Ruas estreitas de paralelepípedo serpenteiam as imediações. Abrem-se em incontáveis caminhos, vielas, atalhos e becos. O centro do cidade um dia foi nobre.
Esquecido e sem preservação, tornou-se uma opção de aluguéis baratos em prédios desvalorizados.  
 
O BECO DA MORTA
 
O velho edifício sobreviveu ao tempo e abrigava muitos inquilinos. Próximo ao Instituto Médico Legal, a entrada principal fazia esquina com um beco mal afamado. Pior endereço, impossível. Gritos e discussões eram constantes a qualquer hora.
 Algumas vezes o mau cheiro e as moscas varejeiras invadiam os lares. O Rio de Janeiro é uma cidade maravilhosa, mas também tem seus bueiros.
 Alzira odiava morar no quarto e sala abafado, odiava escutar a televisão no volume máximo  o dia inteiro. Odiava ser vizinha do necrotério.   Do décimo segundo andar, acompanhava uma confusão pela janela escancarada. A mãe gritou mais uma vez:- Alzira, Alzira, rápido, rápido...
-O que é agora? Fome, sede ou banheiro?- A mãe  tinha o aspecto cadavérico e o olhar penetrante.
- Estou molhada. Preguiçosa- Alzira trincou os dentes e começou a tirar as roupas sujas de mijo. Era a terceira vez naquele dia. Quando a mãe queria, pedia para ir ao vaso sanitário:- Está faltando água, como vou lavar tudo isto? - A velha mostrou a língua e deu uma risada-
- Alzira, Alzira, não presta pra nada, vai morrer solteirona e pobre. Apodrecer neste lugar imundo. Fedor. Fedor de defunto podre.
A mulher jogou as roupas no tanque mínimo e ficou olhando as peças acumuladas, a pilha cada vez mais alta. Aquela era ela, saturada e regurgitando o dia a dia.
Cinco anos tomando conta da doente. O hospício fechou as portas e mandou  todos os pacientes para casa. Uma reportagem alertou sobre maus tratos e excesso de óbitos. A instituição perdeu o apoio do governo. Deixaram a velha senhora na calçada do edifício. O porteiro só entendeu que aquela era a mãe da Dona Alzira do 1012.
Demência. Alzira percorreu muitos hospitais em busca de vaga para internação. Não conseguiu nada e a mãe foi ficando. Quando as crises tornavam-se  insuportáveis, levava a enferma para o pronto socorro . O pai faleceu logo em seguida, muito desgostoso não teve forças para lutar contra a tuberculose.
Com a pequena pensão, levavam uma vida muito humilde e reservada. Tudo isto era suportável até que começaram as pragas. Terríveis  pragas rogadas o tempo inteiro. Corroíam e provocavam sentimentos rancorosos.
Alzira estava perdendo o controle. O ódio, o cansaço e a miséria venciam a integridade.
Fevereiro era um mês enlouquecedor, 40 graus e falta d’água eram comuns. Todos sabiam que as geladeiras do necrotério estavam abarrotadas de corpos. Véspera de carnaval, feriado, falta de pessoal e o fedor invadiu os apartamentos.  
O ar impregnado provou reações diversas. A raiva contida explodiu e as pessoas começaram a jogar pedras no edifício do IML. Gritavam contra o sistema, governo, polícia e defuntos. Montaram barricadas de restos de lixo, pedaços de madeira, móveis velhos e pneus. Exigiam a remoção do excesso de corpos e uma solução para o ar pestilento.
 
-O BLOCO -
 
 Na rua principal, a situação estava completamente fora de controle. A rádio patrulha  encontrou todas as vielas de acesso obstruídas. Remanescentes de blocos carnavalescos, usando fantasia juntavam-se aos manifestantes. Mascarados e bate-bolas saltavam em piruetas enquanto as fogueiras queimavam.
Alzira vestiu um camisolão preto e pintou o rosto com tinta branca. Desenhou olheiras e colocou uma velha peruca azul. Queria espairecer, dar uma volta e aliviar as tensões. A mãe, neste exato momento, rogou uma enxurrada de pragas. Foi a gota d’água.
Enrolou a doente na capa da fantasia e prendeu um chapéu de bruxa. A velhinha   estava gostando da novidade e não opôs resistência:- Vamos para o carnaval, está ouvindo a confusão? Tem festa na rua.
O elevador estava concorrido e a gritaria era geral. Na ânsia de assistir e participar do tumulto, ninguém prestou atenção. Passaram anônimas até ganhar a rua. O Beco estava apinhado de batuqueiros bebendo e fazendo arruaça.
No meio do povo a mãe quis voltar, gritou e ninguém ouviu. Foram sendo arrastadas pelas ruas. Quando estavam quase em frente à Cruz Vermelha, Alzira deu um jeito de sair da multidão. Fugiu para a calçada e ficou parada, respirando fundo. O medo do que acabara de fazer era uma mistura de alívio e remorsos.
Algum tempo depois a polícia tomou a rua principal com suas bombas de efeito moral e jatos de água. Houve trocas de tiros, bandidos aproveitaram para revidar, inocentes foram baleados e pisoteados na confusão.
Dentro do botequim da esquina do Beco, um grupo seleto bebia tranquilamente. Portas arriadas e televisão passando o desfile das escolas de samba. Alzira estava sentada no canto, dividindo a mesa com um grupo de travestis, fingia interesse nas piadas. 

