O Escritório

Marcos acordou sobressaltado. Ainda era noite, e ele suava frio. A luz prateada da lua iluminava o peito nu do homem, encharcado de suor. Parecia que ele havia entrado em uma piscina e saído sem secar-se. Estava tudo muito silencioso. Silêncio. Apenas o barulho do vento a soprar no exterior da casa. Marcos olhou para o relógio. Três da manhã. Não era possível. Esses pesadelos nunca acabariam?

Ele se levantou, descobrindo-se do lençol. Não conseguiria mais dormir até que a manhã raiasse, disso ele sabia. Então não ficaria deitado na cama, tentando por tudo adormecer. Preferia fazer algo de produtivo.

Marcos saiu do quarto, descendo as escadas de mármore com os pés descalços, o frio do chão entrando em contato com a sola de seus pés. Foi para um dos banheiros da casa, despiu-se, ligou o chuveiro e entrou no banho.

Deixou a água percorrer seu corpo, aliviando a sensação de frio. Aliviando a sensação de medo. O que ele sentia era medo. Por mais que tentasse esquecer, por mais que fizesse de tudo para ocupar a cabeça com outra coisa, ele não conseguia. Fora culpa dele, e essa culpa apenas ele poderia carregar. Marcos fechou os olhos, lembrando-se dela. Flávia. Seu sorriso, seus olhos redondos e negros, sempre indagadores; seu cabelo muito liso e sua pele muito branca. Era a imagem da perfeição. Mas ela não estava mais entre os vivos. Marcos a matara.

Agora ele sabia que tudo fora culpa dele. A morte trágica de Flávia, ali, nos braços dele, naquela casa. Marcos chorara a morte dela. Chorara muito, até seus olhos incharem e as lágrimas secarem. Ele ainda sentia o cheiro de pólvora no ar, o cheiro da arma com a qual aquele maldito assaltante a matara; a arma que era de Marcos, mas nunca chegou a ser usada por ele. Flávia foi embora com um filho no ventre. E era culpa de Marcos. Ele sabia que era. Se aquela arma não existisse, se ele não existisse, quem sabe nada teria acontecido.

Marcos desligou o chuveiro, secando-se com a toalha. Depois se vestiu novamente. Aquele barulho que o atormentava em seus sonhos, aquele choro infantil. Uma criança recém-nascida que chorava no tom mais alto possível. Tão alto que fazia Marcos acordar, arrepiado. Não havia nada ali que lembrasse Flávia. A simples lembrança dela doía. Marcos queimou as cartas que eles trocaram na adolescência, as roupas dela, as roupas do bebê, doou todos os móveis do quarto da criança, que acabou se tornando um escritório. Mas o choro o atormentava. Era um choro insistente, que nem sempre vinha apenas em sonhos. Ele ouvia em todos os cantos da casa, em todas as noites, mas principalmente em seu escritório. A criança parecia estar ali, ao lado, chorando.

Ele não queria mais lembrar, mas era inevitável. Marcos saiu do banheiro e seguiu para o escritório. Mesmo que não quisesse lembrar, mesmo com aquele choro insistente, o escritório era o lugar no qual ele se sentia mais calmo. Abriu a porta do cômodo.

O bebê chorava alto. Marcos pensou estar alucinando, mas não estava. Havia ali, em meio à mesa de mogno, computador e papéis de trabalho, um berço e um armário. Eram do bebê. Marcos ouvia o som de uma caixinha de música sobreposta ao choro da criança. Aquele choro constante. Infinito.

Boi, boi, boi

Boi da cara preta

Pega essa criança

Que tem medo de careta

Marcos olhou para o lado. O berço da criança estava ali, exatamente no mesmo lugar onde o berço verdadeiro estava antes que a tragédia ocorresse. Marcos viu uma mulher. Era Flávia. Ela cantava, a voz bela, enquanto balançava o filho nos braços. O bebê chorava baixinho, enquanto a caixa de música continuava a tocar.

- Shhh... Não faça barulho, Marcos. – ela disse, colocando o indicador entre os lábios. – Ela já dormiu. Nossa filha não é linda?

A voz de Flávia parecia vir de longe, de algum lugar que não aquele. Parecia como a freqüência de um rádio mal sintonizado. Ela sorriu, colocando o bebê no berço. Depois cantou um pouco mais, antes que fechasse a caixa de música.

- Flávia. – Marcos disse, aterrorizado. Nunca fora de acreditar em fantasmas ou coisas sobrenaturais, mas aquilo era algo além da explicação dele. – Flávia, meu amor. – seus olhos encheram-se de lágrimas. – Flávia!

- O que foi, Marcos? – ela perguntou, a voz ainda distante. – Por que está chorando? Eu sei o quanto nossa filha é linda!

