2000 - Lembranças

Lembranças

Saturno avança pela rua, a fúria queimando sua mente.

Nas mãos carrega a escopeta e na cintura o punhal ainda manchado de sangue. Não gostava de usar armas de fogo, pois as considerava muito barulhentas, mas não tinha escolha. Eles eram muitos.

Um rapaz atirou com um 38, acertando o vampiro no peito.

Saturno cambaleou e mirou com a escopeta; a cabeça estourou como um melão.

O vento jogava com seus cabelos e suas roupas de um lado a outro.

Lembrou-se nesse momento de algo que havia acontecido a pelo menos dois séculos:

No começo do ano de 1800, caminhava pelas florestas em grande parte ainda virgens carregando seu punhal, quando sentiu cheiro de fumaça ao longe.

Apurou a vista na escuridão e enxergou chamas altas a quilômetros de distância.

Caminhou rápido naquela direção e em um quarto de hora chegou a uma aldeia completamente devastada.

Corpos de índios, alguns carbonizados impregnaram os sentidos de Saturno.

Topou com um branco, agonizante, mas vivo ainda.

- O quê aconteceu aqui? – quis saber o vampiro índio.

O português o confundiu com um dos seus e respondeu:

- A índiaiada se revoltou! Mas nós mostramos pra eles quem manda! – riu o branco.

Ele engasgou e começou a cuspir sangue.

Saturno olhou em volta. Homens mulheres e crianças assassinadas sem piedade alguma.

Em todo canto requintes de crueldade.

Mulheres amontoadas, que haviam sido estupradas antes de serem morta a golpes de facão.

O pajé teve a pele arrancada e pela quantidade de sangue o vampiro índio acreditou que ele estava vivo ainda.

O vampiro recolheu um arco e todas as flechas que encontrou. Assim como várias lanças.

Achou uma arma dos brancos e carregou-a consigo, mesmo sem saber usa-la.

Pelas pegadas estavam a uma noite de distância.

Saturno iria vingar seu sangue.

O índio caminhou a noite inteira, seguindo os rastros dos brancos tal e qual uma sombra incansável.

Próximo ao raiar do dia, cavou na terra macia, escondeu as armas nos arbustos e se enterrou passando o dia inteiro sob o chão.

Ouvia dentro de sua mente o grito dos mortos clamando por justiça.

Ao cair da tarde, saiu de seu túmulo.

Quando alcançou o grupo de assassinos, já era madrugada.

Um pequeno exército de cem homens. Bandeirantes, procurando um veio de ouro nas divisas de São Paulo.

Um vigia cochilava de pé, quando teve o pescoço atravessado por uma flecha.

Caiu por terra sufocando em seu próprio sangue.

Outro dos vigias, este mais atento deu o alarme de intruso.

Logo em seguida sua cabeça rolou, cortada pelo punhal de Saturno.

Os homens começaram a se levantar, armando-se às pressas.

O vampiro cobrou explicações do massacre na aldeia.

No escuro ninguém lhe enxergava e ele mudava constantemente de lugar parecendo estar em toda parte.

O capitão dos bandeirantes gritou com arrogância entremeando o português com o tupi-guarani:

- E quem se importa? Eram apenas índios sujos!

Os homens riram confiantes em sua vantagem numérica.

Saturno apareceu à sua vista, o que causou um novo acesso de risos.

Ele segurava a arma ao contrário!

Disparou ferindo-se e levantando nova onda de risos.

Jogou longe a arma e estendeu o arco atravessando um branco com sua flecha.

Eles prepararam as carabinas, enquanto isso Saturno derrubou mais dois.

Trinta e nove homens dispararam suas armas contra o vampiro.

Ele se contorceu e caiu ajoelhado, para em seguida levantar como se não sentisse nada.

Os furos das balas apareciam claramente contra a luz da lua.

Começou a caminhar contidamente, em direção aos inimigos.

Os escravos começaram a correr gritando em ioruba:

- É um demônio!

O vampiro índio os deixou ir, pois sabia que os negros eram inocentes.

Um a um matou todos os brancos.

Apenas cinco escaparam, pois o dia estava próximo.

Foi com relutância que Saturno os deixou, mas se comprometeu a caçá-los logo que a noite se aproximasse.

Matou dois com suas flechadas, descobriu que um havia sido atacado por feras e outro pereceu afogado.

Deixou o chefe dos bandeirantes por último, e após cinco noites atormentando-o finalmente o atacou.

Estava fraco, abatido e alucinado, porém, implorou pela piedade que não tinha com os outros.

Saturno o arrastou pela barba, até achar um formigueiro em especial.

