1996 - Vampire Strips

Firmemente abraçada a Saturno, Ângela chora.

Seus corpos, uma silhueta recortada contra a luz da lua.

A noite reflete com um brilho mortal os dentes caninos saltados, na boca do vampiro.

Alguém perto o bastante observa os olhos negros do rapaz, inchar de sangue.

A voz verdadeira do imortal se revelou fria e gutural.

- Calma garota, tudo vai terminar bem. – avisou o filho da noite.

Nesse momento enterrou os longos dentes na carne macia do pescoço da moça.

Tudo havia começado à apenas dois dias, mas parecia uma eternidade.

Ângela voltava para casa após uma balada regada a maconha, diversão muito rock´n´roll e vinho.

A jovem mora no centro velho de São Paulo e depois de sair da Led Slay (para quem não conhece, é uma famosa casa de rock na Zona Leste de Sampa) estava quase sozinha no ônibus.

Foi quando reparou nele pela primeira vez.

Meio chapada como estava o rapaz lhe parecia uma visão.

Sentado sobre uma mureta, os braços cruzados acima dos joelhos. Tinha um sorriso firme e enigmático no rosto.

Seu sobretudo balançava contra o vento, assim como seus cabelos incrivelmente lisos e escuros.

Os olhos eram negros como a noite, ou como os de um dobermann, pensaria ela meses depois.

Ele tinha traços indígenas, usava coturno velho e gasto, uma camiseta do Door´s e um bonito colar com enormes dentes.

Vendo-a no ônibus, seu sorriso aumentou e ele acenou.

Embalada por um ótimo “Black Dog” do “Zeppelin”, que rolava no seu walkman, Ângela sorri e responde ao cumprimento.

Talvez fosse algum conhecido do salão de rock.

Ela mal sabia, mas acabara de selar seu destino.

Aqueles olhos negros a seguiram até onde seu campo de visão alcançava.

Mesmo após ter sumido ao longe, a garota continuava com a sensação de que era observada.

Quinze minutos depois o ônibus para na Praça da Sé.

A garota ainda tinha a imagem do rapaz fresca na memória, como um instante preso no tempo.

Seguiu em direção a Praça da República, pois mora na Rua Pedro Américo, lateral à praça.

Era um longo “rolê” até o apartamento onde ela morava com o tio.

- “Não vejo a hora de comprar um carro!” – pensou esperançosamente.

Tinha uma poupança com R$ 1.700,00 e quando saísse de seu atual emprego de atendente no Macdonald´s, usaria a rescisão para comprar um usado.

- “MacDonald´s, sucursal do inferno!” – Ângela riu sozinha da piada de uma amiga que trabalhava com ela.

Estava cansada e com fome da larica.

Parou no único bar aberto que encontrou na Rua Líbero Badaró perto da Praça do Patriarca.

- Puta que roubo! Dois reais essa mixaria? – reclamou do preço do raquítico saco de batatas fritas.

O proprietário do bar estava mal-humorado.

- Vai querê ou não? – quis saber ele, rabugento.

- Vou. Dá um pacote...

Ângela sabia que não tinha outra opção. Seu tio devia ter devorado todo o jantar e ela ia demorar um tempão para preparar outra coisa qualquer.

Continuou no rumo de sua casa.

Naquela madrugada vazia o caminho parecia triste e sinistro.

Lamentou ter dado um pé na bunda de Mauricio, seu ex-namorado. Pelo menos ele sempre a acompanhava até em casa.

A moça apertou o passo.

Um pivete saído das sombras emparelhou com ela. Logo começou a ladainha.

- Aí tia. Dá um real pra eu comer!

- Não tenho.

O garoto não se deu por vencido.

- Orra tia! Eu vi cê saindo do bar, dá pelo menos as batata! – exigiu ele.

Normalmente Ângela não pararia por nada, mas ficou tão indignada com a ousadia que não pôde evitar parar e discutir com o malandrinho.

- Você é folgado hein?

O pivete era apenas uma distração.

