Vento
Acho que era quatro da madrugada quando acordei com um barulho. Sabe quando a gente dorme bem e acorda sem saber onde está? Mas pelo susto me localizei logo: dormia no sofá da sala. Mais um barulho e mais um susto... Parecia alguém forçando a porta da sala
Na escuridão, com aquele barulho perto de mim, fiquei imóvel e abri os ouvidos. Se fosse alguém os cachorros do vizinho latiriam, se fosse algum lobisomem, uivariam juntos, aqueles bichos endemoninhados, então tentei voltar a dormir. Não consegui...
No inverno passado fiquei internado no hospital por conta de uma pneumonia. Ventava muito dentro de casa por causa das frestas nas portas e janelas e, depois da alta, fui para a casa da minha mãe e mandei reformar a minha. Dei ordem de não deixar fresta nenhuma por onde passasse vento.
Lá fora o vento assobiou e, sem aviso, balançou a porta com mais força. Mais um susto. Lembrei de uma história que meu pai contou que aconteceu quando ele era criança, na fazendo do meu avô.
No meio da noite começou a ventar forte. Dava impressão que a casa ia cair. Meu avô quis sair para ver os estragos, ansioso que era, e minha avó, prudente que era, já que ainda ventava, segurou a fera.
Minhas tias, que eram quatro, puseram-se a rezar com medo, sentindo alguma coisa ruim, e meu tio e meu pai puseram-se a tirar sarro delas; era a oração deles porque também sentiam alguma coisa ruim.
Como as vacas pararam de mugir, os cavalos não relinchavam, os cachorros não latiam, as galinhas não se alvoroçavam as o milharal farfalhava estranho por demais, minha avó aglomerou toda a família em seu quarto e fez todos rezarem. Fazia um barulho de vassoura varrendo lá fora. Foi tudo bem rápido.
O dia já amanhecia quando o vento foi embora do jeito que chegou: sem avisar. Os passarinhos não cantaram e os galos não deram sinal de vida, havia um cheiro estranho no ar, um cheiro de folha, terra e madeira seca, um cheiro de coisa morta.
Meu avô mandou todos ficarem onde estavam, pegou a espingarda e saiu, e meu pai, serelepe que era, foi atrás. Ele tinha talvez oito ou nove anos e já entendia das coisas que os adultos tentavam esconder; cada coisa ele devia saber sem ninguém saber!
A porta rangeu ao abrir e pai e filho viram o cenário horripilante que restou. Tudo que tinha vida, não tinha mais. Era como se aquele vento tivesse levado toda a água das árvores, das plantações, do gado, dos porcos, dos cães, dos cavalos, do chão, do ar, de tudo. Os únicos corpos que ainda tinham água e vida eram os daquelas oito pessoas que ficaram dentro de casa rezando.
Havia muitos passarinhos espalhados pelo chão. Meu pai pegou um e o bico do bichinho caiu; sentiu alguma coisa se mexer dentro e soltou o bicho no chão e andando para trás, esfregando as mãos na calça do pijama tentando limpar o nojo que sentia. Os órgãos do passarinho estavam como pedregulho dentro da pequena carcaça seca e os olhos abaulados para dentro. O mesmo devia acontecer com os outros bichos.
Um ovo de galinha quebrado mostrava a gema como uma pedra marrom enrugada, os olhos do gado pareciam cascas de jabuticaba chupada penduradas por um ramo seco de trepadeira, onde era a lagoa dos patos sobrou só terra dura e rachada, com os patos murchos, de penas soltas e os bicos desgrudados das caras, perto da boca dos cachorros os dentes estavam jogados e com os nossos passos a poeira fina de terra seca subia.
As folhas das árvores secas estalavam por toda parte, os cocôs dos bichos viraram pó e o cheiro de coisa morta de anteontem dava náuseas. O poço desbarrancou e dele saiu uma nuvem de terra fina. A única água que sobrou era a que estava dentro de casa e nos corpos dos sobreviventes.
Os cascos dos cavalos, do gado e dos porcos, desgrudaram das patas como brinquedos de montar, os chifres dos bois estavam jogados perto das cabeças, o couro rasgado deixada aparecer os ossos e a carne ressequida, o ar fazia secar as narinas por dentro, a boca principiava a ficar seca e o milharal tombado para uma direção só estalava.
Um eucalipto partido lá de longe, naquela hora, caiu aos pés do pai e do filho como um gigante morto. Olharam para o horizonte e a aurora aparecia sem dar conta de nada, o céu estava azul, o dia seria bonito, não fosse...
O vento parou, a cidade deve acordar a qualquer momento e o ruído crescer rápido lá fora, como uma onda que chega na praia. Que horas são? Cinco e quarenta?
Os passarinhos já deviam estar cantando... Será que.... Não! Claro que não! O que o meu pai contou não era verdade! Mas... e se for?
Vou abrir a porta. Melhor ligar a televisão para ver as notícias. Que besteira! Vou abrir a porta; qual o problema? Afinal, vivo com os pés no chão.
Vamos lá, vamos destrancar a porta... devagar... girar a maçaneta e... muita calma nessa hora... vamos ver o que... credo, que cheiro ruim... vamos olhar pra fora devagar... que cheiro horrível...