Ali existiam formigas carnívoras. Pendurou-o de ponta cabeça com cipós, e em alguns minutos arrancou toda a sua pele.

O homem urrava coberto de sangue. Saturno voltou na noite seguinte, e observou com satisfação que as formigas cobriam o corpo.

Em alguns dias o bandeirante foi devorado vivo pelos insetos.

Ao cabo de três dias só restavam os ossos.

O vampiro sorriu de satisfação.

Essas lembranças escorreram em segundos e logo ele voltou a se concentrar no presente.

Horas antes não esperava meter-se em tamanha confusão.

Ângela tinha ligado, pedindo que a encontrasse no centro velho de São Paulo.

Mas ele precisava antes ir ao Itaim Paulista buscar certas informações sobre ladrões de banco.

Entrou nas profundezas de uma favela, onde indivíduos o olhavam com desprezo.

Pegou todas as informações que precisava, e também, o sangue do informante.

Quando estava indo embora se surpreendeu com uma explosão.

Homens armados trocavam tiros na favela e diversos inocentes caíam mortos.

Saturno desarmou dois, deixando um apenas desacordado.

O fogo começou a se alastrar, e andando entre os mortos e feridos, estava o vampiro.

Seu ódio era enorme, aos seus pés o corpo de uma criança.

Seu pequenino corpo cravejado de balas.

Carregou o bandido desacordado até uma ponte, abaixo passava a linha do trem.

O Homem despertou, e após ter alguns dedos quebrados disse quem eram e o porquê dos assassinatos.

Tráfico de drogas.

Saturno esperou quarenta minutos pelo trem.

Atirou o bandido para baixo e viu quando foi transformado em uma pasta rodopiante de sangue.

Sabia o que tinha de fazer.

Foi até uma fabrica abandonada, onde estava a quadrilha.

Apesar de a rua estar na mais completa escuridão, Saturno enxergou dois homens claramente.

Esgueiravam-se pelos cantos tentando pega-lo de surpresa.

Deu um certeiro tiro de escopeta e a arma saltou da mão do bandido atingido.

O vampiro rolou pelo chão, examinando a arma que acabara de pegar.

- “Submetralhadora Uzi! Beleza!” - pensou o índio.

Com aquilo acabaria com a gangue.

Pulou o muro de quatro metros, caindo em meio aos ladrões. Abriu fogo contra seus espantados antagonistas.

- Dá-lhe Chuck Norris! – riu o vampiro.

Matou todos que encontrava pela frente.

Encontrou uma caixa cheia de munições de onde tirou algumas granadas.

Após quinze minutos de matança encontrou o líder.

Era um homem que não devia ter mais de trinta anos.

Atirou em Saturno, que avançou inexoravelmente arrancando a arma de suas mãos.

- Não me mata! Eu te pago quanto quiser!- gritou o líder.

O vampiro o encarou sombriamente. E exigiu uma explicação como o fizera tantos séculos antes.

- Mas era só um bando de pobres! - justificou-se o traficante.

Os olhos do vampiro índio tornaram-se vermelhos como o sangue.

Por um instante pensou ter visto o bandeirante na sua frente.

Só tinha uma coisa a fazer.

Arrancou a roupa do chefão do trafico, fazendo uma corda com ela.

Pendurou-o pelos pés e como tanto tempo antes, arrancou toda a pelo do traficante.

Ele gritou como um endemoniado.

Saturno lamentou não haver formigas carnívoras na cidade grande.

Ficou apreciando por alguns minutos o sangue que caía.

- Você tem uma opção... – disse o vampiro.

Vendo que o rosto do homem era uma máscara de dor voltou a repetir:

- Você tem uma opção.

- Uma morte rápida ou demorada... – sugeriu Saturno.

Pôs nas mãos do traficante uma granada, e ele entendeu a mensagem.

O vampiro índio saltou a janela despedaçando-a.

Correu para longe através dos tiros que espocavam ao seu redor e atravessavam sua carne.

Pouquíssimo tempo depois ouviu uma primeira explosão.

Logo em seguida caiu derrubado por uma mais forte: os tonéis de produtos químicos explodiram lançando a antiga fábrica pelos ares.

Pegou seu celular e ligou para Ângela.

Fez sinal para um táxi que só parou ao ver o maço de notas.

Avisou que queria ser levado até o centro.

Saturno avisou para sua garota que se atrasaria.

- Está tudo bem? - perguntou ela.

- Ô! Você não imagina como! - sorriu o vampiro.

Pelo retrovisor, ainda podia ver as chamas que subiam.

Fim.

Humberto Lima
Enviado por Humberto Lima em 24/07/2008
Código do texto: T1096330
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