagada, correspondendo, numa aparente coincidência, com a perna de Lucius, a qual, no desenho, teve toda parte abaixo do joelho apagada. Após o curto segundo de observação do desenho posto ao chão, tornei meus olhos para a perna de Lucius, notando que não mais havia a mordida em sua panturrilha, mas sim, toda a parte posterior à articulação de seu joelho arrancada, sem ao menos deixar pedaços ao chão. Com a dor, Lucius não mais estava consciente, ficando como um ser inanimado anexo à paisagem verde, com parte de seu corpo embebido em sangue.
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Em breve, a continuação deste conto.
Convido, a quem se interessar, para acompanhar esta história tão singular.