Marcos deu um passo, mas suas pernas disseram que ele não devia prosseguir. Ele insistiu. O que estava acontecendo? Por que Flávia estava ali? Era como se tudo estivesse normal, como se nada houvesse ocorrido. Mas por quê? Marcos chegou até onde Flávia estava. Ela debruçava-se sobre a grade do berçário, olhando a filha que dormia tranqüilamente.

Ele ficou ao lado dela, encostando-se à grade. O bebê estava lá, os olhinhos abertos, parecendo duas contas negras.

- É tudo uma ilusão. Nada disso existe. – disse ele, se afastando.

- O que está dizendo, amor? Enlouqueceu? – Flávia franziu o rosto, virando-se para ele. - Venha, me abrace.

Marcos estava preparado para sentir o frio cortante assim que o espírito de Flávia o atravessasse, assim como em todos os filmes de terror que já tinha visto. Mas, ao invés disso, ele sentiu que os braços dela o envolviam. O cheiro de Flávia grudava-se ao seu corpo, o calor dela aquecia-o. Ele a apertou forte, beijando-a nos lábios com paixão. Mas alguma coisa estava errada.

Toda doçura dela se esvaiu. Em seu lugar, um cheiro de podridão tomou conta do lugar. Marcos abriu os olhos, nauseado, e se viu beijando uma Flávia com o rosto putrefato. Os vermes andavam por entre os furos de suas bochechas, e seus olhos tornavam-se cada vez mais encovados. Até que os olhos desapareceram. Tudo o que Marcos podia ver no lugar dos olhos eram dois enormes buracos, negros e fundos, que pareciam infinitos. As mãos podres dela acariciaram-no, mas Marcos se afastou. Afastou-se rápido, andando para trás.

- Não, você não existe. Nada disso existe. – disse ele, aterrorizado, enquanto Flávia, ainda com o rosto deformado, franzia a testa.

- O que está dizendo, meu amor? – ela perguntou, estendendo a mão podre para Marcos. Ela começou a andar de encontro a ele, mas Marcos se afastava na mesma medida, o coração palpitando rápido, o sangue passando por seus capilares como se estivesse em brasa. Alguma coisa estava terrivelmente errada.

Marcos fechou os olhos. Respirou fundo. Colocou as palmas das mãos na frente dos olhos fechados.

- Nada disso existe, nada disso existe, nada disso existe... – ele continuou a repetir o mantra infinitamente. O cheiro de podridão foi esvaindo-se aos poucos.

Abriu os olhos. Flávia continuava ali, de pé, olhando-o com um olhar preocupado. Seu rosto voltara ao normal. Seu cheiro, seu corpo. Parecia tudo perfeito.

- Marcos, o que você está fazendo, amor? – ela perguntou, andando de encontro a ele. Dessa vez Marcos não andou para trás. Permitiu que ela se aproximasse. Ela o abraçou novamente, e parecia que todo o frio havia ido embora. Ele largou-a logo, receoso de que ela voltasse a parecer cadavérica. – Está tudo bem amor. Nada de ruim vai te acontecer.

- Mas Flávia, eu lembro de tudo, aqui, nessa casa. A a-arma, ela d-disparou e v-você correu e me protegeu. O t-tiro te atingiu. Eu lembro, eu lembro de tudo.

- O que está dizendo, amor? O que quer dizer? Vamos, vá dormir. Eu ficarei aqui com nossa filha. Não se preocupe comigo.

- Prometa que nunca mais vai me deixar, Flávia. Nunca mais. – ele disse, abraçando-se a ela como se fosse a coisa mais valiosa de todo mundo.

- Eu prometo, Marcos. Eu nunca te deixarei.

Marcos a beijou mais uma vez. Seu corpo suava mais do que quando ele havia acordado do seu pesadelo. Aquele choro havia ido embora, e parecia que nunca mais retornaria.

Ele saiu do escritório. Ficou de costas para a porta e, deslizando lentamente, sentou-se no chão e chorou, as mãos trêmulas sobre os olhos molhados. Aquilo era loucura. Era tudo imaginação. Nada daquilo estava acontecendo. Flávia morrera, levando consigo sua filha. Sua linda filha. Era uma ilusão, e precisava ter um fim.

Marcos correu até seu quarto, subindo as escadas de dois em dois degraus. Nada daquilo existia. Nem aquele choro, nem aquele quarto, nem todo o resto. Era tudo fruto de sua imaginação. E ele comprovaria isso. Precisava dar um basta naquela loucura.

Abriu uma das gavetas da cômoda de seu quarto. Puxou de dentro dela uma caixa aveludada, vermelha. Abriu-a.

Havia uma arma automática depositada delicadamente na caixa. E, ao lado, um pente de balas. Marcos carregou o revólver, destravando-o.

Desceu as escadas mais rapidamente ainda, o sangue pulsando em suas veias com força. Nada daquilo era real. Nada daquilo existia.

Marcos chegou até a porta do escritório. Girou a maçaneta, abrindo a porta.

