Fantasmas na Rua Virtude
1979.
Erom Andreas Chagas parou o carro, um Chevette, na esquina de uma rua, era princípio de madrugada e não havia uma única pessoa sequer em toda a extensão do lugar. Ele ficou um tempo parado dentro do carro, vidros fechados, pensando se deveria realmente sair para averiguar se suas desconfianças estavam corretas. Falava-se que naquela rua coisas estranhas costumavam ocorrer.
Após passar alguns minutos pensando consigo mesmo se valia a pena se pôr frente a frente com o desconhecido todas as noites de sua vida desde que resolveu assumir o que ele mesmo chamava de “missão”; Erom se convenceu de que realmente era aquilo que deveria fazer. De dentro do carro através do vidro era possível ver a rua desde o seu princípio no entroncamento com a Rua Emílio Guadany, onde o carro estava parado, passando pelo segundo cruzamento com a Rua Barão de Salusse e o terceiro mais ao longe com a Rua Cordura, finalizando-se no encontro com a AV. União.
Saiu do veículo e olhou para a esquerda e em seguida para a direita, tudo parecia totalmente normal, não fossem as vozes. Logo que deixou o carro ele as ouviu de modo bem tênue, falavam coisas que ele não conseguia distinguir, sussurravam. O homem bateu a porta e seguiu em frente olhando para todas as casas do lado direito da rua, sua intenção era verificar uma a uma até que pudesse identificar se alguma delas possuía algo que justificasse a existência das vozes e dos fenômenos estranhos que ocorriam por ali.
A rua parecia ser muito mais antiga do que Erom podia imaginar, o chão era confeccionado com paralelepípedos, e lembravam muito as ruas de uma outra cidade onde ele havia passado; Paraty. Não havia nada de errado com o calçamento a princípio, exceto o fato de que uma leve névoa começava a se erguer do solo; Erom não deu muita atenção àquilo e continuou verificando as casas, uma por uma, ele parava em frente do lugar, olhava fixamente para a casa e prosseguia para a próxima; seus sapatos em contato com o calçamento fazia pequenos estalos que ecoavam no silêncio do lugar.
Depois de averiguar cinco casas, ele parou e olhou de volta para o carro estacionado junto à esquina, mas não tinha nada lá, fora somente um pressentimento. Em seguida quando ia continuar, ouviu novamente aquelas vozes murmurantes:
“Não tenha medo”._Sussurrou a primeira.
A segunda sorriu, e uma terceira completou:
“Ele está só”.
Havia muitas outras vozes, mas elas falavam ao mesmo tempo e Erom não as entendia.
As luzes dos postes de iluminação que estavam acesas num tom claro, tremeluziram, piscaram e em seguida se apagaram.
Outras risadinhas surgiram no instante que as luzes se apagaram, mas aquilo não durou nem um segundo; as luzes piscaram e ressurgiram novamente. Erom estava agora no meio da rua, tinha corrido para aquele lugar numa reação a falta de luz, provavelmente qualquer criatura que se esgueirasse pelas sombras produzisse algum barulho que a denunciasse, mas no fundo ele já sabia que não estava diante de nada material.
As pessoas costumavam relatar alguns fatos que o intrigaram desde que chegou na pequena cidade; diziam os moradores que era comum se ouvir gritos em meio a noite, ou passos, como os de uma multidão, outros relatavam o estranho fenômeno de que dia sim dia não, havia grama entre os paralelepípedos do calçamento. As vozes cessaram.
Ele continuou caminhando, agora olhava para as casas de ambos os lados revezadamente; as pessoas muito provavelmente estavam dormindo, pois já era madrugada, pelo menos aquelas que não estivessem apavoradas ou assustadas com o que vinha ocorrendo na rua nos últimos tempos. Qualquer morador desavisado que por ventura estivesse espiando para fora de casa por uma fresta de janela, por exemplo, veria um homem franzino trajado com calça e casaco andando no meio da rua em plena noite de verão e provavelmente o confundisse também com alguma aparição, mas o casaco servia para repelir o frio; o frio que sempre aparecia quando certas coisas pousavam sobre uma determinada região, podia ser uma casa, um quarto, uma rua, como era o caso, ou até mesmo uma cidade inteira.
No final da Rua, as luzes dos postes piscaram novamente; Erom percebeu que a leve névoa que se erguera do solo agora representava uma capa esbranquiçada que ganhava volume lentamente à altura dos seus joelhos. Um risinho infantil se fez presente às costas dele que se virou num sobressalto, mas nada viu; continuou andando até parar bem debaixo de uma das luzes dos postes, faltavam poucos metros para chegar à esquina da a rua Barão de Salusse.
O ar ao redor, agora, estava um tanto quanto mais pesado, havia até uma certa dificuldade em respirar; ele não sabia se aquilo era causado pelo nervosismo ou se era alguma reação provocada pelos fenômenos que estava presenciando. Pensando um pouco ele chegou a uma conclusão e descartou a possibilidade de ser nervosismo, visto que já tinha passado por situações muito mais embaraçosas, para não dizer aterrorizantes, do que aquela.