Quando ela ia soltar um sonoro “Não”, um homem atravessou o cruzamento da Rua Conselheiro Crispiniano com a Barão de Itapetininga em frente ao Mappin, vindo em direção aos dois.

A moça engoliu em seco, aquele homem tinha uma faca na mão.

O saco de batatas caiu no chão e logo foi apanhado pelo garoto.

O homem atirou uma moeda de um real para o moleque.

- Toma. Agora sai fora. – ordenou o marginal.

- Falô gostosa! – despediu-se o pivete passando a mão na bunda dela.

O trombadinha saiu correndo com a boca cheia de batata chips, deixando-a a sós com o perigoso bandido.

- Dá sua grana mina!

- Calma, calma, por favor. Só tenho dez reais... – disse assustada.

Ele a mediu de cima a baixo.

- Vai andando. – ordenou.

Ângela o acompanhou tremendo muito, a faca encostada na barriga.

Enquanto era conduzida olhou-o de lado.

O marginal tinha o rosto áspero e coalhado de buracos de acne, mas arrepiante mesmo era a cicatriz que fendia seu rosto de alto a baixo.

Seu grosso lábio rasgado mantinha a boca sempre entreaberta, de modo que parecia um animal rosnando.

Suas sobrancelhas espessas uniam-se sobre dois olhos negros e ferozes, injetados de sangue.

Olhos frios e atentos. Nela e nas ruas em volta.

O criminoso a obrigou a entrar em um estacionamento por um furo em uma grade.

Sob ameaças, levou-a até os fundos de um prédio antigo na Rua Aurora.

Puxando Ângela bruscamente pelo braço gritou:

- Dá a carteira!

Tremendo e com lágrimas nos olhos, ela entregou silenciosamente.

Dentro havia onze reais, algumas moedas, alguns passes de ônibus e metrô.

Os documentos e todo o resto o ladrão ignorou, jogando o conteúdo da carteira no chão.

- É poco. Passa aí esse camisão! – berrou com impaciência.

A garota tirou o camisão preto.

O bandido tomou seu relógio Swatch, os anéis de latão e seus brincos e correntes; mas estava mesmo de olho era no contorno dos seios que apareciam sob a blusinha preta e justa, estampada com uma foto dos integrantes do Deep Purple.

Os olhos do homem brilharam perversamente.

- Aí mina. Agora sim cê tem coisa boa pra dar! – sorriu ele com maldade.

Aquele riso degenerado, onde faltava um dente enfureceu de tal modo Ângela, que ela esqueceu-se da faca.

Tentou chutar o saco dele.

Infelizmente para ela, o desgraçado foi mais rápido.

O máximo que ela conseguiu acertar foi sua perna.

Em resposta, levou um murro tão forte no rosto que desmaiou por alguns segundos.

Quando deu por si o maldito estava sobre ela.

Já tinha arrancado com a faca a alça direita da blusinha, deixando o alvo seio exposto.

Seu mamilo rosado estava dolorido, pois havia levado uma mordida no seio.

Com a mão esquerda o estuprador a prendia no chão, e com a outra mão tentava abrir o zíper da calça jeans preta dela.

O hálito podre lhe nauseava.

Com ódio extremo Ângela juntou suas forças, aplicando-lhe uma formidável mordida.

Arrancou um naco de carne dos lábios dele.

Após soltar um formidável grito, o ladrão deu um forte soco na boca da garota.

Tudo começou a girar e a moça perdeu os sentidos.

Notou apenas sua calça sendo violentamente arrancada enquanto ela balbuciava um fraco pedido de clemência.

Tudo virou escuridão.

Nas trevas em que se encontrou, parecia-lhe ter ouvido gritos e a sensação de flutuar. Como se estivesse sendo carregada.

Após um longo tempo sua consciência voltou lentamente.

Estava deitada sobre algo duro e frio, sentindo uma forte dor no rosto.

Com gosto de sangue na boca ela se lembra.

Ângela levanta bruscamente.

Estava deitada sobre uma lápide, cercada de túmulos e cruzes.

Não sabia em que pensar. Estava enjoada e totalmente desorientada.

