A Volta do Cão
Eu tinha apenas oito anos. Era o dia de meu aniversário e recordo-me claramente de como estava ansioso para descobrir o que ganharia de presente. Cada ano era uma surpresa nova. Mamãe preparava um bolo de chocolate com cobertura de leite condensado e, depois de celebradas os cânticos tradicionais, papai aparecia com uma caixa, geralmente muito maior que o objeto que ela guarnecia. Naquele ano, ele aproximou-se com maior cautela do que a de costume. Logo imaginei que se tratava de algo a base de vidro ou porcelana, mas um barulho estranho na lateral do recipiente de papelão chamou minha atenção. Era um ruído descompassado, agônico como se o exíguo espaço ofertado pelo receptáculo estivesse sufocando o misterioso presente. Assim que puxei um dos laços da fita de seda azul que envolvia a caixa, um ladrido agudo reverberou abafado e, com indizível regozijo, percebi que se tratava de um cachorro. Meu irmão mais velho, Nicolas e minha irmãzinha caçula, Jeanne, juntaram-se a mim enquanto eu deparava-me pela primeira vez com um lindo filhote de boxer, de focinho todo marrom e resto do corpo malhado, que eu batizei com o nome de Rimbaud (pronuncia-se “rambô”). Foi amor canídeo à primeira vista!
O jeito abobalhado e o olhar carente do bicho conquistaram a todos de forma célere. Para onde eu ia, o fiel cachorro seguia atrás, como uma subserviente sombra disforme. Com o tempo, ensinei-o alguns truques e divertia-me repetindo-los nas tépidas manhãs de sábado.
Em um âmbar fim tarde, fomos, os três irmãos, ao parque central da cidade, acompanhados do vivaz Rimbaud. Ainda lembro-me de Jeanne cantarolando baixinho, enquanto brincava com uma bola de plástico rosa:
- Coelhinho saltador, com você quero brincar, aprender fazer Qui, Qui, zip, zip, zá.
- Cala boca menina – repreendeu Nicolas, olhando-a firmemente com seus densos olhos negros.
- Deixa ela em paz Nico, senão vou falar tudo pro papai – adverti, em tom vacilante.
- Èéé. Tudo pro papai. – repetiu animadamente minha irmãzinha, enquanto pálidos raios de sol luziam em seus cabelos dourados.
- AU AU AU.
A derradeira manifestação fez com que desatássemos a rir convulsivamente enquanto Rimbaud ladrava desatinado. Jeanne botava as delicadas mãozinhas na barriga, fechava seus copiosos olhos azuis e ficava vermelha como uma pimenta. O primogênito escancarava a boca e emitia um som estridente, semelhante ao crocitar de uma águia. Bons tempos!
Logo que chegamos ao parque. atirei um disco amarelo, que trouxera junto, para longe. Rimbaud disparou de pronto, saltitando energicamente em busca do objeto que voejava. Em um ponto a cerca de cinqüenta metros de onde estávamos, vimos, com desespero e angústia, o cachorro sumir no chão, quando aterrisava do último salto. Imediatamente, eu e Nico pusemo-nos a correr, deixando Jeanne para trás, assustada e chorosa. Assim que chegamos, constatamos a presença de algo totalmente inusitado e aterrador. Uma fissura em forma de arco, escura, silenciosa, infinita descortinava-se como uma chaga diante de nossos olhos e não havia sinal algum da presença de meu estimado cachorro. Consternado, entreguei-me ao pranto, acompanhado de minha irmã que recém havia chego. Nicolas permanecia taciturno. De súbito, um leve tremor na terra fez com que eu perdesse o equilíbrio e cambaleasse na borda da fenda. Meu irmão segurou-me com os dois braços e jogou-se para trás, esbarrando em Jeanne e fazendo com que nós três caíssemos amontoados. Levantei-me com esforço e arrastei-me, ainda desacreditado, até o fatídico sulco. Ele havia desaparecido... A terra havia engolido Rimbaud!
Voltamos para casa, estarrecidos e desolados, e decidimos não contar o que aconteceu a ninguém. Mentimos para papai que Rimbaud havia fugido e não conseguíramos mais reavê-lo. Não obstante, um cruel lampejo de esperança ainda persistia aceso, preconizando o impossível retorno do engolfado animal.
Dois meses de melancolia sobrevieram...
Estávamos jantando na cozinha quando o barulho do sino que ficava suspenso na porta do canil sibilou soturno, quebrando o silêncio sepulcral que passara a grassar nas refeições de minha família. Os olhos azuis de Jeanne arregalaram-se, ela abriu um sorrisinho e disse:
- Rimbaud voltô. Ebaa!
