Haiku Killer

I

O homem estava sentado, em posição de lótus, em frente ao singelo monumento de Buda. Era o momento de refletir, meditar... pensar no que fazer dali pra frente. Havia jogado a vida fora, literalmente, e isso resultou em graves conseqüências como, por exemplo, a ânsia incessante de cometer suicídio. Porém, agora mais um filho estava chegando, o que significava que mais uma pessoa dependia de sua existência. E quando nós não temos mais nenhuma solução para os estafantes empecilhos deste mundo, fatalmente recorremos aos deuses.

Tadashi Matsura tinha trinta e dois anos. Trabalhava na polícia desde que tinha dezoito. Ficou conhecido por seu raciocínio lógico e apurado ao lidar com casos insólitos de homicídio, onde sua resolução calhava, quase sempre, na prisão dos verdadeiros assassinos. Ele não era nenhum Sherlock Holmes – esse tipo de personagem só existe na ficção – mas quase sempre seu juízo era tão veloz, que muitas pessoas não podiam deixar de associá-lo a personagens de romances policiais. Por muitos anos Matsura ficara lisonjeado com este tipo de comparação, mas, de uns anos pra cá, o assédio tornou-se um grande problema.

A mídia japonesa abordou a existência do detetive Matsura com tanto fulgor, que a vida pessoal do policial foi duramente afetada. Brigas com a esposa, medo de que seus filhos fossem seqüestrados, pavor de andar a noite sem ser atingido por uma bala terrorista... seu pequeno mundo tornara-se um inferno intragável. Por isso, há três anos, o inspetor de polícia Seiko Yamato o liberou do serviço policial por tempo indeterminado. Umas férias iriam lhe fazer bem.

Naquele templo budista, três anos depois de receber férias sem previsão para volta, Tadashi Matsura meditava, tentando cicatrizar os ferimentos há muito talhados. As férias ajudaram a despistar a mídia, mas não concertaram os danos da vida pessoal. Sua esposa ainda não se conformara com alguns eventos do passado, sua mãe ainda estava com amnésia (olhar para ela e não ser reconhecido era mais doloroso que qualquer enfermidade), seu pai permanecia desaparecido, seu filho mais velho ainda sofria com uma asma galopante.

- Matsura – disse uma voz, branda. Tal era o torpor de Matsura em sua meditação que, por cerca de dois segundos, ele acreditou que alguma entidade espiritual começara o contato.

- Matsura – repetiu a voz. Agora ele sabia que era alguém que falava com ele, na porta de entrada do templo.

O detetive abriu os olhos e virou-se, lentamente. Na porta ovalada, contra a luz do sol de meio-dia, um homem um tanto rechonchudo estava de pé, fitando-o. Não era possível ver seu semblante – mas era possível distinguir a silhueta do inspetor Yamato, ainda que o homem estivesse um pouco diferente que da última vez que se viram. – Porque não disse que estava de volta à cidade? – indagou o inspetor.

- Não antes de prestar contas a Buda – respondeu Matsura, levantando-se – Para o senhor ter vindo até aqui me procurar, então algo grave aconteceu. Poderia ter ido até o meu apartamento.

- Eu fui. Sua esposa disse que estaria aqui. Mas sim, eu estou com um problema sim. Vamos até meu carro, eu não gosto de falar de trabalho nas redondezas do templo.

Os dois caminharam até a esquina daquela avenida sem se falar. O sedã do inspetor estava estacionado em frente a uma lanchonete, onde cerca de dez jovens de cabelos coloridos conversavam em voz alta enquanto assistiam a um jogo de baseball na televisão. Yamato abriu a porta do carro e entrou, seguido de Matsura no banco do carona.

- Esse pessoal gritando não vai ajudar a conversa – disse Matsura, meio que sem ter o que dizer.

- Tanto melhor. Nossa conversa não pode ser ouvida. Vou direto ao assunto, Tadashi: estou com um serial killer a ser capturado.

- Serial Killer? Minha nossa, capitão, e como está a investigação?

- No zero. O assassino deixou uma série de pistas, mas ninguém sabe desvendar. Estamos tentando manter a mídia fora disso, mas temos que neutralizar o criminoso antes que ele continue. Eu sei que eu te dei férias para descansar o máximo que você pudesse, meu amigo, mas a situação está desesperadora...