- Eu tô morta? – perguntou para si mesma.

Estava angustiada, mas ao mesmo tempo sentia-se estranhamente aliviada.

- Não. Ainda não.

Uma voz suave bem próximo a ela.

Apertando bem os olhos a jovem enxerga o vulto de alguém entre as sombras de uma capela.

Quem quer que fosse sai de entre as trevas, aproximando-se.

A moça assusta-se, apertando contra o corpo uma velha jaqueta surrada.

- Ei mina! Olha meu sobretudo aí!

Ela parou de apertar a jaqueta e tornou a olhar em volta.

- Já não basta teu amiguinho ter rasgado minha camiseta? – reclamou o rapaz.

- Quem é você?

- O aprendiz do conde Drácula. – responde o jovem mal-humorado.

Após uma curta risadinha, Ângela pede desculpas.

- Onde eu estou? – quis saber a moça.

O jovem de longos cabelos negros olha em volta coçando a cabeça.

- Deixa ver... Cruzes, estátuas de anjos, túmulos... Cemitério da Consolação. Eu moro aqui perto...

Ela notou que as mãos do rapaz estavam cobertas de sangue seco, assim como a gola da camiseta preta do The Door´s.

- Você está machucado?

- Não.

Ela engoliu em seco.

- Você... Você matou o cara? – ela perguntou já sabendo a resposta.

- Bem, digamos que ele peitou alguém muito maior que ele...

O roqueiro tinha um sorriso maldoso no rosto.

Naquele momento Ângela já estava apaixonada.

- Qual seu nome?

- Saturno.

Ela estranhou o nome e quando ia perguntar se não era apelido, foi interrompida.

- Mina, desculpe cortar seu papo, mas eu preciso sair fora.

Ela ia pedir para ele ficar mais um pouco, porém ele se afastou rapidamente.

- Tchau! Tá amanhecendo e eu preciso ir para o meu buraco! – gritou de longe.

Ângela notou que ficara com algo dele.

- Ô meu! Olha seu jaleco!

- Fica com ele! É uma razão pra te procurar amanhã na Fofinho.

A Fofinho é uma antiga e conhecida casa de rock paulistana, que fica na Avenida Celso Garcia.

Aquela foi a cantada ideal. Ela estaria lá.

Em seguida Saturno sumiu entre os mausoléus.

- Que japonês estranho... – pensou ela.

Apesar de o rapaz ser índio, a absoluta falta de sol o deixou branco como um oriental.

Pulando o muro do cemitério, Ângela desceu a Rua da Consolação.

O sol frio de junho bateu em seu rosto, e ela se mostrava radiante mostrando, a todas as pessoas a felicidade por estar viva.

Mal sabia ela, mas escapara da morte duas vezes naquela noite.

Olhou seu relógio digital e viu a data:

19 de junho. Não esqueceria aquela data por nada.

Chegou à Praça da República por volta das cinco da manhã. Nem os bichos-grilo haviam chegado ainda.

Seu tio Lúcio deveria estar dormindo àquela hora.

Ele era um Hiponga duns quarenta e cinco anos, de ralos cabelos compridos e usava sempre uma camiseta de saco, daquelas que pareciam feitas de estopa.

Abriu a porta com cuidado, mas logo não se preocupou mais, pois sentiu o cheiro de incenso e ouviu uma fita da Janis Joplin tocando no som.

Ele estava sentado com as pernas cruzadas, pintando uma camiseta que venderia outro dia em uma feira de artesanato qualquer.

Fumava um fininho enquanto repetia a letra de “Flower in the sun”.

Na camiseta estava escrito “O ministério da saúde adverte, agitar rock pode fazer cair a cabeça”.

E num canto da camiseta um cartoon de um metaleiro agitando, e aos seus pés a cabeça caída com uma expressão espantada.

Realmente era engraçado e Ângela soltou uma risadinha.

- Opa! Se você riu então vai vender rapidinho!

O tio Lúcio sorriu e virou-se.

No momento em que viu as marcas dos murros que ela levou, seu sorriso desapareceu.

