O medonho sob o chapéu

Veio-me em sonho a história deste pobre homem, como uma revelação que lhes devo fazer para alertá-los dos perigos de certos hábitos que, parecendo inofensivos, são capazes de provocar os mais horríveis males em que os cultiva.

A origem deste perdeu-se na memória, mas desde que se lembra, o agradava colecionar ratos, baratas e outros bichos pouco prazerosos para a maioria das pessoas. Não os guardava em caixas, envelopes ou mesmo secos. Mantinha-os vivos e ainda, não bastasse, carregava-os por onde ia escondendo-os sob o chapéu. O hábito tomou tal forma que já não pegava apenas os que encontrava, mas também os procurava em todos os lugares para ver se achava os vermes mais horríveis e mais nojentos que poderiam existir. E quando os via, a felicidade era tamanha que só aumentava quando os tinha ao abrigo do próprio chapéu.

Naquela época, não era difícil defrontar-se com esse tipo de animais. Era comum vê-los nas ruas em meio ao lixo e à sujeira que se espalhava por todos os cantos de ruelas e becos infectos da cidade. Até os lugares finos que freqüentava não estavam livres da presença dos bichos. Isso facilitava, embora não fosse difícil encontrá-los, para que aumentasse o seu vício medonho.

Não se preocupava mais com que os outros notassem a horrível prática. Diante de desconhecidos até tentava controlar-se, mas não o conseguia por muito tempo. Logo começava a bisbilhotar aqui e ali para ver se não encontrava um inseto escondido ou uma ratazana traiçoeira que esperava as pessoas dormirem para iniciar a sua ronda. A família e os amigos já não se importavam com sua bizarrice e até, às vezes, guardavam para ele algumas larvas que encontravam na comida ou besouros que caíam quando exaustos de rodarem e baterem com a cara na lâmpada.

Muitos dos que percebiam as suas estranhas manifestações, comentavam nas rodas de conversa a triste situação do homem que transformara a sua vida numa perpétua caça aos bichos mais asquerosos e nojentos que existiam. Sua presença era evitada por todos e as mulheres sentiam repulsa ao ouvir falar o seu nome, pois lhes ocorria no ato a horrenda cena do levantar do chapéu.

Uma noite, na cama, o infeliz acordou ouvindo um estranho barulho que vinha não sabia de onde. Levantou-se preocupado em encontrar algum ladrão pela casa e a revistou para ver se encontrava a origem daqueles ruídos. Procurou no quarto, na cozinha, no banheiro, na despensa, no porão e nada de descobrir de onde saíam aqueles sons incômodos. Deitou-se novamente convencendo-se de que o barulho, apesar de perceber tão perto, não era nada significante. Antes tivesse tido ele a prudência de levantar o chapéu... O chapéu, não disse antes, não tirava nem para dormir, com medo que os seus bichos escapassem e ele tivesse que capturá-los todos novamente.

Os ruídos continuaram, e aumentaram, durante os dias e o desacertado tentava, em vão, se acostumar com eles. Uns três dias depois, quando se preparava para deitar, sentiu um roçar estranho na cabeça e finalmente tomou a decisão de olhar sob o chapéu. Que espanto, meus caros! Que cena tenebrosa de se ver! Vermes penetravam no seu crânio roído e cheio de buracos. O couro cabeludo não existia mais, somente um aglomerado de aranhas, baratas e todos os insetos conhecidos e desconhecidos que se entranhavam numa disputa pelos poucos cabelos que restavam e, quando não alcançavam, comiam as patas e asas dos que estavam na frente. O cérebro era festejado pelos roedores que se lambuzavam com a tenra e ensangüentada massa. Já não se sabia mais o que era parte de homem e o que era parte de bicho. Os animais menores mastigavam as membranas ainda atadas ao corpo enquanto os mais fortes arrancavam-lhe pedaços inteiros daquele bolo inflamado.

Em pouco tempo os animais lhe penetraram pela cabeça adentro e começaram a furar-lhe os outros órgãos. Os mais pequenos, que estavam em maior número, ganhavam a liberdade saindo pelos ouvidos e pelas narinas. Dos olhos completamente vermelhos, lágrimas de uma secreção amarelenta vertiam em esticados fios pegajosos onde as moscas já vinham grudar-se. No peito e na barriga, pequenos volumes se contorciam por debaixo da pele, invadindo os órgãos daquele corpo já condenado. Antes de lhe comerem a língua já não conseguia falar. Quando abria a boca todos os bichos pareciam sair de uma só vez e não se compreendia uma palavra. Somente um grunhido abafado se misturava ao zumbido que vinha daquele depósito macabro. Todos fugiam saciados de carnes e humores como se isso fosse uma recompensa pela forçada prisão.

Isso tudo me foi mostrado em sonho sem que eu tivesse a mínima possibilidade de desviar o olhar. Se parece tenebroso para vocês, imaginem que tive que assistir toda essa desgraça sentindo como se fosse em mim. Aquela confusão de bichos e homem era uma visão que eu jamais conseguiria descrevê-la tão fielmente como foi. O horror de ver o homem sendo devorado vivo por aqueles seres que, em situações comuns, já dão repulsa, enrijeceria os nervos de qualquer um.

Não pude ver o fim daquele desgraçado, mas podemos, infelizmente, imaginar o que se passou depois. Acordei-me em desespero vomitando tudo o que havia comido durante o mês, me pareceu. Há dias sinto arrepios e náuseas que tento agora fazer passar contando esse infortúnio para os que dispõem de um miserável tempo para chegar até essas últimas linhas. Foi a pior das sensações que experimentei e tenho certeza de que o seria também para vós. Não cultiveis os maus hábitos, camaradas, para que também eles não os consumam.