Pagamento

Samuel abriu os olhos devagar, a primeira coisa que sua visão sonolenta focou foi as arvores de beira de estrada passando velozes lá fora, seus reflexos ficaram amortecidos pela situação e assim que pode o rapaz virou o seu rosto para o banco do motorista.

Dirigindo o carro a pelo menos 90 por hora, estava o seu irmão mais novo, Heitor o rapaz dirigia com a atenção totalmente voltada para a estrada em frente, que parecia sempre ser igual naquele trecho, nem mesmo reparou em Samuel que se endireitou no banco mais a vontade e se espreguiçou.

- Opa, bem vindo de volta à terra dos vivos! – Heitor disse sem tirar os olhos da estrada.

- Em que parte do caminho estamos? – ele perguntou contendo um bocejo e lutando para se manter desperto a monotonia do ambiente parecia querer carregá-lo novamente para um cochilo.

Heitor não respondeu, ao invés disso, sua mão foi no porta luvas a procura de algo, ele remexeu entre alguns papeis e minutos depois jogou um mapa da estrada sobre o colo de Samuel que olhou para ele desinteressado.

- Olha ai!

- E eu vou adivinhas as referencias do mapa é? – Samuel perguntou de forma irônica.

O irmão demorou em responder, mas sua expressão perdeu o tom brincalhão, se tornou seria e rígida como se tive-se sido subitamente esculpida em pedra, o outro rapaz entendeu que aquilo era um sinal claro de que naquele momento eles estavam chegando no local que era o motivo pelo qual ele jamais dirigiria de novo levando alguém, no Maximo sozinho, mas jamais junto.

“2 anos antes”

“O fogo devorava a carcaça do veiculo há alguns minutos já, ele se encontrava virado de cabeça para baixo após uma capotagem violenta e rápida, os dois motoristas estavam à beira da estrada, caídos, um deles apenas com um corte na testa e um arranhão no braço, já o outro estava nas ultimas, o sangue já secava nas roupas enquanto sua respiração era cada vez mais lenta e sonora, o fim se aproximava para ele, mas felizmente nunca chegou, não pelo menos naquela noite”.

“Posso ajudar?”

Época atual.

- Hein? Posso ajudar?

A pergunta arrancou Samuel de seus pensamentos e ele se voltou para o irmão que estendia a mão querendo pegar o mapa, a cabeça voltada para a estrada, à outra mão firme no volante como sempre.

- Me passa esse papel, eu encontro a gente!

- Nem pensar, eu faço isso! – ele disse de forma decidida – concentre-se no volante!

O outro apenas concordou com a cabeça e continuou dirigindo, Samuel abriu o papel e começou a olhar, vários pontos riscados que eram as estradas coloridas, estaduais e de terra, havia varias referencias destacadas, algumas cidades marcadas em vermelho e outras somente marcadas com pontos pretos, “as grandes e as pequenas”, ele pensou enquanto se lembrava que ele e o irmão haviam passado à noite na casa de uns amigos na cidadezinha mais próxima, Catedral dos bons ventos, tinha um clima agradável embora o povo fosse meio fechado.

Seus olhos procuraram à cidade em questão e então toparam com a única estrada que poderiam estar pegando naquele momento, um velho trecho marcado em tinta preta no papel, não muito longo pelo que indicava, e com um nome escrito em caligrafia caprichada de mapa bem em baixo, “Estrada Velha Passagem”.

Sim era ali mesmo que estavam, e se seus cálculos não estivessem errados, nesse exato segundo estavam na metade do percurso, a apenas umas 2 horas de distancia de Recanto do cascalho, a cidade na qual esse trecho terminava.

Ele voltou a bocejar e então olhou para o lado de fora novamente, foi nessa hora que ele enxergou em meio às trevas da noite, uma velha senhora parada a beira da estrada olhando fixo para o carro deles, quando ele pos seus olhos naquilo, o tempo pareceu correr mais devagar, quase parado, e Samuel pode ver com todos os detalhes a mulher ali, sua boca se mexia como que querendo lhe dizer algo, mas nenhum som lhe chegava aos ouvidos e isso o deixou mais apavorado ainda.

“2 anos antes”.

