O Enterro
O frio naquela manhã estava terrível. Ainda em sua casa, Baltazar observava sua janela, ou melhor, observava a neblina que se formava do lado de fora de sua janela. Na linha de Cronos, o inverno começava a ceder espaço para primavera, e somente um desejo perverso, um poder sobrenatural, seria capaz de criar aquele terrível, mas ao mesmo tempo belo espetáculo. Ele sabia como poucos que isso era obra dele. Uma espécie de despedida bizarra.
Sua mulher ainda dormia, envolta em pesados cobertores. Ao abrir os olhos, ela viu seu marido, seminu, encarando a janela com um olhar que trazia um misto de medo e admiração. “Baltazar querido, o que houve? Volte para a cama, está frio”!
Por um momento sua concentração foi quebrada, quando rapidamente virou a cabeça para sua mulher e disse, “Não posso. Cristiano morreu”. Voltando-se para a janela complementou: “Preciso ir ao seu funeral agora”.
A mulher, cujo nome era Rosa, começou a tremer. Ela conhecia aquele jeito de falar de Baltazar. Não só o jeito de falar, mas o olhar e a postura; isso acontecia sempre que ele... que ele... Antes que ela concluísse o pensamento, Baltazar saiu da janela, se aproximou da cama e beijou sua testa. “Preciso sair”, disse indo ao armário.
Rosa ficou parada, olhando o marido se vestir. Vestes pesadas, lúgubres. Dando um rápido “até mais tarde querida”, ele saiu. Rosa então pensou “meudeus” e começou a fazer o sinal da cruz, porém antes de concluí-lo ela desistiu e simplesmente se deitou e virando-se para o lado, dormiu.
O cemitério estava em paz naquela manhã. O coveiro passeava tranqüilo, quando inesperadamente o nevoeiro se formou tomando o lugar e trazendo consigo vários homens e mulheres, todos de vestidos de maneira a apropriada a um cortejo fúnebre. À frente, um padre entoava hinos em línguas a muito esquecidas. Baltazar, que precedia a todos, se aproximou do atordoado coveiro e o perguntou “Onde será o Mausoléu de Cristiano”? O pobre então pensou “não existe um Mausoléu de Cristiano”, mas sua boca respondeu “segunda quadra à direita senhor”.
No fabuloso mausoléu, cuja construção faria inveja a muitos faraós da antiguidade, o padre, junto com os acompanhantes do cortejo, entoava os ritos finais, enquanto Baltazar, que a tudo acompanhava a distância, começou a falar “Você mesmo planejou tudo, não foi”?
Das sombras, uma voz dissera “Sim. Planejei”. Friamente, Baltazar puxou de seu casaco um maço de cigarros e com parcimônia retirou um e o acendeu. “Que seja. Acha que isso mudará alguma coisa”?
Ao seu redor, o eco dos hinos ganhavam peso, então a voz sibilou um suspiro e disse “Não sei. Acho que não. Não gostaria de tê-lo feito, mas o tinha de ...”.
A misteriosa sombra não teve tempo de concluir sua frase, pois os ritos haviam acabado. Todos os convidados então começavam a se espalhar e um ou outro vinha apertar as mãos de Baltazar e trocar algumas palavras. Poucas horas depois, todos haviam se retirado e o local fora lacrado, e para todo sempre ele assim permaneceria.
Todos voltaram para suas vidas; o padre a sua capela, o coveiro ao seu trabalho, Baltazar a sua Rosa. Na escuridão, porém, um assobio vindo das sombras se espalhava pelo lugar e assim permaneceria, cantando melodias tristes e chorosas, sem que ninguém nunca, nunca soubesse disso.
Isso é, ninguém exceto Baltazar...