Angela, a menina do bordel




Debruçada sobre o piano, a menina ouvia a valsinha, sorriu para o rapaz tímido e deu uma volta  pela sala repleta de móveis finos e bibelôs.  
As chaise-longue bem posicionadas, almofadas de veludo e franjas, brocados e seda italiana.  Mesinhas com abajures e estatuetas de finíssima porcelana.  
Tudo era lindo naquele ambiente: -  Rafael, porque você trabalha aqui?
- Preciso viver, vim estudar na escola de música e não tenho parentes na cidade.
- Sua mãe sabe que você é pianista do Bordel?
- Que isso menina,  isto é jeito de falar?
- Não sou tão bobinha, vou fazer oito anos semana que vem. 

O rapaz perdeu o sorriso e parou de tocar.  Madame Desirré desceu a escadaria silenciosa e elegante.
Observou a neta, cada dia mais parecida com a mãe, não sabia se era uma bênção ou castigo. Tocou a sineta que sempre trazia no bolso. A criada chegou correndo e sumiram pelo corredor lateral:

-  Vou acabar perdendo meu emprego por sua causa.
- Eu só estava conversando com meu amigo.

A empregada tinha pena da garota magrinha e atrevida.
Qual é a vida que uma criança pode ter em um puteiro?  
Trancada no quarto, vigiada pela babá, brincando, montando joguinhos ou folheando livros de gravura.  
Sozinha no mundo de faz-de-conta alquebrado.
Apesar da pouca idade, o convívio com adultos trouxe maturidade e compreensão. Não queria de maneira alguma viver como as moças do salão. 
Sabia muito bem o que acontecia no andar superior.
A  maldade e desvios haviam forjado uma mente ágil e inquieta.
Ouvindo as conversas das criadas, descobriu que a avó obrigou sua mãe a trabalhar na casa. Leiloou a primeira noite da filha e fez vencedor o próprio amante. 
Advogado famoso e de idade avançada. Diante da novidade, o doutor caiu de amores pela filha e dispensou a mãe. Pior, em poucos meses anunciou  orgulhoso a gravidez da jovem.
Quando Angela nasceu,  a mãe fugiu para Manaus. 
Penalizado com a situação, o advogado ofereceu uma boa mesada em troca dos cuidados com a criança.
Crescendo naquele ambiente festivo, as prostitutas e os empregados foram a única companhia.
Nada disso faria diferença. Em poucos dias deixaria a casa e iria para o colégio interno. Na cidade serrana, estaria longe o suficiente para ser esquecida até a maioridade.
O que Madame desconhecia, era que a menina e o pai e encontravam-se com a ajuda da cozinheira.
Breves escapulidas entre uma ida ao mercado ou um passeio até a queijaria  no centro da cidade. Aos poucos o velho advogado foi conquistado pela menina de olhos de boneca, redondos e escuros. O que começou com uma simples curiosidade terminou em um grande apego.
Muito bem recompensada, a cozinheira  implorava permissão para a jovem acompanhante:

- Ela vive presa no  quarto senhora, vamos depressa pegar os queijos. A pequena adora andar de bonde.
- Pode levar,  desde que não atrapalhe.  Como da vez passada, os pedidos vieram trocados.
- Perdão senhora, não irá se repetir, pode ter certeza.
- Minha única certeza é que você será dispensada se acontecer novamente. Leve a criança e pegue um carro de aluguel. Nada de bondes.
Desciam a ladeira apressadas, o carro do doutor aguardava na esquina.  A rotinha semanal nunca era alterada, compras sempre as terças e quintas.
Ele esperava pela empregada e a menina. Quando não avistava a figurinha ficava triste e limitava-se a pedir notícias:

- Hoje a mocinha  está muito calada- Angela balançou a cabeça confirmando-
- Vou embora para o colégio interno semana que vem, vou morar com as freiras.
- Querida, quem sabe não será melhor viver em um ambiente saudável?
- Minha avó disse que tem planos. Vou aprender a ser fina e educada para ajudar nos negócios.
- Isto é um absurdo.  Sua avó está louca, traçou seu destino como fez com sua mãe. -  Dr. Muniz compreendeu que ela iria exigir uma fortuna para entregar a menina.
 
