Evidência Nº 5 (Em Apoio da Defesa)
Fragmento integralmente extraído do diário de Ezequiel L., compreendido no período de 24 (vinte e quatro) de setembro de 1975 a 24 (vinte e quatro) de outubro de 1975. O corpo do texto permaneceu intacto, não havendo alteração em quaisquer tipos de pontuação ou palavras (por pedido do próprio autor).
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24 de setembro: Vi a face do demônio com meus próprios olhos. Ele conversa comigo em sonhos, fala de vidas perdidas, de dores e de como fará com que eu me junte a ele em pouco tempo. Reserva um tempo especial em minha cabeça, em minha vil e sórdida mente, atrelando-se aos meus pensamentos como uma sanguessuga. Ele se alimenta de meus pesadelos, dando ao mesmo tempo combustível para que eles continuem com cada vez mais potência e assombro. Por isso não durmo. Reservo a madrugada a ouvir sons perdidos na noite, e a escrever essas palavras. Loucas, para uns. Mas não para mim. Para mim são a sanidade.
30 de setembro: O demônio agora não se restringe apenas aos pesadelos. Está aqui, agora, perscrutando o local, analisando a olhos frios e vis e vermelhos toda a extensão de minha lucidez. Ele está me enlouquecendo, me oferecendo jóias e promessas, dizendo que posso ter o mundo, que posso ser dono de tudo o que quero. Que posso ser mais do que Deus, que Deus não presta, que é um homem vil e mau, que o expulsou de sua morada e odiou-o quando conseguiu estabelecer-se em sua própria morada. “É como o pai que se arrepende de expulsar o filho de casa e ver que depois de alguns anos ele conseguiu firmar-se com sucesso e muito dinheiro”. É isso que ele diz de Deus.
6 de outubro: “A ascensão virá em breve”. Ele escreveu isso na minha parede. Escreveu com sangue, mas apenas eu posso ver. Estão lá, as palavras, derretendo-se à medida em que o sangue escorre, um sangue que nunca coagula e seca, que não some com detergentes ou esfregões. É um aviso fixo, um chamado, um ultimato. Ele me quer. Mas por que me quer? Por que não o homem ao lado, o vizinho, o dono da padaria? Por que eu, por que, por quê? (...) Não agüento mais ficar acordado. Cochilo em qualquer lugar, tenho olheiras fundas, olhos avermelhados e medo. Ando na rua olhando para os lados, para cima e para baixo. Não confio em ninguém, não recebo amigos ou parentes. Não consigo me concentrar. Tenho paz quando estou escrevendo em meu diário. Não sei, mas parece que ele quer que eu escreva, que deixe alguma prova palpável de que realmente o vi. Ele não me deixa escrever mais nada além disso. Se penso em começar alguma história, ele me tira a concentração. Faz portas baterem, vozes sussurrarem e imagens aparecerem. E outra: só consigo escrever em dias múltiplos de seis.
12 de outubro: Daniela veio me visitar. Fui rude com ela. Chorei, ela também. Nos desentendemos, como há muito tempo não acontecia. Ela disse que acabou, e eu não fiz nada para tentar convencê-la de que passava por uma fase difícil. Isso foi há dois dias. Ao me ver, ela assustou-se. Minha barba espessa, meus olhos fundos e toda a imundície do apartamento no qual estava vivendo (embalagens de pão, batatas fritas e doces disputando lugar com latas e garrafas de coca-cola) e minha incontrolável loucura, causada por aquele ser hediondo e maquiavélico. Ela me disse que eu precisava de ajuda, de algum profissional. Disse que precisava de remédios. Eu mandei-a aos infernos – infernos, que irônico... – sem cerimônias, e então começamos a gritar, trocando acusações. Falei mais do que devia, tenho certeza.