- Não, tudo bem – interrompeu Matsura – o senhor pode contar comigo. Quantas pessoas já foram assassinadas?

- Três. Todas mulheres. Nenhuma relação aparente entre si. Foram mortas a corte de espada, no tórax.

- Só isso? Não é suficiente para classificar o agressor como serial killer...

- Calma, eu ainda não terminei. Sobre o corpo de cada vítima o assassino deixou um haicai... uma pista sobre seu objetivos em forma poética. Foi por isso que eu te chamei. Você sempre gostou de poesia. Eu não entendo nada dessas coisas, sou um bronco.

- Os haicais têm alguma relação entre si? – perguntou Matsura, enquanto fitava os jovens que conversavam alegremente na lanchonete.

- Bem, todos têm a palavra “frio”...

- Então os haicais falam de inverno – Matsura ainda estava concentrado no grupo da lanchonete, enquanto falava – representam o inverno, entende? Quando foi que ocorreram estes assassinatos? Este mês?

- Sim. Nos dias 5, 12 e 17 deste mês.

Matsura riu, fitando agora o inspetor – E o senhor não faz idéia da correlação entre estes dias, não é mesmo?

- Não...

- Os haicais são poesias feitas de uma maneira, digamos, matemática. É composto por três frases pequenas. A primeira deve ter cinco sílabas, a segunda deve ter sete, e a terceira deve ter cinco de novo. O assassino em questão matou a primeira vítima no dia cinco, a segunda no dia doze e a terceira no dia dezessete. 5 + 7 = 12. 12 + 5 = 17.

- Cassete – exclamou Yamato, atordoado – Como é que ninguém percebeu isso?

- Acontece, capitão.

- Isso quer dizer que, com estas mortes, o assassino formou um haicai, certo? E agora? Qual será o próximo passo dele?

- Acho que não haverá um próximo passo. Veja bem, se os haicais dele falam de inverno, significa que ele só matará este mês, mês de inverno. O próximo mês já é primavera, capitão. Não acredito que ele vá matar de novo. Mas prefiro saber quem são as vítimas, antes de continuar com meu raciocínio...

- Melhor do que lhe falar, vou levá-lo até o necrotério. Lá você poderá falar com o legista, que vai falar sobre as mortes bem melhor do que eu.

O inspetor deu a partida no carro e saiu. Ao longe, enquanto se distanciava, Matsura fitou o grupo na lanchonete pela última vez. Não havia nada de incomum com o grupo, isso apenas fazia parte de sua “técnica”.

II

Em menos de meia-hora o tempo mudou. A luz do sol se escondeu em nuvens negras que, velozes, cobriram o céu da cidade. Prevendo a chuva iminente, a multidão que superlotava as ruas foi se escondendo, se dispersando, e aos poucos apenas o sedã do inspetor ia cortando as ruas estreitas que levavam ao necrotério. Yamato estacionou o veículo em uma esquina erma, e saiu: - Vamos logo, antes que comece a chover.

Os dois andaram a passos largos, até entrar no estabelecimento, enquanto uma chuvinha fina começava a cair. Em pouco tempo o médico legista apareceu na recepção, e os acompanhou ao local onde os corpos eram armazenados.

- Esta daí é Keiko Onoda – explicou o médico – trinta e um anos. Trabalhava em uma firma de telemarketing em Tóquio. O corte em seu peito é bastante irregular. Só pode ter sido feito por alguém que jamais empunhou uma espada, ou por algum bêbado que encheu a cara de saquê.

“A do meio é Suzana Yutaka” continuou explicando o médico “é estrangeira. Veio do Brasil quando tinha doze anos. Conseguiu uma bolsa para estudar no Colégio Muramashi, que geralmente não aceita gente de fora. Tinha trinta e dois anos. O corte feito em seu tórax é bastante amador, igual ao de Keiko Onoda”.

“Por fim, esta é Ikia Mayioshi. Trinta e dois anos. Foi a última a morrer, no dia dezessete deste mês. Trabalhava como modelo em uma firma de Tóquio. O corte de espada em seu peito, diferente das outras duas, foi feito de forma mais acurada, com uma certa competência, ainda que não se compare a esgrimistas e praticantes de Kendô”.

- Todas essas mulheres estudaram no Colégio Muramashi, certo capitão? – indagou Matsura, enquanto analisava o corte no tórax nu do cadáver de Ikia Mayioshi.