“- Alguém por favor! – o rapaz gritava correndo freneticamente em volta do veiculo em chamas, sua respiração saia em arquejos pesados e ele não agüentava mais fazer aquilo, rodar e rodar gritando por ajuda, sabia que ninguém viria e que seu irmão somente agonizaria ali ao lado, ele já chamara o resgate, mas no ponto onde estavam, bem no centro daquela estrada, com certeza levaria muito para que eles pudessem vir socorre-los, a essa altura a única vitima fatal já teria morrido.”

“Ele parou e então caiu de joelhos no chão, havia um pouco de sangue em seus lábios que havia escorrido para o queixo, junto a esse sangue já quase começando a secar, juntaram-se lagrimas de tristeza e remorso, ele esmurrou o chão violentamente chorando cada vez mais”.

“- Por que eu tinha que correr? – ele gritou para a noite com revolta – Por que?”

“Seu choro só cessou quando ele escutou um som quase ao seu lado, o leve pisar de alguém no asfalto logo atrás, alguma pessoa que caminhava lentamente como se tive-se receio de se aproximar, seus sentidos dispararam e ele se virou para ver quem era”

Época atual.

Aquela visão súbita fez sua espinha gelar, aquela senhora parecia querer lhe dizer algo e isso o apavorava terrivelmente, lembranças trágicas lhe vieram à mente e então subitamente ele se virou para o irmão, o rapaz ao lado dirigia normalmente, não parecia ter notado nada de estranho, por um lado isso o animou, mas também o apavorou, não era possível que somente ele vise aquilo, estaria ficando louco?

Ele voltou sua atenção para velha senhora e então para sua surpresa ela havia sumido do acostamento, como se nunca tive-se estado lá.

Um alivio quase sobrenatural recaiu sobre ele, Samuel encostou-se ao banco aliviado, fechou os olhos e tentou relaxar enquanto suspirava rapidamente, Heitor olhou para ele e então disse.

- O Samuel se ta bem?

O rapaz ergueu a cabeça para fita-lo e então perguntou voltando a encostá-la de olhos fechados.

- To sim por quê?

- Se ta pálido, parece que viu um fantasma!

No fundo de sua mente, Samuel disse a si mesmo, “e vi mesmo”, mas tratou de afastar aquele pensamento sombrio de suas idéias e então respondeu.

- Ah foi só um mal estar, frescura de nada!

- Ah OK! – Heitor respondeu se voltando para o volante, a viagem dos dois irmãos continuou igual, por alguns momentos ela começou a cair na monotonia e Samuel estava quase chegando a pegar no sono quando sentiu que o veiculo estava parando devagar.

Ele levantou a cabeça do banco e olhou para os lados surpreso, o carro estava ficando cada vez mais lerdo, ele procurou na janela algum sinal de cidade ou casas próximas, mas não viu nada alem de arvores, e mesma igualdade de sempre, virou-se para o irmão e o viu observando o acostamento da direita enquanto ia soltando o acelerador aos poucos.

- O que se ta fazendo? – ele perguntou passando a mão no rosto.

- Parada de 5 minutos! – o outro respondeu sem tirar os olhos da beira da estrada.

- Pra que? – Samuel perguntou se virando para observar no mesmo ponto que o irmão.

- Preciso mijar só isso! – foi à resposta.

Um silencio reinou entre eles então, Heitor parou o carro e desceu, foi ate a janela de Samuel que abria a porta e falou.

- Já volto ai!

- Vou aproveitar para esticar as pernas! – ele respondeu saindo do carro.

Enquanto o motorista se dirigia para as arvores próximas, o outro caminhou ate o porta malas e se encostou ali, a noite estava com um brisa agradável e imperceptível de dentro do veiculo e isso o fez relaxar, ele se encostou e começou a pensar na visão misteriosa da beira da estrada, não era possível que fosse a mesma pessoa, aquilo não fazia sentido, definitivamente já havia passado algum tempo, seria muita falta de sorte ele ser encontrado a essa altura do campeonato.

Sua mente vagueava sobre detalhes quase esquecidos de tudo quando ele sentiu uma mão sobre seu ombro, deu um sobressalto de leve e então disse.

- Ate que em fim mijão, anda temos muito.... – mas as palavras congelaram em sua garganta quando ele terminou de se virar.

