Povo das Sombras

Paulo, muitas vezes preso em seu próprio mundo, costumava dizer que as pessoas que passavam por ele na rua e não o cumprimentavam, mesmo conhecendo-o, constituíam a “tribo do Povo das Sombras”. Era uma brincadeira, mas também era algo que colocava seus “admiradores” para pensar. Escrevendo pensamentos e contos para a internet, Paulo ficou medianamente conhecido, ainda que isto tenha se configurado em um incômodo empecilho.

Começou inicialmente como uma idéia despretensiosa. Ele percebeu, desde a infância, que as pessoas não se importavam nem um pouco com sua presença. E, na verdade, ele também não era lá muito chegado em conhecer ou encontrar “gente”. Percebendo esta falta de calor humano entre os seres viventes, a incessante guerra capitalista, a busca desmedida por petróleo, pessoas inferindo-se religiões que beiram a contos de fadas... todas essas coisas dariam uma boa história. Apenas uma boa história.

- Ninguém se interessa por isso – disse um amigo de Paulo, chamado Evandro, com o roteiro do conto nas mãos – Nenhum amigo seu vai ler isso.

- Nenhum amigo meu lê nada que escrevo – disse Paulo – é a ordem natural das coisas. Santo de casa não faz milagre.

Eis a sinopse do conto de Paulo: “um rapaz, jovem escritor de contos que fazem sucesso em um pequeno círculo de leitores na internet, se vê preso em um terrível pesadelo. Sua família esqueceu completamente de quem ele é. Não só sua família, mas todos os seus parentes, amigos e conhecidos. Ele não tem identidade, nem residência ou refúgio onde possa se esconder desta estranha e insólita maldição. E o pior, toda esta desgraça coincide exatamente com o conto que ele acabara de escrever. Logo ele entenderá que não poderá, jamais, ver-se livre da inflexível presença do Povo das Sombras.”

Paulo publicou seu conto em uns cinco sites de relacionamento da web. E para contrariar o que seu amigo dissera, o conto foi o campeão de leitura do ano – mais de mil acessos em menos de um mês, só em um dos portais que aceitou seu material. Naquele ano Paulo recebeu mais correspondências do que recebera em toda a sua vida, desde e-mails a presentes de admiradores, escritores iniciantes que queriam ter suas obras revisadas por um “mestre”, contato de uma grande editora oferecendo uma fortuna para que “Povo das Sombras” se tornasse um livro.

No início toda essa aliciação parecia uma coisa boa, mas depois se tornou um sombrio letargo, não por culpa das centenas de pessoas que o procuravam toda semana, mas pelo que ocorreria em seguida, em determinado dia de inverno de um ano já esquecido.

Aconteceu que Paulo acordou com uma forte dor de cabeça em um dia nublado – muito frio e chuvoso – e desceu as escadas que levavam a seu quarto em direção à sala de estar. Ainda estava de pijama quando o opróbrio que lastimou a vida de seu personagem fictício o lancinou a si próprio. No cômodo térreo estavam seus pais, tomando café, fitando-o com ares de surpresa e descrença. Pareciam ter visto nada mais que um monstro irreconhecível.

- Quem é você? – gritou o homem, pai de Paulo, um sujeito muito alto e moreno de voz grave. – Como invadiu a minha casa?

- Do que está falando, pai? – perguntou Paulo, meio sem graça. Estava nervoso, pois, por mais brincalhão que o pai fosse, ele jamais conseguiria interpretar tamanha aversão pelo olhar e pelo timbre de voz.

- Pai? – disse a mãe de Paulo, nervosa, segurando o marido com força pelo bíceps – o que esse garoto está dizendo, João? Você é pai desse garoto, João?

- Sim! – exclamou Paulo, interrompendo o perplexo chefe de família – e você é minha mãe! Gente, pára com essa brincadeira. Vocês nunca foram disso!

- Sai da minha casa agora, vagabundo! Ou vou chamar a polícia! Maconheiro, safado...

O pai avançou para perto de Paulo, que fugiu para fora, obcecado pela confusão. Achou que estava preso em algum delírio gerado por seu próprio idealismo. Na calçada – na sarjeta – ainda de pijama e remela nos olhos, viu o próprio pai bater com o portão de alumínio contra sua face. Estava tremendo, sentia o coração batendo descontrolado, e orava baixinho esperando que aquilo fosse meramente um sonho ruim.

Caminhou desordenado até o portão da faculdade onde seu melhor amigo, Evandro, estudava. O rapaz saiu de mãos dadas com uma garota, sorrindo, ignorando a presença de Paulo – que para se fazer ouvir intercedeu o caminho do casal, fitando-os com desespero.

- Beatriz, Evandro, vocês não sabem o que me aconteceu...

- Você esqueceu que não se vem pra faculdade de pijama...? – brincou Evandro. Em seguida, olhou para Beatriz – você conhece esse cara, Bia?

- Não... – respondeu Beatriz, séria.

- Cara, não faz isso comigo não. – berrou Paulo, arqueado, puxando a manga da camisa de Evandro – parou a brincadeira. Meus pais te deram dinheiro pra você falar que não me conhece, não é? Só pra eu parar de escrever contos e ir estudar...

- Meu, eu não te conheço! – respondeu Evandro, irritado, desvencilhando-se das mãos de Paulo – nunca te vi mais gordo. Agora pára com essa besteira, tá assustando minha namorada...

O casal foi embora. Chorando, Paulo permaneceu ajoelhado no chão, enquanto uma chuva fina enxovalhava as costas do escritor que hoje erra solitário pelas ruas de São Paulo, como nada mais que um mendigo lunático e desconhecido. Nenhum parente o reconheceu, nenhum fã sabia quem ele era e aquele representante de uma grande editora que antes o contatara disse, por telefone, que jamais havia ouvido falar de um conto chamado “Povo das Sombras”.

Um dia, todos somos vítimas do Povo das Sombras, pois ao Povo das Sombras pertencemos. Eu mesmo também sou uma vítima deste terrível fadário, pois antes eu era um grande romancista e contista, escrevi grandes obras que ficaram famosas em todo o mundo – cheguei a ser considerado o melhor autor de ficção de determinado ano, mas hoje caí no ostracismo e no esquecimento. Até mesmo meu próprio nome, um nome ostensivo e portentoso, hoje não é lembrado por mais ninguém. Você, que está lendo este conto neste exato momento, também se esquecerá dele, e terá assim perdido o maior segredo que poderia ter em sua posse para toda a vida.

Eu escrevi o Povo das Sombras.

Diego Risan
Enviado por Diego Risan em 15/07/2008
Código do texto: T1081904