- Sim. Nós apuramos isso. Todas elas estudaram neste colégio, e eram da mesma classe.

- Mesma classe em que estudou Yuri Hattori. Lembra de Yuri Hattori, capitão? A menina que venceu o campeonato anual de Haicai? A mesma menina que trabalhava em um frigorífico, herdado pelo avô? – Matsura estava fitando o inspetor, que olhava para ele, espantado – Capitão, o senhor vai me desculpar, mas esse foi o caso mais fácil de toda a minha vida.

O inspetor levou a mão direita aos olhos, envergonhado. Não podia acreditar em sua própria falta de raciocínio. Estava tudo claro agora. Esta menina, Yuri Hattori, havia sido humilhada pelas três vítimas enquanto ainda estava no colégio, há mais de dez anos atrás, em um caso complicado que envolveu a polícia. Hoje em dia Yuri já devia ter seus trinta anos, mas não havia esquecido o vexame a que foi submetida na frente do namorado. – Então o assassino dos haicais é Yuri Hattori... – disse Yamato, mais para si mesmo do que para os outros dois homens presentes.

- Por isso os haicais falam sobre “frio”. Acho que não tem nada a ver com o inverno. Ela trabalhava no frigorífico de Enzo Hattori, o velho mestre de artes marciais que participou de alguns filmes B dos anos oitenta. Ele foi meu professor de Karatê, e costumava dizer que eu era seu melhor amigo. Então as colegas de classe de Yuri, estas vítimas que contemplamos agora, acharam interessante pregar uma peça na garota. Só que não só essas aqui estavam envolvidas... – havia outras no esquema.

- Isso quer dizer que ela pode agir de novo no mês que vem, se não for capturada – afirmou o inspetor. – Temos que prendê-la!

- Calma, capitão – disse Matsura – existe outro suspeito. Lembra do namorado de Yuri, que estava no baile colegial quando a moça sofreu aquela humilhação?

- Sim. Era um playboy, filho de um magnata de Kyoto com uma atriz coreana. Acho que se chamava Kusunoki Kozen. Você acha que ele é um suspeito?

- Por via das dúvidas vamos falar primeiro com ele. Eu tenho o número do celular dele aqui na minha lista de contatos. Vou convidá-lo para um café, ou algo do tipo.

O inspetor Yamato olhou para Matsura, confuso: - Porque você tem o telefone de Kusunoki Kozen? Vocês são amigos, por acaso?

Matsura agradeceu o médico legista, e, apressado, desceu as escadarias do necrotério. Lá fora, debaixo de uma chuvinha gelada e fina, disse: - Não só o velho Enzo me considerava um amigo, mas Kusunoki era também um grande amigo, nos tempos de escola. Eu também estudei no Colégio Muramashi. De fato, eu dei abrigo a Kusunoki, genro de Enzo na época, quando ele foi expulso de casa pelo pai, a pedido do próprio Enzo.

III

O detetive Tadashi Matsura aguardava seu convidado na mesma lanchonete onde, há uma hora, um grupo de jovens conversava despreocupadamente. Na verdade, foi a visão daqueles jovens que fez com que Matsura tivesse a revelação da resolução daquele caso.

Assim que entrou para o departamento de polícia, Matsura percebeu que tinha esse “dom”. Olhava para um certo lugar comum e, de alguma maneira, “conversava” com o ambiente. O cenário – cadeiras, mesas, lâmpadas, carros, pessoas – falava com ele, dizia para ele o que ele queria saber, mesmo que não fosse cena do crime. Ele nunca falou disso com ninguém, nem com a própria esposa, mas acreditava que esta dádiva era real, e dava um jeito de agradecer a Buda todos os dias por isso.

Enquanto aguardava Kusunoki, aproveitou para comer macarrão e observar as pessoas que passavam. Não era muito divertido, mas era necessário. Assim que o velho colega aparecesse, queria ter certeza se o homem era digno de confiança ou não. Todavia, sob aquela tormenta que culminara em uma forte tempestade invernal, não havia criatura alguma a errar pela avenida, nem automóvel... nem mesmo um cachorro de rua. Sobre os bueiros poços d’água começavam a se formar, e dos muros dos templos um manancial escorria inexorável por nichos, formando pequenas cachoeiras nas ladeiras íngremes do bairro.

