Sino dos Informes - Mar de sangue

Goth não chegou a perder os sentidos enquanto fazia a transição para o mundo escuro. Sentiu uma leve dormência em seus membros, mas os olhos permaneciam alertas, esbugalhados, enquanto seu corpo girava convulso em torno do próprio eixo. Caiu em uma colina de areias pedregosas e rolou pela encosta até atingir, com um baque, o sopé. Permaneceu deitado, com os braços abertos como se estivesse crucificado, até que a tontura que assolava sua sanidade finalmente cessasse. Ousou abrir uma pálpebra. Escuridão total. Abriu a outra. Olhar para aquela infinita negritude era como permanecer de olhos fechados. Sentiu-se claustrofóbico, como se estivesse preso em algum terrível e exíguo espaço. Tateou ao seu redor e não encontrou nada, a não ser a atmosfera densa e gélida daquele local. Vagas lembranças evanescentes invadiam sua memória naquele instante.

Apoiando as mãos no chão, levantou-se. Andou a esmo, com os braços levantados como uma múmia, por mais de duas horas, até que sua visão começasse a adaptar-se àquele vácuo abismal. Não fazia a mínima idéia de qual era o motivo de estar imerso naquele vale morto. Parou por uns segundos, arquejante. Olhou para o alto e vislumbrou um amontoado felpudo que se assemelhava a uma nuvem, embora fosse, de longe, muito mais espessa. Enquanto detia sua atenção no aglomerado mórbido, este se condensou em gotículas que, rapidamente, pingaram no rosto e ombro do rapaz. Ele passou a mão na face e percebeu que o líquido era quente, viscoso. Não precisou de maiores elocuções para perceber que a nuvem que fitara era de sangue. Muito sangue. Uma centelha de horror tomou conta de seu estômago. O assustado rapaz recomeçou a caminhar, em apressadas passadas, para longe daquele local. No horizonte, não conseguia distinguir nada que indicasse presença de vida...

Embora se lembrasse de seu nome, idade, e, até, remotamente, de seu passado, não conseguia recordar-se de como fora parar naquela negridão subterrânea. Sua última lembrança era de estar fazendo trilha em uma vereda no meio de uma floresta de coníferas no sul do Brasil quando, subitamente, tudo se apagou. Desse derradeiro instante em diante, sua memória parecia não mais existir ou talvez estivesse bloqueada pelo estanque mundo em que se encontrava. Ponderou se o grupo de amigos que o acompanhara na caminhada tivera o mesmo fatídico destino. Junto com Goth, perfaziam cinco pessoas que, no inverno de julho, reuniam-se para desbravar as misteriosas belezas naturais que o ecoturismo brasileiro oferecia.

O silêncio que grassava naquelas terras era soturno e aterrador. Preocupado, entoou algumas palavras para certificar-se de que não perdera suas faculdades auditivas. O som saiu distorcido, grave, como se a freqüência da onda sonora perdesse intensidade com a atmosfera cerrada daquele escuro. Já obtivera efeito semelhante desacelerando a rotação dos discos de vinil, quando criança. Esmorecido, arrastava-se sempre na mesma direção, embora não conseguisse precisar se estava retornando ao ponto de partida, vítima de um perverso círculo. Em um ponto qualquer, avistou, no chão estéril, uma folha de caderno. Agachou-se com senil dificuldade e a pegou. Estava amarelada e sem nada escrito. Com os olhos vidrados, viu que, aos poucos, contornos escuros iam delineando-se na folha até que, por fim, algo fora desenhado. Não conseguiu identificar, de início, algum sentido naqueles rabiscos ilógicos, ainda que o negror daquelas terras obsoletas dificultasse tal tarefa. Repentinamente, o ininteligível esboço começou a cintilar em tons sulfúreos permitindo a Goth visualizar o que parecia um mapa. Assustado, deixou cair o papelete. De que valia teria um mapa naquela escuridão recôndita, pensava ele. Mesmo no chão, conseguiu divisar os contornos daquela reluzente carta geográfica. Percebeu que o início das coordenadas situa-se em um ponto marcado por um sinal semelhante a uma cruz. Duvidava que conseguisse enxergar algo naquele vácuo infernal, mesmo que se tratasse de um colossal crucifixo. Não tardou em contemplar no chão, ao lado da folha, uma marcação em cruz entalhada em vívida tinha vermelha. Não se ateve a maiores reflexões acerca de qual material era constituído aquele corante. Catou novamente as instruções que jaziam no chão e, determinado, passou a segui-las à risca. A cada dez minutos de caminhada, um novo estigma selado no infrutífero terreno assinalava que Goth seguia os comandos com exatidão.

O silêncio fora substituído por um agudo assovio produzido por intermitentes rajadas de vento. O contundido homem andava alquebrado, aturdido, espreitando os longínquos ângulos daquela imensidade escura em busca de alguma mórbida aparição. Nada surgia. Não obstante, quanto mais perto chegava do destino final, menos nítida ficavam as feições daquela carta; as outrora luzentes linhas sulfúreas agora pareciam estar apagando-se, bruxuleando em tons mortiços. Sem que findasse o trajeto, estancou amedrontado... A alguns metros de distância, um profundo negrume destacava-se no escuro. Parecia flutuar inerte, enquanto seu volume vacilava em proporções indefinidas. Tentando liberar o berro que estava aprisionado em sua garganta, vislumbrou a negra forma aglutinar-se em velocidade atroz. Um espectro de um ser humano definhando assomou na sua frente. Flutuava lentamente em seu encalço com os olhos friamente cerrados. Enquanto aproximava-se, Goth pode reparar, com espanto, que o fantasma assemelhava-se, sobremaneira, a um de seus colegas de trilha, Jean. A diáfana presença parou a alguns passos de distância e assim ficou por um bom tempo, possibilitando a Goth observar os lúgubres detalhes que a compunha. A face estava envolta por um emaranhado de enegrecidas capilares e os lábios eram de uma palidez doentia. Vestia um paletó rasgado em várias porções, deixando à mostra parte de seu translúcido peito cabeludo e de seus ombros esqueléticos. Feridas purulentas pontuavam o traje em cintilantes nódoas acastanhadas.

