Candeio
Deveria ter dado crédito aos rumores graves que ouvi dos pescadores, mas quando vi a luz que saía do combro acreditei que não passasse de uma brincadeira de mau gosto, embora o candeio parecesse ter surgido de dentro da duna do mesmo modo que me fora descrito, me seguisse por um largo trecho da caminhada como ouvira que aconteceria, e também se afastasse de mim quando caminhei de encontro a ela.
A luz tênue que parecia bruxulear em um archote mantinha de mim sempre a mesma distância; era um fogo brando e oscilante que parecia manter-se no nada, não havendo que o segurasse, mas só senti o arrepio percorrer meu corpo quando voltei e não encontrei outra pegada que não fosse a minha, tendo retornado até onde havia visto a luz, e não quis acreditar que a distância percorrida nessa volta já tivesse sido suficiente para apagar as pegadas deixadas pelo corpo que sustentasse a chama, já que tais rastros não existiam, mas quando o arrepio varreu o meu corpo até os meus cabelos eu tinha a completa certeza de que tinha visto a luz vagar pelo ponto onde estava, e que tinha me seguido até muito mais além.
Apertei meu passo com naturalidade, pois naquele momento apertava todo o meu corpo, e me afastei novamente do estranho combro cuja feição eu conseguia avistar novamente, e foi voltando o pescoço para trás que eu tive a intuição de que aquela luz fantasmagórica que se sustinha no nada e que voltava a me seguir queria me dizer algo; foi quando discerni muito claramente que um dedo de fogo me acenava simbolizando um não, que eu interpretei assustado como uma indicação de que eu não mais deveria prosseguir, e creio que eu talvez tivesse voltado dali em obediência ao sinal que eu adivinhava na chama, não fosse a própria luz aterrorizante a me obstar o caminho me empurrando mais e mais para o sul.
Meus passos muito largos não foram suficientes para aumentar minha distância da chama, mesmo assim vi com meu pescoço voltado para trás quando ela estacou e permaneceu apenas sinalizando aquele não que parecia feito por um dedo de fogo oscilando de um lado para outro enquanto apontava o céu, e também vi quando o facho retornou na mesma direção por onde tinha vindo, do modo exato que me havia sido descrito. Mas quando a chama desapareceu e meus cabelos já se acomodavam ao corpo do modo usual, sem que se descolassem como se quisessem desgrudar de mim, meus pensamentos se reorganizaram e eu quis voltar a acreditar que aquilo não passasse de uma brincadeira, e quis também afastar a estranha lembrança das pegadas inexistentes, e foi assim que meus passos voltaram ao normal e que eu tornei a sentir o vento soprando em meu corpo de forma leve e agradável na noite quente e de uma lua mórbida quase em aro.
Muitos minutos já haviam passado até que eu deixasse de voltar o pescoço para trás quase a cada passo, e tudo parecia ter tornado à normalidade quando uma coruja, ou qualquer outra ave que não pude distinguir, deu um grito estridente e bizarro que me fez pular sobressaltado e com o coração quase gritando em ritmo muitíssimo veloz que me atiçou os brios me indicando o quanto eu estava atemorizado, coisa inadmissível para mim, e embora o silvo da ave se assemelhasse a um “não” apavorado e selvagem que me implorasse a retornar, não tinha outra opção que não fosse prosseguir, já que havia desafiado e insultado todos os que previamente haviam se acovardado, se recusando a transpassar o combro na caminhada noturna para resgatar a canoa abandonada nas areias da praia vastíssima.
Enquanto impelia a canoa para o mar o desassossego voltou na forma de uns sussurros sempre às minhas costas, que se confundiam com o barulho das ondas suaves na areia, e embora eu tivesse voltado a minha vista para trás algumas vezes, não vislumbrei nada que não fosse areia, e não me permiti dar ouvidos àquelas vozes sussurrantes que me recomendavam não ir para o mar, pois aquilo era o que devia ser feito.