Finalmente o frio apertou, Erom abraçou o próprio corpo por alguns segundos e se esfregou para produzir um pouco mais de calor, a névoa agora movia-se lentamente como que dançando ao sabor de um vento que não soprava, ela estava muito mais visível agora do que num minuto atrás, tinha se materializado, densa e gélida, tomava toda a dimensão da rua do começo ao fim. Nesse momento Erom já estava caminhando no centro do primeiro cruzamento, onde a Rua Virtude se encontra com a Barão de Salusse; chamada por seus moradores somente por Rua Barão.
_ Neblina._ disse ele baixinho, e percebeu que por seus lábios escaparam um vapor pálido.
A temperatura na Rua baixou bruscamente, não havia vento, tampouco nuvens no céu, porém algo muito estranho estava acontecendo; por sua experiência com fenômenos daquele tipo, Erom sabia que não se tratava de uma simples situação e sim de algo muito mais complexo. Certa vez quando esteve em Recife, na chamada cidade velha, viu algo parecido ocorrer em uma casa, os moradores locais tratavam aquilo com um nome que Erom guardou e talvez nunca mais se esquecesse. “Malassombro”.
Eram pessoas muito simples e nada entendiam sobre as coisas fora da compreensão comum, para eles tudo se resumia entre o mundo dos vivos e o dos mortos.
_Malassombro!_ repetiu; o vapor pálido ressurgiu por sua boca.
O risinho reapareceu, como risada de criança, baixinha, mas persistente; uma, duas, quatro, oito. Elas estavam se multiplicando, vozes bem distintas com timbres diferentes, era como se o homem ali parado naquele entroncamento de vias estivesse cercado por um clã de crianças invisíveis. Ele quase as podia ver com sua mente, mas na verdade era a imaginação que estava falando já que não conseguia verdadeiramente vê-las.
Preocupado, ele sabia que não poderia sair daquele lugar tão facilmente, sabia também que em hipótese alguma poderia demonstrar temor, algumas criaturas se alimentam do medo; não sabia com quem ou com o quê estava lidando, e agora teria de terminar o que começou.
As criancinhas-fantasma continuavam murmurando algo indecifrável e sorrindo momentaneamente
Algumas murmuraram um cântico:
“Quem quer ver você?”...
...“Ele quer ver você.”
“Ele quer ver você”
“Lá vêm ele pra te ver...”
Cantarolaram isso por algum tempo como se estivessem numa daquelas brincadeiras de ciranda; e isso estava afetando seriamente a concentração de Erom, estava preparado para enfrentar qualquer figura medonha, porém não tinha concebido enfrentar vozes infantis.
A nevoa ergueu-se um pouco mais; Erom sabia que alguém ou alguma coisa estava vindo encontrá-lo.
“Malassombro”_pensou, tentando ignorar as crianças invisíveis.
As luzes começaram a piscar freneticamente e de modo desordenado, algumas acendiam enquanto outras apagavam numa velocidade que aumentava gradativamente; As vozes infantis entoaram um mantra estranho como um coral; tudo enlouqueceu de repente e parou.
Nem vozes nem luzes ensandecidas, tudo estava normal exceto pela névoa que permanecia sob o solo e que começou a se erguer e tomar forma. Algo começou a se levantar no meio da neblina baixa, era feito de névoa; como um redemoinho às avessas, uma formação girava e trazia para si toda aquela névoa que inundava a rua, rapidamente todo o rio de neblina que antes estava espalhado pelo chão, agora havia se condensado numa imagem esfumaçada e com forma humana, mas sem face definida. O frio chegou ao seu ponto mais agudo e Erom começou a tremer por não conseguir produzir calor suficiente para se manter aquecido.
Aquilo flutuou de um lado para o outro da rua, com uma leveza imaterial; às vezes a fumaça se tornava mais densa e outras vezes tornava-se quase translúcida; era como olhar para uma criatura envolta num manto pálido e que pairava poucos centímetros acima do chão, esvoaçante como aqueles relatos antigos de fantasma, entretanto, não era um simples relato. Era verdade.
O fantasma mostrava uma face que mudava constantemente, e no manto feito de brumas surgiam outras faces infantis que sorriam ao ver Erom parado frente aquela coisa, muitas apareciam e sumiam. Toda a rua parecia naquele momento ter se tornado parte de uma cidade há muito esquecida; Ele nunca tinha experimentado tal coisa e fazia força para não ceder ao frio e a seus pensamentos mais íntimos de medo.
O fantasma olhava para dentro dos olhos de Erom, como se estivesse procurando algo dentro dele enquanto as crianças riam e cochichavam
“Aonde está a marca?_ diziam elas.
“Ele não tem a marca.”
“Então nos pertence”
Sorriram novamente.
Forçando-se a pronunciar algo o homem falou:
_Quem é você?
Não adiantou segurar as emoções por todo aquele tempo, porque a resposta do vulto fez com que toda a doutrinação mental de Erom caísse por terra.
“Legião”_ respondeu o fantasma.
As luzes piscaram novamente, apagaram e algumas estouraram até ao final da rua, depois ascenderam as que ainda estavam inteiras e a criatura se desfez numa velocidade espantosa, o frio desapareceu no mesmo momento e tudo voltou a ser como antes daquele encontro insólito.
Desse encontro duas frases continuaram na mente de Erom pelo resto de sua vida, a primeira, aquela que as crianças fantasmas disseram, “Ele nos pertence” e a segunda foi o nome que o fantasma deu antes de desaparecer completamente.