As gêmeas


Antigos aristocratas da região do Sul Fluminense, os Martin preservavam  as tradições. O casal idoso e os dois filhos solteiros  viviam praticamente reclusos na fazenda principal. Cuidando das atividades e investindo em gado, vez por outra viajavam para participar de leilões em todo o mundo.
Quando o filho caçula,  aos cinqüenta e seis anos anunciou o casamento,  todos ficaram felizes. A noiva veio da Hungria, eram primos distantes. As bodas reuniram parentes de toda a Europa.
Pouco tempo depois, descobriram que seriam pais. A felicidade estava completa. Passavam as tardes montando  o quarto do bebê. Os móveis pesados contrastavam com a decoração infantil, colorida e alegre. Tudo muito suave e de bom gosto.
A primeira menina nasceu forte e corada.  Logo em seguida, pesando menos da metade, a segunda criança veio ao mundo. Exibiam a penugem vermelha típica da família. 
Beatriz, a mãezinha, escolheu com carinho o nome das filhas. Anya,  que significa anjo e Marie, o nome da mãe do Redentor.
Nos berços duplos,  ambas usavam touca e camisolas do enxoval das crianças da família, preservado por décadas em perfeito estado. O cheirinho de alfazema e camomila adocicava o ar. 
Beatriz  dispensava atenção especial à pequenina Marie. Desde o início havia percebido que se amamentasse Anya primeiro, nada sobrava para a outra filha. Enquanto Marie era calma e tranqüila, a irmã chorava o tempo inteiro com cólicas e febres.

Rodolfo entrou com cuidado, não queria acordar as filhas, estava encantado. Aproximou-se devagar da poltrona onde a esposa embalava Anya. Ela parecia estar cochilando com bebê preso ao seio.
Quando beijou a face fria de Beatriz, o homem entrou em pânico. Gritou por ajuda e os parentes e empregados tentaram animar a mulher. 
O médico foi chamado tarde demais, ela havia partido. Rodolfo entrou em desespero, trancado no escritório da fazenda, chorou dias seguidos. Inconformado com a viuvez após tantos anos de solidão. 
O tiro ecoou na madrugada, uma semana após o enterro da mulher.
    A casa tornou-se pesada. Babás e governantas se revezavam nos cuidados com as meninas. Não fossem os lugares vazios  na grande mesa de refeições, era como se o casal nunca houvesse existido. A família católica, profundamente envergonhada, tentava esquecer a tragédia.
    O tempo passou. Aos oito anos, as gêmeas davam vida ao velho sobrado. Eram meninas levadas e curiosas. Subiam em árvores e nadavam no açude nos dias quentes.
 
     Anya comandava todas as brincadeiras, era mais alta e não gostava de ser contrariada. Batia na irmã e não admitia queixas: - Olhe boba, hoje vamos ao velho cemitério, brincar de alma penada. Quando todos estiverem dormindo, pulamos a janela.
 
A menininha começou a chorar, não queria de maneira alguma participar da brincadeira: - Anya  tenho medo, é um lugar ruim.

- Só espíritos dos  escravos. Não podem fazer nada contra nós. Marie, obedeça,  ou... sabe o que te espera- O rosto de boneca agora estava retorcido de raiva:- Está bem, eu vou com você, não me machuque, eu vou.
Marie correu para casa, chorava apavorada com as ameaças. Viu o velho balanço e sentou-se procurando recuperar o fôlego .  Desde o nascimento era vítima da irmã. Sentia falta da mãe. Anya repetia uma versão horrível: Dizia que a mãe morreu por culpa de Marie, que demorou muito a nascer. O pai havia dado um tiro na cabeça porque não suportou olhar a filha assassina.
Era uma menina triste e calada.  As artes da irmã eram creditadas à Marie.
Ser acusada dos maiores absurdos surpreendia a menina. Não conseguia entender como os familiares acreditavam em todas as mentiras da irmã.
Os animais da fazenda evitavam a outra gêmea, pressentiam o perigo e fugiam das mãos ávidas. 
Certa vez, por diversão, Anya afogou todos os gatinhos no balde da cozinha.  A pobre gata, desesperada, era afastada com chutes.
 