Flávia continuava ali, admirando o bebê, que dormia tranqüilamente.

- Marcos? – ela perguntou, franzindo o cenho. – Já não mandei que fosse dormir?

Marcos sacou o revólver, apontando-o na direção de Flávia. Seus olhos estavam marejados de lágrimas, seu corpo todo tremia e suava.

- Marcos, o q-que v-você está fazendo?

- Nada disso existe. – ele balbuciou. – Nada disso é r-real. V-você não é real.

- O que você está dizendo? – Flávia colocou as mãos para o alto lentamente. – Marcos, meu amor, abaixe essa arma. Vamos conversar.

- Conversar! – ele gritou, fazendo o bebê acordar. A criança abriu os olhos serenamente, ainda calada. – Você é apenas um f-fantasma. Uma imagem c-criada pela minha imaginação. V-você não existe.

- Marcos, olhe o que está falando! – Flávia também chorava, nervosa. Os dedos de Marcos começaram a tremer no gatilho. – É claro que eu existo, não está me vendo? Não está vendo a sua filha?

- Não! Você morreu, há três meses atrás. E-eu lembro perfeitamente. V-você foi baleada, e estava grávida.

- Eu estou viva! – ela gritou, fazendo o bebê começar a chorar. – Sou apenas eu! Eu não morri, Marcos! Estou aqui, não está vendo? Não percebe que está imaginando tudo isso!

- Mentira! M-mentira! – ele gritava, e a criança chorava mais audivelmente. Marcos colocou as mãos nos ouvidos, fechando os olhos. – Faça ela parar! Faça esse maldito choro parar! – depois, Marcos voltou a apontar a arma para Flávia, que, rapidamente, pegou o bebê no colo e começou a balançá-lo, na tentativa de acalmá-lo.

- Marcos, me escute. Escute-me, e-eu estou viva, Marcos. V-você não está bem. Por f-favor, acredite em mim.

- Não. – disse ele – Eu não quero acreditar.

Marcos puxou o gatilho duas vezes. O cheiro de pólvora infestou o ar. Largou a arma no chão, sentindo os salpicos de sangue em sua boca e em sua roupa. Flávia caíra no chão com estrépito, uma poça de sangue formando-se rapidamente sob ela. O bebê, nos braços da mulher, chorava descontroladamente. Aquele choro insistente. Aquele maldito choro.

Marcos pegou a arma do chão, andando até onde o corpo do fantasma jazia. Apontou para o bebê. Puxou o gatilho mais uma vez. O choro se extinguiu.

Ele sentou-se no chão, chorando. Caiu ao lado de Flávia. Nada daquilo existia, nada daquilo era real. Flávia era um fantasma. O bebê também. Ele era uma ilusão.

Marcos colocou o cano da arma na boca. Puxou o gatilho. E tudo escureceu.

***

Fragmento do diário de Flávia:

15/02/06

Estou arrependida. Tive uma noite com um outro homem, na casa de Marcos. Não sei o que me deu. Marcos nos viu. Pensei que ia acabar tudo entre nós. Mas não. Ele simplesmente saiu de casa, sem nenhum tipo de reação. Depois, durante a noite, voltou, como se nada estivesse acontecido.

08/03/06

Estou grávida. O filho é de Marcos, disso tenho certeza. Tomei todas as precauções com meu outro caso. Nunca mais o vi, e nem o quero. Marcos está sendo um ótimo marido. Ele nunca mencionou o fato de nos ter visto.

25/03/06

Marcos não está bem. Ele diz ver coisas que só ele vê, ouve coisas que ninguém ouve. Ele diz que precisa de um escritório.

04/10/06

Invadiram nossa casa hoje. Foi um dia horrível. Marcos matou o assaltante. Fui até a delegacia e o advogado disse que é legítima defesa. Marcos passou o resto do dia no quarto, chorando.

12/11/06

Marcos finge que não existo. Passa por mim sem falar, não olha mais nos meus olhos. É como se eu houvesse morrido para ele. Talvez só agora ele esteja reagindo à traição. Não sei o que fazer.

13/11/06

Marcos enlouqueceu! Queimou todas as minhas roupas e as roupas do bebê, e doou todos os móveis do quarto da criança. Ele diz que precisa de um escritório.

***

Consegui reaver o berço do bebê e o armário. Marcos está enlouquecido.

07/12/06

Não sei mais o que fazer. Nossa filha nasceu e Marcos finge que ela não existe. Ele parece se perturbar ao ouvir o choro dela, mas finge que a criança não existe.

16/01/07

Estou desesperada. Não agüento mais! Marcos acorda todos os dias durante a noite, suando frio. Ele diz ouvir o choro da nossa filha, e passa toda a madrugada no quarto dela. Oh, Deus, o que faço?

17/01/07

Já me decidi. Amanhã estarei acordada durante toda a noite no quarto do bebê. Conversarei com Marcos e darei um ponto final em tudo isso.