Empurrei a canoa para a água gélida que sempre banha a região em noites como aquela e senti um estranho prazer enquanto mergulhava, pois o frio intenso me avivou fortemente, gerando em mim uma enorme sensação de potência, afugentando todo o receio causado pelos sucessivos augúrios, e quando comecei a remar me senti invadido por um vigor exuberante que permitiu que meus braços impulsionassem os remos com uma força extrema que eu mesmo não sabia possuir; e assim remei naquela noite, com remadas fortes compassadas e seguras, e me sentia incansável quando ouvi os gritos, pedidos de socorro trazidos pelo vento; os gritos distantes e indistinguíveis que pareciam vir do leste, para onde eu me dirigi. E então os gritos se tornaram claramente audíveis, e eram gritos de desespero.
Não recordo em que momento reconheci a ilha que eu via no horizonte, mas foi quando me vieram à mente as antigas histórias, as lendas inverossímeis, os relatos mórbidos, que sempre me evocaram descrença e desconfiança, das invencionices fantasmagóricas de vozes de náufragos que permaneciam eternamente a implorar por socorro. Sobressaltado e confuso eu parei de remar, mas percebi atônito e impotente que os sons de cada grito desesperado pareciam puxar a canoa na direção de onde vinham, e que a intensidade da corrente que impelia o barco correspondia à dos gritos. Creio que uma espécie de desespero me invadiu naquele momento e tentei em vão manobrar a canoa e remar na direção oposta, mas os gritos insanos se tornaram mais fortes e constantes e eu não podia mais negar que fossem os apelos desesperados de náufragos invisíveis, e ainda que eu remasse com todas as minhas forças na direção contrária, a canoa era sugada inexoravelmente rumo ao desespero. Remei até a beira da exaustão, com o coração batendo forte até em meu pescoço, e apesar do cansaço enorme que já me tornava lento, minhas forças se redobraram quando uma neblina se adensou em torno da canoa naquela noite quente, e os gritos se tornaram brados de terror quase ao meu lado. E foi quase ao mesmo tempo que surgiram das águas todos aqueles braços descamados que se agitavam e se agarraram à canoa em desespero e aos borbotões e que se aglomeravam uns sobre os outros e eu nem tive tempo de discernir nenhum dos rostos desesperados que brotavam das águas aos berros quando a canoa virou, e de tudo isso eu me lembro.
E também me lembro que a água era muito fria.
A água era muito fria.
E depois disso só recordo a sensação de desespero que me invadiu, a tentativa de me manter sobre as águas lutando para respirar em meio ao amontoado de desesperados, mas tudo se foi restando apenas o desespero. O desespero e as águas geladas.
Depois veio o sol e também veio a noite, e depois ainda vieram muitos dias e outras tantas noites que eu não sei nem quantas foram, mas o desespero ficou; o desespero e as águas geladas, sempre.
Em meio ao desespero que me acomete não consigo entender como permaneço aqui há já muito mais tempo do que poderia suportar e a exasperação extrema me impede de pensar claramente sobre qualquer coisa a ponto de eu não conseguir mexer nenhum músculo, que é sobre tudo o que mais me aflige; a impossibilidade total de me mover e de nem ao menos movimentar a mais ínfima parte do corpo embora eu me agite internamente de uma maneira quase alucinada tentando mover os braços e as pernas e todo o corpo e eu só consigo gritar e gritar nessa imobilidade completa que me deixa paralisado em meio às águas geladas; em meio a essas águas sempre geladas onde eu grito desesperadamente e me agito e grito mais e mais, embora tenha havido um momento muito breve em que eu pressenti a chegada de uma canoa e que ouvi muitos outros berros que me levaram a gritar ainda mais até que levado pelo total desespero, com todas as minhas forças, e por um instante brevíssimo, tive a sensação de que meus movimentos voltavam e então alcancei a canoa desesperado e aos brados, mas tive também o vislumbre de que ao mesmo tempo outros faziam o mesmo, virando a canoa logo em seguida para me compelir à completa imobilidade novamente, mas essa lembrança vaga e repetida que é meu único alento, me vem apenas como um sonho nebuloso e distante, de modo que só me restam o desespero e as águas geladas do mar.