- Hoje vai ter enchente – disse o dono da lanchonete, mal humorado – logo hoje. É o dia que eu mais ganho dinheiro com meu estabelecimento. Mas o povo não dá valor ao escrutínio...

- Pois é – confirmou Matsura, com a boca cheia de macarrão.

- Quando os homens aprenderem a votar, moço, essas coisas acabam.

- Como é? – Matsura levantou a cabeça, de olhos esbugalhados – Repete o que você disse.

- Eu disse que quando os homens aprenderem a votar essas coisas acabam. Falei algo errado?

Matsura pegou o telefone celular, e discou. Aguardou. O inspetor atendeu, do outro lado. “Capitão, quero que me passe agora os três haicais que o assassino deixou sobre os corpos das vítimas. Vou anotar aqui, no guardanapo da lanchonete onde estou”.

Sem entender muito bem aquela situação, o inspetor citou os três haicais. Com pressa, Matsura anotou no guardanapo. Pagou o almoço ao dono da lanchonete e saiu apressado, debaixo da chuva intensa. Não tinha tempo para esperar Kusunoki. E nem precisava, pois sabia agora que Kusunoki não era o assassino. A resposta estava bem debaixo do seu nariz.

O primeiro haicai, deixado sobre o corpo da primeira vítima, Keiko Onoda, assassinada no dia cinco, era o seguinte:

“Depois do ardor

Minha lâmina descansa

Fria, branca cor”

O haicai deixado sobre a brasileira Suzana Yutaka, dizia assim:

“Ponho-me a viajar

Por mundo alfarrábio

Sob frio a assolar”

E o último haicai, deixado sobre a modelo Ikia Mayioshi, era o seguinte:

“O vovô deixa

Oh, Netinha querida

Frio que deseja”

Precisava, urgentemente, falar com Yuri Hattori. Aqueles haicais haviam sido feitos por seu avô. Mas o avô estava morto. Então restava Yuri, a única suspeita. Ela havia executado as vítimas e, de uma maneira infantil e banal, tentou culpar o avô falecido, associando seu espírito ao horror das mortes ocorridas naquele mês – usando os haicais que seu avô fazia. Foi assim que ela ganhou o campeonato de haicais no colegial. Foi assim que ela deixou claro que era a assassina.

IV

“Quando os homens aprenderem a votar, moço, essas coisas acabam”, dissera o dono do restaurante. Foi esta frase que fez o detetive desvendar o caso.

Chegou ao apartamento de Yuri Hattori quando estava anoitecendo, com a roupa toda encharcada. Preferiu ir até lá sozinho, sem o inspetor, pois precisava averiguar os fatos com cautela. Yuri era uma amiga de longa data, e merecia esta consideração por parte do detetive. Este último, inclusive, era apaixonado pela mulher desde os tempos de adolescente. É claro que Tadashi Matsura cogitou o perigo de se deixar levar por estes sentimentos, antes enterrados, mas ele confiava em sua própria força de vontade. Resolver este caso, para ele, funcionava quase como uma redenção – e era a principal oportunidade que teria para voltar para a corporação policial.

Yuri atendeu a porta. Matsura a fitou. Ela estava linda, e seu aspecto era praticamente o mesmo que dez anos atrás. Cabelos negros, pele branca e olhos grandes, como os dos ocidentais. A mulher sorriu para Matsura, reconhecendo-lhe a primeira vista, e pediu para que o homem entrasse.

O apartamento era simples, e pouco podia ser distinguido mediante a luz baixa, que criava uma penumbra. Com dificuldade, Matsura caminhou até a mesinha de centro da sala de estar, que estava preparada para algum jantar. – Perdão, acho que cheguei em uma má hora.

- Não, Tada-san – disse Yuri – eu levei bolo do rapaz que viria pra jantar. Pode comer. Tem muita coisa pra eu comer sozinha.

- Tada-san – repetiu Matsura, sorrindo – eu já estava com saudade desse apelido.

Yuri sorriu – Sente-se. A que devo o prazer de sua visita?

- Estou com alguns haicais que fiz – mentiu Matsura – queria que você analisasse.

- Eu não sabia que você era poeta, Tada-san! – exclamou Yuri, excitada – Dê-me aqui, eu quero ver!