- O que aconteceu desta vez, meu?

Estava com as feições carrancudas.

Ela estava frita. Tinha brigado na Led Slay semanas antes, e tinha prometido não fazer mais isso.

Só que ela não podia contar a verdade, pois se o fizesse seu tio não a deixaria sair à noite por um bom tempo.

Seu tio a obrigou a limpar a casa inteira como castigo.

À tarde, após fumar um bando de fininhos, o humor do tio estava bem melhor.

- Aí Angel. Um tal de “ Oreia”, falou que vai rolar um som lá no Arthur Alvim. Vamo?

- Tô afim não tio. Vou encontrar um cara na “Fofo”.

O tio deu de ombros.

- Beleza. Qualquer coisa cê tem meu número! – avisou o hiponga mostrando o celular Startac muito moderno.

Começava a escurecer. Ângela desceu até o Parque Dom Pedro e tomou um ônibus que a deixou na porta do salão.

Foi até o bar da esquina e pediu uma garrafa de vinho, abraçou e cumprimentou alguns caras e minas conhecidos.

Depois entrou na Fofinho onde o Zé já tocava sua seleção de pauleras.

Agitou Ufo, Status Quo, Deep Purple e mais um monte de sons legais.

Agitou tudo o que gostava e mais.

Volta e meia descia, tomava uns gorós e falava como pessoal.

O tempo foi passando e nada do cara chegar.

- “Japôneis safado...” – pensou ela chateada.

Quando o salão fechou, a garota saiu meio desiludida pelo cara não ter aparecido.

Quando estava atravessando a rua em frente aos bombeiros para ir pegar o ônibus que a levaria até sua casa, ouviu uma voz conhecida atrás de si.

- Cuidou bem do meu sobretudo?

Ela virou-se sorridente, mas seu sorriso se desfez ao ver a aparência do jovem.

Estava muito abatido e cansado.

- Vamos dar uma volta. – Pediu Saturno.

Os dois saíram andando de mãos dadas pela Avenida Celso Garcia.

- Cê tá legal? O que aconteceu?

- Nada não. Meu dia foi meio... Difícil.

Ele não queria contar para ela que era um vampiro.

E a garota não podia saber que ele havia sido ferido por um caçador.

Estava dormindo em um casarão abandonado quando foi atacado.

O casarão era evitado por nóias e mendigos que tinham amor a vida. Ficava em uma rua próxima a Estação da Luz.

No canto mais afastado possível da claridade, cavou um profundo fosso que rodeou de cimento e placas de aço.

Uma pesadíssima tampa de cimento recheada de aço não permitia que nem um simples raio de luz penetrasse em seu lugar de descanso.

Mas aquele seu dia de sono não foi nem um pouco tranqüilo.

Alguém teve a ousadia de entrar em sua morada. Não eram os mendigos, nóias ou sem teto, pois todos sabiam que a morte morava naquela residência decaída.

Marretaram sua grossa tampa de cimento a manhã inteira.

À tarde haviam alcançado a chapa de aço.

Após algumas marretadas os indivíduos desistiram, deixando Saturno descansar um pouco.

Algumas horas antes do sol se pôr um barulho de maçarico cortando metal, deixou o vampiro apreensivo.

As marretadas recomeçaram com força.

O imortal estava de olhos bem abertos na escuridão. Esperava que eles não conseguissem quebrar a tampa antes do anoitecer.

O tempo passou voando e as marteladas começaram a rachar a tampa sobre ele.

O reboco fino caia sobre o rosto pálido de medo do filho da noite.

O Sol pôs-se.

A tampa danificada explode de dentro para fora e o índio salta sobre os operários.

Eles berram de medo, ao ver o rapaz sair de dentro de um túmulo.

Saturno lhes daria uma boa razão para ficarem mortalmente assustados.

O peão mais próximo ainda gritava quando sentiu uma coisa estranha nas mãos.

As duas estavam no chão, ainda agarradas ao cabo da marreta.

O jovem de cabelos negros levanta o afiado punhal manchado com o rubro líquido.