Pintinhos serviam de experimentos cirúrgicos. Cortava um dos pés ou tinham as asas e bicos partidos. 
Queria de toda forma,  testar os limites de sobrevivência. 
Saber quanto tempo suportavam sem alimento, qual a resistência à dor, gostava de pesquisar sobre a morte.
Os empregados presenciavam as maldades e não ousavam contar à patroa. Tinham pavor da figura de cabelos vermelhos. A  fama de má conferia à menina tremendo poder.  
     
Anya manipulava da cozinheira ao professor que as instruía.
Certa vez sugeriu ao apavorado mestre, se não cancelasse as provas, contaria ao avô que era assediada durante as aulas.
 Quando ia à cozinha lanchar, brincava com o medalhão exibindo  as fotos dos pais: 

- Sabe que minha mãe descende de bruxas? Casamento entre primos,  deixaram meu sangue ainda mais forte. Só o meu, porque fui a primeira. Marie é fraca demais.

As criadas saíam apressadas procurando alguma coisa para limpar. A  menina ria deliciada com os olhares medrosos.
Aprendeu a ler sozinha com quatro anos e a biblioteca passou a ser sua segunda obsessão. A primeira,  era perseguir a irmã.  

Inteligente, escolhia livros antigos e quase aos pedaços. Raros exemplares  de histórias macabras e sobrenaturais. Passava horas repetindo textos e fazendo anotações. Quando completou seis anos, falava francês e latim para orgulho da família.





Naquela noite, o vento estava gelado. Poucas estrelas e o ar pesado das horas mortas. As gêmeas desceram pela varanda escura, atravessaram os jardins e tomaram a estradinha de terra até a porteira. 

 Apesar da recomendação de silêncio absoluto, Marie estava curiosa com a sacola que a irmã carregava:-  O que você tem aí? 

- Andou assaltando a despensa? –  O olhar de desdém foi a resposta.
 
Mais adiante, viram uma cobra engolindo um novilho, Marie fechou os olhos, Anya ficou fascinada com a cena:  -  Olhe irmãzinha, a cobra não oferece o menor perigo, poderia até mesmo furar os olhos dela. Calma, estou brincando. Como você é boba.
Algum tempo depois, chegaram ao terreno cercado de ruínas. Cruzes pendiam toscas, dos montinhos cobertos por pedras escuras. Mato alto e ervas daninhas.  
Um lugar arrepiante e sujo :-  Já entramos Anya, o que está aprontando?-  Apertando o casaco contra o corpo, Marie tremia de medo e frio.
      A menina de cabelos de fogo dispôs vários apetrechos na terra úmida. Com o facão da cozinha traçou na terra,  o pentagrama invertido. Acendeu as velas roubadas do candelabro da avó, iluminando o grande círculo.
Começou a entoar uma ladainha em língua estranha, brandia os braços aos céus e chamava um nome várias vezes. O transe levou um tempo interminável. 

Finalmente Marie entendeu que ela invocava Beatriz, a mãe que tanto prezava, quis chamar a irmã à razão: - Pare com isso Anya, respeite nossa mãezinha. Isto não é justo, deixe a mamãe em paz.

 Vultos começaram a surgir de todas as direções, figuras negras, velhos escravos, alguns exibiam o corpo decomposto, outros ainda conservavam a antiga aparência. 
Todos estavam muito machucados, gemiam, arrastando pesadas correntes nos tornozelos:-  Ela está ouvindo o chamado. O portal foi quebrado.
Entre os fantasmas, um homem com uma ferida horrível na cabeça despertou  a atenção. Usava terno, era muito alto e claro. Caminhou  com dificuldades até Marie:

- Fuja minha pequena, saia já deste lugar. Sua irmã despertou espíritos muito ruins. São perigosos. Vá depressa até a capela e fique escondida até o amanhecer.
- Quem é você? Por que está me ajudando?- O coração da menininha pressentia a resposta.
Ele apertou o ferimento na cabeça:-  Sou seu pai, me perdoe. Não tive forças e cometi o maior dos pecados. Fui enterrado aqui, sem missa, nem o perdão da família.Por favor pequenina, vá depressa.
Anya  em transe, enxergava a figura da mãe nas criaturas pavorosas que a cercavam. Exultava, entoando canções desconhecidas, agradecendo seres abissais e  falando sem parar. Marie avistou a capela. Não houve tempo. Foi pega de surpresa.
Enterrando o facão no peito da irmã, Anya , gritou mais uma vez  as palavras rituais
 Desferiu vários golpes, uma fúria incalculável aumentava a força da criança:
- O sacrifico foi realizado, o sangue puro saciou a sede da terra. Exijo a presença de Beatriz! Cumpri o pacto, que ela retorne agora! - O vento soprou violento, arrastando folhas no rodamoinho irreal, um uivo longo e ameaçador quebrou o silêncio da madrugada.
A mulher vestia uma túnica negra sobre o vestido púrpura. Possuía uma brancura espectral. 
Os cabelos vermelhos caíam como sangue coagulado, em longos filetes ao longo das costas. Não parecia a Beatriz do retrato, os olhos eram poças negras:

- Como ousa, com que direito evoca minha presença? Monstro, desde o ventre odiou a pobre inocente. Ela era sua redenção. Você sugou minhas energias até a morte, pequena vampira de almas.Não tenho nada a te oferecer.
-  Não mamãe, foi Marie, ela demorou a nascer e você ficou fraca. Ela dava trabalho,  mamãe.


A mulher não respondeu, estava ajoelhada segurando a menina destroçada nos braços, embalando o corpinho como se ela ainda fosse uma criancinha de colo: 

 -  Anya, nunca mais nos veremos, graças à sua última maldade, a roda está quebrada. Estamos livres do compromisso de te ajudar a encontrar o caminho. Vim buscar minha única filha, seguiremos juntas,  para sempre...
- Eu quero o poder do nosso clã, sou a última e devo receber a herança da família.
- Mas que pena! Os livros não ensinaram que a magia tem duas forças? Eu nunca cultuei as trevas. E você não é a última. 

-  Mentirosa, não existem parentes vivas.

-  Anya, preciso confessar um grande segrêdo. Brigith, minha irmã gêmea em estado vegetativo, desde o nascimento. Por sete minutos de diferença é a mais antiga e a verdadeira guardiã.

-  Maldita bruxa, deixou Budapeste e veio parar neste fim de mundo. Renegou as tradições e nega os meus direitos de primogênita. Como te odeio!

-  As gerações perdidas nunca me interessaram. Tudo foi em vão, a eternidade será sua companheira. Nossos laços terminaram. Adeus, Anya.

 O dia já ia alto, quando os empregados da fazenda encontraram as meninas. Uma das gêmeas estava parada no alto do morro, em frente à capela. Rindo e conversando com o invisível. Alheia aos gritos da avó, diante do corpinho de Marie  sobre a sepultura do pai enjeitado.

 A gêmea má  foi internada na melhor clínica psiquiátrica da capital. Nunca recebeu visitas, nem recuperou a razão. Passou a adolescência  assombrada por fantasmas e monstros.

Alternava momentos tranqüilos, fases em que dizia chamar-se Marie e ter oito anos de idade. Infelizmente a metade Anya , sempre retornava. Vinha como uma nuvem pesada e caía sobre o hospital trazendo desconforto. 

Os doentes gritavam sem parar, as plantas mais viçosas secavam e todos os animais pariam aberrações. Era como se as comportas do inferno se abrissem e nada desse certo.  Sentada no banco preferido, no grande pátio central, ela cantava canções em húngaro e conversava com o amigo imaginário:

-  Rodolfo, você é o único que me ama de verdade. Prometa que nunca irá embora. 

A mulher de cabelo vermelho, vem todas as noites, não deixe ela me levar.- O fantasma do pai assentia e acalmava a menina. 
Não havia tempo no mundo que partilhavam. Apenas dor e tristeza.
 
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 11/08/2008
Reeditado em 04/09/2009
Código do texto: T1122956
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.