Papai baixou a cabeça e murmurou.
- Deve ser só o vento querida.
Mas antes que alguém mais oferecesse alguma explicação para o ocorrido, Rimbaud meteu o focinho pela portinhola móbil na parte inferior do umbral e latiu animado. Mamãe gritou e começou a bater palmas; eu e Nicolas entreolhamo-nos boquiabertos; Jeanne já acariciava o focinho quadrangular do cachorro, recebendo em troca, longas e úmidas lambidas. Papai, o mais comedido, foi o primeiro a reparar:
- Vejam – e apontou o dedo para a têmpora do boxer – Que marca estranha é aquela?
Olhei de soslaio e avistei uma mancha peculiar, semelhante a piche, gravada na cabeça do cachorro. Tinha algo de estranho e sinistro naquela nódoa que me dava inexplicáveis calafrios! Mamãe tentou limpar o sinal de todos os jeitos, mas a mácula persistia inexorável nos pelos de Rimbaud.
Aos poucos, fomo-nos acostumando novamente à presença de nosso querido animal. Embora ele não soubesse mais fazer os truques que tanto me empenhara em ensiná-lo, continuava dócil como outrora. Eu e Nicolas não comentávamos sobre o quão impossível era Rimbaud estar de volta; simplesmente ignorávamos o evento do parque como se nunca houvesse ocorrido. Um único fato ainda me perturbava: o estigma na lateral do crânio do cachorro parecia transmudar-se, esboçar traços; embora ainda ininteligíveis.
Em uma prateada noite de sexta-feira, papai chamou Nicolas e lhe avisou:
- Hoje eu e sua mãe vamos à casa de alguns amigos e vou deixar você como responsável pelos seus irmãos. Olha lá hein!
- Sim senhor – respondeu ele, tentando esconder o júbilo que brotava em suas vísceras.
Assim que o Honda abandonou a garagem, o primogênito bateu com a colher em uma xícara de café e gesticulou para que eu e Jeanne nos perfilássemos como soldados diante do general.
- Hoje papai deixou a casa sobre meus comandos! Tudo que eu disser deve ser obedecido sob pena de castigo. Entenderam?
- Sim – respondemos em uníssono.
- Onde está Rimbaud?
Eu e Jeanne meneamos negativamente a cabeça.
- Vão procurá-lo – ordenou severamente meu irmão.
Sem pensar, Jeanne arremeteu aos fundos da casa. Antes que eu pudesse, também, executar o comando, um ganido terrível seguido de um grito estridente e pavoroso irrompeu mortal. Silêncio se fez.
Nicolas e eu entreolhamo-nos com inefável horror. Caminhamos lentamente até a churrasqueira e divisamos algo que ainda me atormenta em perversas visitas oníricas. Rimbaud estava prostrado sobre o delicado corpo de minha irmãzinha. Mordiscava-lhe o lívido pescoço, maculado por viscosas manchas escarlates que escorriam e empoçavam o chão. Deixei escapar um suspiro de medo atraindo, prontamente, a atenção da fera. A criatura fitou-nos com olhos coléricos e pude perceber que a mancha na sua cabeça cintilava em tons ígneos. Apertei a visão e vislumbrei um mordaz tridente entalhado em contornos nítidos na sua têmpora. Na fronte, veias túrgidas e azuladas despontavam. O cão arreganhou a boca e deixou um rosnado gutural evadir-se por entre os caninos profusos. O terror tornou-se maior que a vontade de salvar a pequenina Jeanne e, sem hesitar, eu e meu irmão desatamos a correr como alucinados para o interior da casa. Nicolas fechou a porta da cozinha, assim que entramos e, segundos depois, um baque estúpido e seco eclodiu na mesma. O monstro enfiou a cabeça pela portinhola e passou a retorcê-la erraticamente, em meio a um ululante espetáculo. Úlceras purulentas deterioravam-lhe a pele.
Inopinado, o cão recuou ao pátio. Ouviram-se mortiços passos ao redor da casa...
Silêncio.
Permanecemos horas imersos em abissal agonia até que meus pais finalmente chegassem. A coisa havia sumido, ou talvez voltado para o seu misterioso covil...
Sei que a Terra regurgitou das entranhas do mundo algo que, definitivamente, não era meu fidedigno Rimbaud!
Conto publicado na antologia Caminhos do Medo, da Andross Editora.