O homem embasbacado aproxima do rosto os cotos ensangüentados.

Não conseguiu acreditar no que viu.

Sua vida terminou nos instantes seguintes.

Segurando-o pelo ombro Saturno crava o punhal, repetidas vezes no alto de sua cabeça.

O companheiro do operário, vendo seu amigo ser assassinado larga a ferramenta.

Resolve fugir gritando por socorro.

Após alguns passos engasga sentindo a garganta seca.

A cabeça cai do alto de seu pescoço e quando cai no chão o olho dói na queda.

Ele vê de um ângulo privilegiado o vampiro fartar-se com seu sangue.

Segurava seu corpo de ponta cabeça. Uma torrente de sangue jorrava, lavando o pescoço e o peito do inumano.

A cabeça do operário morreu e o imortal chutou-a janela afora.

Outros dois pedreiros, encurralados na parte interna da casa não tiveram sorte diferente. Foram estripados e mortos em seqüência.

- “Alguém descobriu meu esconderijo.” “Vou precisar me mudar urgentemente.” – pensou ele um pouco zonzo.

Nem todo o sangue que consumira o ajudou a ficar mais alerta.

Teve um leve pressentimento, mas foi tarde demais.

Atacado por trás, saltou praticamente por instinto, ficando de ponta cabeça no teto.

Do alto dos seis metros de altura encara seu agressor nos olhos.

- O que você quer seu japonêis do caraio? – pergunta com desprezo.

No solo o mestiço oriental segurava uma espada com algo incrustado no cabo.

- Vampiro desgraçado!

O caçador tentou ataca-lo, mas foi com facilidade que Saturno pulou fora de seu alcance ficando do outro lado do imenso salão.

- Que bonitinho! Ele pensa que é um super herói japonêis!!

O imortal riu com gosto.

- Hoje você morre ser das trevas!

Ele correu em direção ao roqueiro de cabelos negros com a espada levantada.

- Cuidado pivete! Você não sabe o que está enfrentando...

A espada foi abaixada e o filho da noite desviou-se com facilidade.

- Sou um ente muito poderoso e AAAAAHH! – berrou o vampiro.

O fio da espada cortou superficialmente o peito dele, mas a dor do vampiro foi enorme.

A arma fez um ruído similar ao de metal incandescente mergulhado em água fria.

Saturno caiu para trás, tentou se levantar, porém a dor era tanta que o máximo que conseguiu foi ficar de joelhos.

A ferida em seu peito doía horrivelmente.

Com uma grande ânsia de vômito, o imortal baixou a cabeça.

- Vou matá-lo em nome de Deus, o Todo Poderoso.

O japonês levantou a espada, pronto para decapitá-lo.

Deveria ter sido mais rápido.

- Calaboca! – grunhiu o imortal.

Acertou o oriental com as costas da mão.

O golpe foi tão forte que ele foi atirado pelos ares caindo no outro extremo do aposento.

Na queda, derrubou algumas escoras de madeira e junto veio a parede envelhecida e parte do teto.

O nissei ficou soterrado nos destroços.

A espada caiu no chão a meio caminho dos dois combatentes.

Saturno levantou-se com dificuldade, a mão sobre o corte no peito.

Andou devagar como um idoso doente, indo se certificar que seu oponente estava morto.

Tentou pegar a espada, mas sua mão não agüentou o contato.

- “Uma espada santa... Que merda!” – pensou contrariado.

Chutou a espada longe com seu coturno gasto.

Resolveu procurar Ângela de qualquer jeito. Precisava dela e mesmo não querendo admitir para si mesmo, precisava de sangue...

Devagar caminhou rumo ao salão.

Encontrou-a quando ela saia da Fofinho Rock Club.

Quando Ângela o viu, tentou imaginar o que havia acontecido com ele.

Da última vez que o encontrara parecia tão confiante tão cheio de... vida.

Mas naquele momento parecia arrasado.

Os dois andavam sem rumo pela Celso Garcia.

Ela sentia-se segura e protegida ao lado de Saturno.

- Você é japonês?

Ele a olhou com estranheza e riu.