Ali bem ao seu lado, parada a fita-lo com um ar serio e de reprovação, estava à velha senhora da beira da estrada, seu coração pareceu parar de bater por alguns instantes e ele ficou observando-a paralisado, os olhos dela eram como dois faróis que pareciam ver dentro da alma dele e isso o deixou mais apavorado ainda, Samuel deu um passo para trás, a voz como que pressa na garganta, quase sufocando, ela deu alguns passos a frente e então disse.

- Nós temos um acordo!

- Vá embora sua velha, suma daqui! – ele berrou de forma esganiçada.

- Não pode me passar a perna! – foi à resposta enquanto ela avançava, aquele andar e aquela forma de olha-lo fez Samuel congelar – se não me pagar o que deve, eu vou retirar o beneficio.

Uma súbita imagem irrompeu na mente de Samuel, uma imagem clara de morte e dor e aquilo o fez ficar apavorado, não, não podia permitir que ela fizesse aquilo, mas também sabia que se fosse pagar, poderia ser muito caro para ele.

- Vá pro inferno vagabunda maldita! – ele berrou furioso.

Ele então saiu correndo rapidamente, sabia que agora era à hora exata para fugir, em algumas horas ele e o irmão estariam fora da velha passagem para sempre, com um pouco de sorte jamais pisariam naquele trecho novamente e ela jamais viria cobrá-lo, nunca mais, estaria livre, foi ate o banco do motorista do veiculo e assim que abriu a porta e se sentou, lembrou-se que não dirigia a 2 anos.

- Ah é como andar de bicicleta! – ele disse para si mesmo furioso, viu o irmão voltando do mato lentamente, uma expressão de alivio no rosto, ele pretendia espera-lo e disser que queria dirigir um pouco, mas subitamente sentiu um bafo frio da morte sobre sua nuca, uma voz sussurrou para ele, “ela esta bem ai ao lado, se manda”, ao ouvir aquilo, Samuel apertou a buzina freneticamente.

O irmão chegou perto do carro surpreso por vê-lo ao volante e disse.

- O cara o que esta fazendo ai, quem dirige sou eu lembra?

- Entra nesse carro e vamos embora rápido! – ele disse sem paciência.

- Mas...

- Anda logo droga! – ele gritou furioso, fazendo Heitor recuar assustado, jamais havia visto o irmão tão nervoso em sua vida, era como se tivesse visto uma alma penada ou coisa parecida, aquilo o fez se assustar um pouco e mesmo contra a vontade, o rapaz entrou no veiculo e pos o cinto, habito pouco cultivado por ele.

Assim que viu que estava tudo certo, Samuel arrancou com o veiculo a toda velocidade da beira da estrada, indo o mais rápido que podia, queria criar a maior distancia possível da velha e de tudo aquilo, Heitor se agarrou ao painel de instrumentos apavorado e gritou.

- Ta louco diminui isso!

- Você vai me agradecer depois! – ele respondeu sem tirar os olhos da estrada – ela esta logo atrás de nós, vai nos alcançar e então você e eu vamos nos dar muito mal!

- Mas do que diabos se ta falando cara!

Samuel se virou para fita-lo, sua expressão estava injetada de um nervosismo e medo que Heitor jamais havia visto, por alguns segundos o carona achou que nunca em sua vida inteira de convivência, sequer imaginara que ele pude-se chegar a um nível de insanidade no olhar tão grande, o rapaz recuou e se encostou no banco assustado, Samuel então disse.

- Eu salvei você, mas fiz algo que não devia e agora ela quer me pegar e me fazer pagar, mas eu não vou fazer isso!

- Ela? – o outro perguntou.

- È uma longa... – Samuel ia disser algo quando se virou para olhar o caminho e então seus olhos se esbugalharam, ficando quase do tamanho de bolas de bilhar, sua boca se abriu num esgar de terror e ele largou o volante assustado apontando para frente.

- È ela, é ela! – ele berrou apontando para um ponto da estrada bem logo à frente.

Heitor olhou para o local, mas não viu nada, no entanto nos olhos do irmão lá estava à velha senhora, parada entre eles e a continuação, os braços abertos em cruz e uma expressão seria e compenetrada, parecia querer brecar o carro com seu frágil corpo.

- Olha a direção! – Heitor gritou.

- Ah! – foi a resposta de Samuel que agarrou e deu uma súbita guinada para o lado furiosamente, o carro virou com tudo para a esquerda fazendo um som de cantar de pneus que pareceu entrar na mente dos dois rapazes, num instante a imensidão do caminho a frente sumiu, dando lugar a um grupo de arvores cada vez mais próximas e mortais.