 
 A festa de aniversário
 
Madame  Desirré nunca tocou a neta,  nenhum beijo ou abraço. A única concessão acontecia diariamente quando partilhavam o chá das cinco: 

-  Amanhã você deixará esta casa. As moças insistiram em um lanche de despedida. Hoje é terça e quase não temos movimento.
Angela observava  a avó com um misto de raiva e admiração. Nunca havia visto mulher mais bonita e elegante. Tudo nela era perfeito, as unhas polidas, a pele clara, jóias finas e discretas:

-  A senhora gosta de mim?
A pergunta inesperada não afetou a frieza do olhar, fez um  sinal para que a neta servisse mais chá: 

- Esta marca inglesa é bem melhor que a da semana passada. 

A menina deixou a varandinha do quarto da avó cabisbaixa e triste. Sentada em um canto da cozinha observava o preparo do banquete. 

Naquele dia, o pernil bem temperado  estalava em cozimento lento.  A cozinheira Doralina  fatiava o prato principal em tiras finíssimas:

- Separei um pouco para o jantar dos empregados, tinha que ver a alegria quando viram a carne no prato- A pequena não respondeu, torcia a ponta do casaco, vez por outra consultava o relógio.
- Calma , está  tudo pronto  e será servido sem demora.
- Estou triste com a sua partida.
- Não posso perder esta chance, seu pai me deu dinheiro para voltar para a Bahia e começar meu negócio.
-  Vou sentir saudades.
-  Você é muito esperta, vai ficar bem, tenho certeza. Hora da festa, ajeite esta carinha, quero um grande sorriso.
 Enfeitado com frutas secas e batatinhas coradas, o assado ocupou local de destaque. Canapés delicados, patês  e o bolo de aniversário. 
O refrescante ponche descansava sobre cubos de gelo e as taças eram servidas pelas próprias moças. Dia de folga e comemoração eram raros naquele lugar.
A grande mesa estava repleta e as moças muito maquiadas, erguiam brindes e brincavam como meninas.
Angela sabia que no fundo não eram felizes e que a alegria era falsa como as jóias que exibiam. Ninguém sentiu falta da dona da casa, a cadeira permaneceu vazia e o jantar foi servido.
Aos poucos, gemidos  escapavam abafados, todos sentiam-se mal e enjoados . Angela   acompanhou  a agonia dos adultos intoxicados.  
Alguns tentavam levantar, não tinham forças, a grande maioria terminou caída sobre o prato, olhos vítreos e inchados. O jovem  pianista foi a única perda que sentiu, tocou de leve a testa do moço:

- Eu avisei que não viesse, quase estraguei tudo por sua causa.
Encontrou a avó estirada na cama, contorcendo-se de dor e vomitando negra substância, viscosa e fétida. 
A mulher parecia hipnotizada pelo semblante tranqüilo da menina:

- O que está olhando?- conseguiu pronunciar entre golfadas- Ajude,  chame a ambulância, peça socorro.
- A senhora não respondeu, eu só queria saber se gostava de mim e a senhora não respondeu. A senhora não foi uma avó boazinha.
Um velho conhecido entrou sorrateiro, Angela correu ao encontro do pai:

- Procurei por toda parte. Venha filha, precisamos sair o quanto antes– Os olhos de Madame brilhavam de ódio.

- Tarde demais, velha bruxa! Devia ter aceitado o que ofereci pela menina, mas queria mais...sempre mais.
De mãos dadas deixaram o casarão da rua Alice. O homem explicou que  um famoso estudioso de venenos , havia feito várias misturas e  não havia como identificar a fórmula original. Tudo indicaria uma grande intoxicação por botulismo.
-  No meio deste caos levarão algum tempo para perceber sua ausência. Em algumas horas embarcamos para Europa em um grande navio.  
 
Angela sorriu enquanto acariciava o vidrinho no bolso do casaco. Não havia derramado tudo no chá da avó como ele havia ensinado.
Apenas algumas gotas foram suficientes. Sabia que o pai não era um poço de candura. Ele estava fascinado pela sua  semelhança com a mãe. A cozinheira facilitou a aproximação e deixou bem  claro o perigo que corria.
A menina de casaco vermelho, correu para o carro sem olhar para trás, sentia-se como chapeuzinho vermelho, a personagem favorita , a grande diferença é que não haveria vitória para o lobo mau.
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 21/09/2008
Reeditado em 20/06/2009
Código do texto: T1188736
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