- Não. Sou índio. É que faz um tempão que eu não tomo sol...

Longe dali, no casarão abandonado, um gemido entre os escombros.

O misterioso oriental estava vivo.

- Ungh... Maldito vampiro. – diz ele levantando alguns pedaços de laje que estavam sobre si.

Saturno pegou as mãos da garota entre suas próprias mãos frias.

Ela não estranhou, pois era Junho.

- Preciso saber de uma coisa... – sussurrou o imortal.

- O que?

Ele a olhou profundamente nos olhos.

- Você será eternamente minha?

Ângela soltou uma risadinha tímida.

- Que tipo de pergunta é essa?

A moça parou de rir vendo o rosto sério do índio.

Com grande esforço o japonês saiu do meio dos destroços. Seus olhos puxados eram puro ódio.

Checou se não tinha nenhum ferimento profundo.

Pegou sua espada e saiu à caça do vampiro.

- Aonde você mora? – desconversou Ângela.

- Perto da estação da luz... Meu dia foi uma droga.

- Por quê? – quis saber a jovem.

- Martelaram minha casa o dia inteiro e quando saí ainda briguei com um cara!

Ela arregalou os olhos.

- Putz! Que droga! Mas você deu um pau nele né?

Saturno riu.

- Sim. Dei um pau nele.

Os dois iam andando na direção da Penha.

A Led Slay estava vazia àquela hora.

- Você gosta da lua?

- Acho linda! – disse a garota com olhar sonhador.

Ela olhou para o céu pela primeira vez aquela noite.

A lua girava redonda observando-os bem do alto.

- Quer vê-la mais de perto?

A pergunta surpreendeu a moça.

- Como assim? Você é astronauta? – riu.

Como resposta ele a puxou.

Os dois subiram a escada de um prédio.

Ângela ia à frente o imortal logo atrás.

O peito ferido parecia que ia explodir de dor.

Era com muito custo que ele disfarçava tudo da garota.

- “Que maldita espada era aquela?” – perguntava-se a todo o momento.

Sempre imaginara que fora o fogo e a luz do sol nenhuma outra coisa poderia feri-lo daquele jeito.

Foi quando se lembrou do facão benzido com que matou o vampiro que o trouxera ao mundo dos desmortos, há alguns séculos atrás.

Sua jaqueta de couro fechada escondia a dolorosa ferida dos olhos de Ângela.

A garota alcançou o alto primeiro e em seguida veio Saturno cambaleando.

Após alguns passos hesitantes desmaiou no alto do edifício.

A jovem roqueira deslumbrada como estava, não percebeu, continuando a admirar o céu estrelado.

Um céu limpo e incomum nas noites de São Paulo.

- Como é maravilhoso! Você não... – ela deixou de completar a frase no momento em que o viu caído sobre o braço esquerdo.

- AimeuDeus!

Ficou momentaneamente desesperada, porém logo agachou ao lado do vampiro e com esforço o virou para cima.

Passou sua mão delicada pelo rosto e testa frios do jovem de cabelos compridos e resolveu abrir a jaqueta dele para que pudesse respirar melhor.

Ângela gritou, quando viu o profundo corte no peito dele.

Espantada como estava nem reparou que não havia sangue.

A carne arroxeada abria-se como uma boca sem lábios.

Saturno acordou agarrando a mão da garota derrepente e ela gritou assustada.

- Meu! Cê precisa ir pro médico já!

Estava desesperada.

- Sei de que preciso. Sangue. Seu sangue.

Estava estranhamente calmo.

- O que! - Espantou-se a jovem.

- Sou um vampiro...

- Cara! Cê tá delirando. Preciso te levar no médico e...

Ela congelou ao vê-lo retirar um punhal.

- Olhe isso.

Com uma das mãos fez um profundo corte no braço esquerdo.

- Meu! Cê é louco?

Ela cobria o rosto sem querer acreditar no que via.

O filho da noite apenas mostrou o braço cortado.

A ferida não sangrava fechando lentamente.

Ângela emudeceu. O imortal ajoelhou-se com dificuldade, ficando cara a cara com ela.