- Cuidado!

Foi a ultima coisa que Samuel escutou Heitor gritar antes que o choque o fizesse voar para frente, sua cabeça bateu violentamente contra o pára-brisa, ele sentiu o sangue quente escorrer-lhe pela testa e então perdeu os sentidos.

“2 anos antes”.

“Samuel estava parado a beira da estrada de joelhos, o carro em chamas já estava menos ardente do que antes, o fogo não parecia mais encontrar combustível para sua fúria e ia diminuindo aos poucos, mas ainda sim, suas chamas tinham força o bastante para manter as coisas claras em volta um pouco, o corpo de Heitor estava ao lado dele, quase sem vida, a respiração terminando de sumir, em minutos estaria morto, não haveria resgate a tempo”.

“Em frente de Samuel, de pé de braços abertos estava à velha senhora, seus olhos varreram a cena da tragédia novamente e ela disse”.

“- Você já sabe quais são as regras do nosso acordo, quando você for passar novamente por aqui, terá que me pagar o que me deve, nem pense em me passar a perna ou então eu vou retirar o que vou lhe dar agora!”

“- Sim senhora! – foi a resposta chorosa do rapaz – eu lhe pagarei, com juros ate, mas por favor salve meu irmão!”

“- Assim seja! – foi a resposta”

“Então um som de sirenes alto irrompeu na noite, ele se virou para o local de onde ouvia e viu surpreso que o resgate inteiro se aproximava a toda velocidade deles.”

“Ela havia feito exatamente como prometera, eles haviam feito um acordo de pagamento e em troca ela salvaria seu irmão, havia trazido o resgate em segundos para lá, Samuel se virou para agradecer, mas não havia mais ninguém ali.”

Época atual.

Assim que recuperou os sentidos, Samuel saiu se arrastando do veiculo pela janela do motorista, sentia algo doer terrivelmente em seu flanco direito, e sua respiração teimava em chiar e arder na garganta, ele rastejou enfraquecido ate a beira da estrada pensando em pedir socorro, o irmão estava somente desmaiado no assento do carona, pelo menos assim ele esperava.

Suas mãos arranhavam a terra procurando apoio para puxar o corpo quando de repente bateu em um pé humano, ele ergueu o rosto surpreso, mesmo que no fundo já suspeita-se de quem era,

- Satisfeito com suas ações? – a velha perguntou.

- Sua bruxa...maldita! – ele disse arfando.

- Espero que esteja pronto para me pagar agora! – ela respondeu ignorando o insulto.

- E se eu não pagar?

- Então seu irmão morre nessa estrada agora junto com você! – foi a resposta, por alguns segundo Samuel gelou achando que ela os mataria, mas então ela completou – o resgate jamais chegara aqui e vocês sangraram ate morrer!

- Não! – ele sussurrou – meu irmão não tem culpa de nada, eu, eu pago você!

- Muito bem! – ela respondeu num tom satisfeito – levanta-se.

Então para Samuel foi como se seus ferimentos tivessem sido regenerados subitamente, o rapaz se ergueu e olhou em volta, a velha então foi caminhando em direção a floresta, ele se virou relutante com tudo aquilo, mas no fundo sabia que não havia mais jeito, tinham um acordo e ele tinha que paga-la, então Samuel começou a caminhar lentamente logo atrás dela, os dois se embrenharam na mata através das arvores fechadas e a ultima coisa que ele viu e ouviu da estrada, foi uma luz vermelha e o som de sirenes, pelo menos seu irmão escaparia e ao pensar naquilo apesar de seu destino ele pode sorrir.

Uma casinha pequena escondida entre as arvores, ninguém jamais havia ido ate aquele ponto e era provável que jamais iriam, era uma construção pequena e aparentemente confortável, com uma pequenina varanda onde uma senhora olhava para as arvores sentada em uma cadeira de balanço.

- E tão bom relaxar um pouco não é querido?

Ela disse isso calmamente enquanto ia para frente e para trás, passando gentilmente as mãos sobre um gato preto que descansava em seu colo.

Lucas Oliveira
Enviado por Lucas Oliveira em 15/08/2008
Código do texto: T1129699
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