18 de outubro: As pessoas na rua têm medo de mim. Confundem-me com algum tipo de mendigo ou marginal, olham torto, atravessam a rua quando passo. Meus vizinhos me evitam, nunca entram no elevador comigo. Estou ficando cada vez pior, cada vez dormindo menos, cada vez menos lúcido e menos racional. As palavras pichadas na parede de meu quarto agora estão em todos os lugares da casa. Pingam sangue no chão e me dão nojo. Muito sangue, certamente vindo de humanos. De mais de um. Pobres coitados, tendo a vida resumida a um fim em uma parede de um louco. Eu tento me manter acordado, grito durante as noites, aperto minha cabeça, bato-a nas paredes. Ele não pode me controlar. Ele não vai me controlar. Sou mais forte do que tudo isso. Ele ri de mim, sempre ali, calado, contido. Diz que o dia está vindo, que tudo aquilo é apenas o início.
24 de outubro: “Mais seis dias”, ele me disse. “Então te deixarei em paz”. Isso tem que ser verdade, por todas as forças do Universo, faça com que isso realmente aconteça! Não vejo a hora de poder fechar os olhos e enfim poder desfrutar de meu mundo de sono e quiçá bons sonhos, de poder recostar minha nuca em meu travesseiro sem medo de imagens mais aterrorizantes do que as que vejo de olhos abertos. Sempre que olho para o demônio, ele está rindo. Não de mim, mas de toda a situação. Parece pensar “que seres imbecis e frágeis são os humanos, chorando com tão pouco, amedrontados com minha presença”. Sim, sou frágil, por todos os céus! Por que não escolher um homem bravo e corajoso, um temente a Deus e fervoroso em suas convicções? Por que escolher a mim, um homem que nunca acreditou muito em algum ser supremo, um homem que dificilmente põe os pés em alguma igreja e que nunca – pelos céus, nunca! – sequer abriu a Bíblia? Será que quer mostrar que eu deveria ser um homem religioso, para que assim não me atormentasse? Oh, Deus, se existe, faça com que esses seis dias passem o quanto antes!
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- O senhor Ezequiel nunca chegou a escrever o diário no dia trinta de outubro, senhores jurados. Nesse fatídico dia, o homem foi preso em flagrante, na posse de uma arma branca, da qual os senhores agora dispõem como evidência da acusação. Ele gritava, ensanguentado: “Por quê? Por que me enganou?”. Quando perguntado a quem o homem gritava, ele disse ser para o demônio. Ezequiel disse que o demônio estava lhe atormentando há tempos, mas que no dia trinta daquele mês de outubro iria de uma vez por todas embora. Mas que para poder partir, Ezequiel tinha que matar uma pessoa. Senhores jurados, o texto do qual vocês dispõem não foi forjado com o propósito de tentar uma inocência impossível. Ele existe, e foi escrito por um homem perturbado. Um homem que via coisas e se convencia, a cada dia que passava, que estava enlouquecendo. Foi um ato de loucura, senhores jurados, que o fez matar sua ex-namorada Daniela. Não ciúme ou fixação.
“Ele não está aqui, senhores jurados, na mesa de acusação, pois diz que o demônio ainda o atormenta. Diz que, no fim das contas, a entidade não foi embora. Ezequiel diz que o sangue de sua namorada não sai de suas mãos, assim como o sangue que via nas paredes de seu apartamento não sumiam. Ele não está em condições de encará-los, senhores jurados, porque está amedrontado. Pensem duas vezes antes de condenar a prisão esse pobre homem, vítima de agressões psicológicas acentuadas. O seu lugar não é em uma prisão, mas sim num sanatório”.
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Ezequiel foi encontrado morto por enforcamento no dia 30 de outubro de 1976, dentro do sanatório, pendurado pelo teto com um lençol atrelado ao pescoço. Estava nu. Especialistas dizem que, pela posição do corpo, era impossível que Ezequiel conseguisse fazer todo o trabalho sozinho.
Apesar de ser considerada suicídio, a morte de Ezequiel permanece insolúvel até os dias de hoje.