- Toque-me. – ordenou ele com suavidade.

Não havia mais sinal do corte no braço dele.

Com sua mão fria Saturno agarrou a dela, guiando-a até seu coração morto.

Ângela a retirou com um grito curto ao notar que o órgão não batia.

- Ah meu Deus... – murmurou ela.

Os olhos da garota escorreram pesadas lágrimas.

- Menina... Eu te quero ao meu lado, mas não quero te forçar a nada.

Os olhos puxados dele transmitiam sinceridade.

- Eu... Eu não entendo isto é tão louco...

- Você quer ser minha companheira eterna?

Ela ficou chocada, pois ainda não tinha entendido as intenções dele.

- Mas... E meu tio? Meus amigos?

A moça recomeçou a chorar.

- Não vou mentir. Todos vão virar pó, viverão apenas em sua memória. Você nunca morrerá, não vai envelhecer...

- Eu... Não sei... – ela voltou a chorar.

Finalmente o peso da escolha a atingira em cheio.

- Se você não quer não lhe farei mal. Nunca mais voltará a me ver. Com o tempo começará a acreditar que eu era só um roqueiro maluco...

Foi com dificuldade que o índio se levantou.

Andou até a beira do prédio e olhou para baixo pronto para saltar.

Apesar de poder ler os pensamentos dela, não o fez.

Respeitava seu direito de escolha, pois era algo que lhe foi negado.

Olhou novamente para baixo. Era uma queda pequena de dez andares, nada que o mataria.

Caso quebrasse algum osso logo ficaria bom.

Apenas o maldito ferimento da espada parecia não fechar.

Precisava mesmo era de sangue, e se a garota não quisesse ser abraçada, acharia algum desgraçado que merecesse morrer.

Sabia que qualquer cachorro sarnento mataria sua fome por uma noite.

Estava quase deixando o corpo cair da beirada do edifício quando ouviu a voz dela.

- Eu... – sussurrou Ângela hesitante.

Era agora.

Saturno com os braços abertos preparava-se para saltar no vazio.

- Eu quero. – avisou decididamente.

O vampiro ficou tão espantado que quase caiu sem querer.

Rapidamente agachou-se ao lado da garota, seus olhos a fitavam com paixão.

- O que você disse?

Claro que a tinha ouvido, só queria confirmar.

- Eu quero ficar com você!

Ela o abraçou com força, as lágrimas escorrendo abundantemente de seus olhos ainda humanos.

Uma sombra subia furtivamente a escada do prédio, rumo ao alto onde os dois encontravam-se.

Saturno estava tão entretido com sua paixão que não notou a aproximação sorrateira.

Os dois se levantam e ele a Abraça com ternura, seus dentes cravam-se com carinho no delicado pescoço.

- Calma garota, tudo vai terminar bem. – avisou o filho da noite.

O sangue dela é doce e ele suga com volúpia.

Alguém próximo o bastante observa os olhos negros do rapaz, inchar de sangue.

Algo metálico atravessa o ar, vindo velozmente na direção deles.

Os olhos vermelhos do vampiro chegam a ver a lâmina. Tarde demais.

Ela se cravou em seu crânio. Acima do olho direito.

Saturno urra de ódio. Aquilo era demais!

O desgraçado do japonês caçador não havia morrido!

O imortal solta a jovem, avançando como um raio sobre o caçador de vampiros.

Com a mão direita arranca a faca cravada na cabeça.

O oriental também corre em direção ao ser da escuridão com algo arredondado nas mãos.

O filho da noite sacou seu punhal, e armado nas duas mãos tentou partir o nissei ao meio.

O japonês salta no último instante fugindo da fúria cega do vampiro e lhe atirando uma bexiga cheia de água.

A bexiga estourou lavando o rosto de Saturno com água benta.

- Arrrrgh!

Ele grita de agonia enquanto seu rosto do derrete como se tivesse sido mergulhado em ácido.

A água benzida carcomia seu rosto indígena.

Os ossos e dentes apareciam entre a carne que borbulhava e derretia.