Matsura colocou a mão no bolso da japona, e retirou o papel amassado e úmido com os haicais. Yuri pegou o papel, e leu, em poucos segundos. Em seguida, ergueu a cabeça, estava com o semblante fechado agora, fitando o detetive com olhar penetrante. Lá fora a chuva voltava a cair com força. – Esses haicais são do meu avô.

- Eu sei. Apareceram sobre os corpos de três mulheres mortas. Keiko Onoda, Suzana Yutaka e Ikia Mayioshi. Acho que não preciso dizer quem eram estas mulheres...

- Meu Deus, Tada-san – disse Yuri, chorosa – Você acha que fui eu que matei essas mulheres? O que aconteceu no passado eu deixei no passado!

- Não acredito – respondeu Matsura, levantando-se – sugiro que você se entregue agora... quem sabe eles aliviam um pouco sua pena.

- Mas... – Yuri não teve tempo de falar.

A luz fraca da lâmpada se apagou. Escuridão total. Pelo visto acabara a luz no bairro, pois nem nos postes da rua havia iluminação. Matsura não podia enxergar um palmo a sua frente. Desesperado, jogou-se no chão, rolando para um canto da parede, temendo que Yuri tentasse alguma retaliação.

- Tada-san, cadê você? – gritou Yuri, horrorizada – tem alguma coisa aqui! Me ajuda Tada-san!

“Vagabunda!” pensou Matsura, “acha que eu sou algum idiota pra cair nessa?”

- Socorro, Tada-san!

Um baque.

Silêncio.

Matsura ainda estava no canto da parede, quando ouviu o corpo magro de Yuri tombar no chão. Se a mulher estava fazendo alguma encenação, no meio daquela mortalha macabra, então ela devia ser uma ótima atriz. O detetive sentiu a respiração escassa, e precisava respirar, mas estava com medo de fazer barulho. No meio daquela sala invisível, contra o negrume brutal, Matsura viu com os próprios olhos a corporatura de um espectro pardacento passar com velocidade no cômodo, e volitar pela janela para o firmamento acromático.

A energia voltou cinco minutos depois. O detetive ainda estava no chão, tremendo e arfando. Levantou-se e olhou o corpo de Yuri, que jazia no chão. Suas roupas brancas tornaram-se rubras em detrimento do sangue que as manchava. Um punhal lacerara-lhe o coração, e ainda estava cravado em seu tórax. Congelado pelo horror e pela confusão, Matsura se sentou em uma poltroninha, e limpou o suor da testa.

Tal era o pavor que Matsura sentira que não percebera que seu aparelho celular estava tocando fazia um minuto. Com a mão sacudindo pelo nervosismo, Matsura tirou o celular do bolso e atendeu. Era sua esposa.

- Tadashi, vem pra cá – disse a mulher, com a voz oscilante – acho que o neném vai nascer...

- Eu já vou – respondeu Matsura, desligando o telefone. Ainda demorou um tempo para recobrar a consciência, e partir apressado pra casa.

V

As luzes de sua casa estavam apagadas. Nenhum movimento podia ser detectado. Havia algo estranho no ar – um sentimento tão aziago que até mesmo Matsura, um homem não muito espiritualizado, podia com horror pressentir. Algo infernal havia sido libertado aquela noite, e atingira diretamente sua família.

O único som audível em todo o condomínio eram os passos pesados de Matsura na trilha de pedras do quintal que dava para sua residência. A chuva novamente parara, e o silêncio era tão desconfortável que parecia que o mundo havia parado também. Bem ao fundo, o detetive achou que ouvira o grunhido baixinho de seu filho mais novo, de dois anos de idade. Com certeza acontecera uma tragédia.

Tadashi Matsura abriu a porta de sua casa com um encontrão. O cômodo principal estava coberto de escuridão. O detetive tateou a parede, tremendo, procurando um interruptor. Encontrou. O que viu em seguida fez seu sangue enregelar.

Contra a parede, no lado oposto do cômodo, estava sua mulher, grávida, sentada no chão com os olhos arregalados. Logo atrás dela, também sentado, o Inspetor Yamato ameaçava sua vida com um punhal, encostando a lâmina no pescoço da mulher, que deixava escorrer um filete de sangue. Os dois filhos de Matsura estavam amarrados a uma pilastra no centro da sala de estar, e pareciam estar inconscientes.