Inopinado, o ser fantasmagórico abriu os olhos... Com enfermiça expressão, encarou Goth, embora, no fundo, não houvesse maldade naquelas lôbregas escleróticas... Apenas desespero e dor!

Enquanto mexia seus mortos lábios em um tremelique convulso e mudo, Goth, ainda que assustado, arriscou trocar algumas palavras com a espectral presença:

- Jean? É você Jean? – a voz altamente distorcida pela atmosfera errante do local.

O fantasma gemeu.

- Está tudo bem Jean... Aqui é Goth, seu colega, lembra de mim?

Os olhos amarelados do definhado humano começaram a piscar. Ele estendeu um braço e apontou para o céu:

- Veja quantas estrelas... Amanhã vai ser um excelente dia para uma caminhada. – o tom de voz era fanhoso e, estranhamente, não sofria a mesma distorção do outro homem.

- Jean...

- Não!

-Mas...

-Não...

-Áh?

Não, não, nãããããããooo!

Em um movimento brusco o espectro atravessou Goth e arremeteu, violentamente, para a infinita escuridão. Seus urros guturais e plangentes morreram em soturnos ecos no desconhecido horizonte. O coração do rapaz latejava como uma locomotiva naquele instante.

Cerca de duzentos metros adiante, Goth viu-se, mais uma vez, encoberto por letal negrura. Os brilhantes traçados do mapa que o guiara até então se apagaram de vez, restando apenas um velho e embolorado papel. Uma lufada fria arrancou de sua mão o pergaminho, levando-o para longe. O solitário homem sentiu uma pontada de desespero ante o fracasso da sua investida em seguir as fulgurantes coordenadas. Andou mais alguns passos. Um barulho peculiar ressoou próximo. Troteou mais alguns metros e deparou-se, boquiaberto, com uma insólita praia. Pequenas ondas estouravam nas margens e ilhotas espumosas adensavam-se aqui e ali. Pisou na areia de cascalhos. Agachou-se, pegou um punhado dela e aproximou de seu campo de visão. Um tremor agudo acometeu seus nervos. Pedaços multiformes de ossos perfaziam o chão granuloso daquela mórbida paisagem. Goth deixou escapar, por entre os seus dedos, aqueles pedregulhos ósseos, que outrora pertenceram a algum ser vivente. Sem que o pavor abrandasse, caminhou, pé ante pé, até a borda do mar. Esticou um pé e apalpou a água. Estava quente, pastosa. Uma pequena onda eclodiu na beirada atingindo-o nos tornozelos que, imediatamente, ficaram manchados. Manchas vermelhas. Aterrorizado, deixou escapar um urro de repulsa. Como se escutasse as suas angústias, um tilintar doce e harmonioso ressonou sinistro. Aos poucos, um barulho metálico foi ganhando corpo até que se tornou evidente o chacoalho de um sino. Um funesto sino. Silhuetas escuras foram tomando forma em meio àquele oceano sangrento e, em poucos segundos, uma horrenda matilha espectral descortinou-se na sua frente. Abismado, recuou alguns passos. Todavia, o espetáculo fantasmagórico que despontava diante de seus olhos parecia hipnotizá-lo. Crianças mortas digladiavam-se no líquido vital, em meio a taciturnas gargalhadas. Corpos decompostos boiavam de bruços naquela vermelhidão enquanto um grupinho asqueroso de pirralhos tentava reanimá-los. De supetão, um dos cadáveres levantou a cabeça e fitou Goth profundamente. Lesmas serpenteavam por toda a extensão do falecido semblante. Atônito, Goth guinou o rosto para o lado, em uma tentativa de fingir que não percebera a mórbida atenção que lhe fora dirigida. Frustrada!

Uma voz grave e roufenha clamou:

- Junte-se a nós...

Em poucos segundos, os corpos flutuantes que salpicavam o oceano foram, também, levantando a cabeça. Caminhavam na direção do espavorido homem com embrutecida fisionomia.

Goth sentiu uma tontura dominar a sua sanidade, as pernas oscilaram, os joelhos dobraram e, em seguida, o corpo inteiro desfaleceu sob os clamores nefastos do sino.

Acordou, sabe-se lá quanto tempo depois, estirado no chão infecundo daquela vastidão preta. Uma cabeça felina lambia suas feridas abertas. Goth gritou. O gato-lagarto arreganhou os olhos e silvou como uma cobra. Mais uma vez, disparou para as trevas eternas sendo deglutido por provisórios buracos que se esgueiravam como bocas. O maltrapilho levou as mãos à cabeça, e num gesto demente, começou a girá-la de um lado para o outro. Passara a cogitar a possibilidade de definhar naquele subterrâneo esquecido. Prostrado, quase corcunda, ele vociferou como um insano faz quando preso por uma camisa de forças. Veias arroxeadas saltitavam de seu pescoço.

Abafando a histeria de Goth, por todos os cantos do mundo dos informes, risadas escarnecedoras ecoaram...

A continuar....

I parte - Sino dos Informes - As Árvores Mortas

II parte - Sino dos Informes - Mar de sangue

Leonardo Grasel
Enviado por Leonardo Grasel em 09/07/2008
Reeditado em 06/09/2008
Código do texto: T1072839
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