O olho direito sumira, vazado pela ação corrosiva do líquido santificado.

Ângela começou a gritar vendo a aparência de seu amado.

- Estou aqui para protegê-la dessa abominação!

O caçador não havia percebido que ela estava com medo era dele.

O único olho inteiro do índio de longos cabelos negros lampejava de ódio.

Em um dos cantos do prédio o japonês abriu seu sobretudo mostrando a bela espada com um osso incrustado.

A mesma com que havia ferido Saturno horas antes.

O vampiro do outro lado do prédio atirou a faca em direção ao oriental.

Em um instante o nissei sacou a espada desviando a faca mortal que vinha em sua direção.

Ele era muito rápido para ser um humano normal.

- Vem me pegar Ack... Japoneis do caraio! – grunhiu o filho da noite.

Os dois avançaram um em direção ao outro.

Ângela assistia a tudo sem saber o que fazer.

Saturno corria com os braços cruzados sobre o peito.

O oriental com a espada levantada.

Os dois cruzaram seus golpes em frente à garota.

As lâminas atravessaram carne e ossos fazendo um terrível barulho de rasgado.

O vampiro gemeu de dor.

Os dois pararam um de costas para o outro.

A bela moça olhava seu amante imortal fixamente, esperando que este se mexesse.

As mãos do caçador estavam vazias.

Quando o nissei se vira, procura ver a extensão do ferimento de seu inimigo.

O imortal deixa cair o punhal. A espada atravessou seu corpo.

Em volta da ferida a carne borbulhava.

O vampiro procura os olhos de Ângela. Com as duas mãos segura o cabo da espada.

Saturno tomba para trás caindo pesadamente do alto do edifício.

A garota grita, estendendo a mão inutilmente.

Ela acabara de ver a morte de seu amado.

- Argh... – reclama o japonês.

Ela olha o caçador com perplexidade.

Então acontece.

O oriental engasga cospe sangue e seu corpo parte-se em dois.

Seu peito com os braços cai do alto do corpo já estrebuchando.

As pernas do nissei dobram-se lentamente.

O sangue saltando em jorros, formando uma grande poça.

A roqueira vomita muito vendo aquilo.

Recuperada após alguns minutos ela desce cambaleando.

Estava quase em estado de choque.

Chegando ao nível da rua buscou o corpo de seu amado, mas este desaparecera misteriosamente.

Será que estava vivo? Ou levaram seu corpo enquanto ela estava no alto do prédio?

Sem saber o porquê Ângela esperou o retorno de Saturno.

Sentia dentro de si que ele estava vivo.

Os dias viraram meses.

O calor toma conta das noites.

Ela mal sai de casa. Deixando o tio Lúcio e seus amigos mais próximos preocupados.

Esta noite, deitada nua em sua cama, a janela abre-se deixando a brisa noturna entrar.

Algo entra junto com a brisa.

Uma figura sombria que se esconde no canto do quarto.

Ângela dorme um sono sem sonhos.

Uma mão fria acaricia seu corpo.

O beijo da morte toca seus lábios de leve e ela abre os olhos maravilhada.

A figura encapuzada não lhe dá medo.

Na verdade ela ânsia pelo que virá.

As sombras da noite escondem o rosto dilacerado, com pedaços dos ossos aparecendo entre a carne recém-formada.

Os olhos negros do vampiro percorrem seu corpo alvo com avidez.

Sua boca ressequida busca carinhosamente o pescoço pulsante.

Ela sente uma pontada de dor no instante em que seu jovem pescoço é perfurado.

Uma única lágrima escorre de seu olho.

Sentindo o corpo frio do vampiro sobre o seu, ela sente-se imensamente completa.

O imortal sussurra em seus ouvidos.

- Vamos? – pergunta delicadamente.

Com a escuridão quente tomando seu corpo Ângela responde:

- Sim! Sou toda sua!

Os dois saltam para a noite que os aguarda ansiosamente.

Fim.

Humberto Lima
Enviado por Humberto Lima em 29/06/2008
Código do texto: T1057539
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