O italiano, dono do estabelecimento, serviu  uma cerveja gelada :- Dona Alzira, quanto tempo, está de folga da mãezinha?- Quase engasgando com a bebida, a mulher deu uma risadinha-
-Minha prima levou para Caxias. Vai passar um tempo por lá.
- Que bom. Então aproveite, amanhã tem o Bola Preta. Imperdível.
-Verdade. Imperdível.
Várias batidas na porta de ferro e um palavrão bem mandado:- Seu Aylton, de novo...já disse que não posso vender cerveja fiado.
-Não quero nada não, ô da Itália. Vim chamar Dona Alzira. A mãe dela está fazendo o maior escarcéu na portaria.
Alzira saiu apressada mal acreditando no que o porteiro dizia. A madrugada quente e a rua completamente deserta:- Não estou achando a menor graça, onde está minha mãe?
-Estava ali, juro. Gritou seu nome um monte de vezes. Vai ver foi para outro canto.
Juntos deram a volta no quarteirão e nada encontraram. O porteiro não parava de se benzer e falar de alma penada e outras assombrações.
Alzira encostou o homem medroso na parede:- O senhor esqueça esta história de fantasma ou vou fazer queixa. Isto é excesso de cachaça - O porteiro jurou nunca mais tocar no assunto.
 
 -O  DESFILE-
As semanas seguintes passaram sem qualquer notícia. Alzira não queria saber se a mãe estava viva ou morta. Aos poucos, os meses trouxeram alívio. Começou a fazer novas amizades e freqüentar o clube da terceira idade.
O ano terminou e chegou o carnaval. Alzira admirava os adereços da fantasia. Estava endividada até o ano seguinte sem remorsos. Desfilar pela escola de samba  era seu maior sonho. Sentiu-se uma rainha, vestida de colombina.
 Na concentração, o momento máximo da entrada da escola. Bateria esquentando, o grito de guerra do puxador e a arquibancada lotada. Apesar do alardeado produto desinfetante o canal do mangue estava de amargar.
Quando a escola estava toda montada, fogos de artifício explodiram no céu da Avenida Presidente Vargas. Nada mais importou, o povo aplaudiu de pé o imenso carro alegórico do abre alas.
Alzira era só emoção. Queria aproveitar casa segundo. No meio da ala reconheceu a figura da mãe . Ela estava rodopiando com as baianas, dançando com o mestre-sala e porta-bandeira. Indo e vindo com os passistas, no meio da bateria... em todos os lugares...Cada vez mais perto, apontava a filha, acusando e perseguindo...
O socorro médico retirou a componente da escola em pleno desfile. A mulher gritava coisas inteligíveis e agredia quem se aproximasse. Amarrada na  ambulância , Alzira tentava de todas as formas avisar sobre a presença da morta. Os enfermeiros aplicaram nova dose de calmantes:- Rapaz , a mulher não fala coisa com coisa e quase estragou o desfile. Tentou me morder, imagine...
-É o carnaval, amigo. Acho que ela está piorando, manda  o motorista acelerar. Meu Deus! Está  sentindo este cheiro de podre? – A sirene berrou no trânsito caótico, não havia como driblar a multidão...o odor nauseante de corpos em decomposição...e o hospital cada vez mais distante...
Alzira escutava cada palavra sem conseguir emitir qualquer som. Queria contar de onde vinha aquele cheiro de morte ... queria voltar para casa...queria que eles tirassem a mãe da cabeceira da maca...
 
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 26/09/2008
Reeditado em 23/02/2010
Código do texto: T1198016
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