- Você se acha muito esperto, Matsura – disse o inspetor, babando e sorrindo, como um louco – mas aposto que jamais imaginou que eu sou o assassino do haicai, não é mesmo? Aposto que você pensou que eu era tão idiota que não podia sequer imaginar os trâmites do maldito caso, e por isso precisava muito de sua ajuda, não é mesmo?

- Eu não entendo, Yamato. Que merda é essa? O que você está fazendo? Largue minha mulher!

- Você nunca se importou com essa vadia. Nem com aquela Yuri Hattori que, com muito prazer, eu matei. Pensou que fosse um espírito, não é? Achou que fosse o espírito do pai dela! Ha, ha, ha, ha, ha...

- O que é tudo isso? – indagou Matsura, se aproximando – é inveja dos meus relacionamentos?

- Não seja palhaço – vociferou Yamato, pressionando a lâmina do punhal contra o pescoço fino da gestante que tinha como refém. – eu quero que seus relacionamentos se fodam! Se bem que, todos os seus relacionamentos já estão mesmo fodidos. Mas se você quer saber, sim, eu estou fazendo tudo isso por inveja. Eu sempre vivi à sua sombra, “Tada-san”. Eu sempre fui o inspetor que ajudava o grande detetive Tadashi Matsura a resolver os casos mais complicados. Mas esse você não resolveu... e sabe porque?

- Porque nada tem lógica. Você embaralhou todas as provas. Você fez o caso ter algum sentido, mesmo que na verdade não tivesse.

Yamato virou o rosto da mulher de Matsura, e disse sinicamente: - Seu marido é fantástico. Ele sempre sabe de tudo. Que grande homem ele é, que honorável japonês ele é. Mas ele não resolveu o caso e agora, todos vocês irão morrer.

- O que eu posso fazer pra você mudar de idéia, Yamato? – berrou Matsura, em desespero – Leve a mim, mas não envolva minha esposa nisso!

- Não, Matsura! Não tem jeito! Vai morrer todo mundo nessa por...

As luzes se apagam, subitamente. O mundo pára mais uma vez. Nenhum som pode ser ouvido, senão a respiração ofegante da esposa de Matsura. Depois de alguns segundos de calada, Yamato explode de horror e fúria: - Que porra é essa, Matsura? Quem apagou a luz? Acende essa merda ou vou matar sua mulher estocando esse punhal no ventre dessa piranha!

- Eu não apaguei nada! – gritou Matsura, se aproximando da parede sem fazer ruído – por favor, não faça isso, Yamato. Não destrua sua vida com isso!

Matsura viu uma luz fosca se movimentar na sala. Ele teve esta mesma impressão no apartamento de Yuri. Aquele fanal ambulante parecia ter seu brilho próprio, movimentando-se com velocidade, como se fosse um vaga-lume atroz. Passou rápido ao lado de um porta-retrato com a foto de Enzo Hattori, amigo de Matsura de longa data, em direção à parede que o detetive tentava alcançar.

- Matsura! Que brilho é esse? – berrou Yamato, chocado – Pára, Matsura, ou eu vou matar sua mulher!

- Amor, pára com isso! – gritou a esposa de Matsura, em plena escuridão – ele está cortando meu pescoço!

- Filho da putaaaaaaaaaaaaaahh – gemeu Yamato. Em seguida, um barulho estranho de alguma coisa sendo perfurada soou forte, e um odor letífico subiu, impregnando todo o cômodo.

Na penumbra fracamente iluminada pela luz da lua, Matsura pôde ver a efígie mórbida de sua esposa, ofegante, lutando pela sobrevivência. Atrás da mulher jazia Seiko Yamato, inspetor de polícia, morto da maneira mais horrível que se pode conceber: de olhos arregalados, boca escancarada e suja de vômito, banhado de sangue por todos os lados. Sobre seu cadáver, em um pequeno pano branco de seda, um haicai havia sido deixado pela criatura noturna que o atacou.

“Não deixo amigo

Que em outra noite fria

Deu-me abrigo”

A cinco metros, no outro lado da sala, o mesmo vulto iluminado e pardacento antes visto por Matsura volitou pela janela, e desapareceu antes mesmo de alcançar os telhados mais altos das casas do condomínio.

Em seguida, um baque.

Silêncio.

Diego Risan
Enviado por Diego Risan em 11/07/2008
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