Tema o Deus da Podridão

- Pai, tem um carrinho de plástico no meio do lixo!

- Sai de cima dessa sujeira, menina!

Todo dia era a mesma história. Letícia, uma menina de cinco anos, adorava brincar no lixo, sabe Deus o motivo. Quando voltava da escolinha ia direto para o amontoado de entulhos e destroços para se divertir, e seu pai, que ia buscá-la a pé, todo santo dia precisava repreendê-la.

Uma jovem senhora que também tinha uma filha peralta, vizinha deste pacato homem, recomendou-lhe o seguinte: “quando sua filha for para cima daquela sujeira, diga a ela que o Monstro do Lixo vive debaixo daquelas latas e sacos, que rapidinho ela vai parar de querer brincar ali”. Ao que parecia, a lenda do Monstro do Lixo era antiga e bem divulgada entre as crianças daquele bairro – porém, por ser novo na cidade, o jovem pai solteiro ainda não conhecia muita coisa, nem sabia onde ficava o indispensável bar de esquina daquele lugar.

Naquela encruzilhada onde ficava o lixão, morava um senhor ranzinza chamado Armando, que costumava ir dormir bem cedo, lá pelas cinco horas da tarde. Ele residia em uma casinha decrépita bem próxima àquelas dunas de detritos, mas parecia resistir bem ao odor de dejeção que dali despontava. O que ele não tolerava eram vozearias e badernas em frente sua casa – e, há muito, não conseguia dormir tranquilamente com os gritos de um pai que mandava sua filha sair da sujeira, bem em frente ao seu domicílio.

Certo dia, voltando da escolinha, Letícia mergulhou nos sacos de lixo fedorentos antes que o pai pudesse lhe admoestar. Porém, o homem prendeu a respiração e lançou um brado bem forte, para a filha ao longe ouvi-lo: “Saia daí! O Monstro do Lixo vai pegar você, minha filha!”. A menina olhou para trás e para os lados, constatou que não havia nada ali além de mais sacos de lixo, e deu de ombros. Ignorou completamente as ameaças do pai.

Espreitando o jovem pai, aquele velho rabugento do Armando ficou ali, em cima do muro, mentalmente condenando a falta de educação do homem. Se tivesse um revólver sacaria ali mesmo, e explodiria os miolos daquele babaca escandaloso. E foi assim, imerso em pensamentos violentos, que Armando arquitetou um plano para acabar com aquilo. Finalmente, dormiria em paz.

Às quatro e meia da tarde seguinte, uma sexta-feira, o velho morador do barraco próximo ao lixão escondeu-se atrás de uma imensa montanha de ciscos. O fedor era insuportável, mas felizmente seu olfato já não estava lá essas coisas. Escondido atrás de um barril apodrecido, Armando aguardou a maldita menininha atentada que, de uma vez por todas, aprenderia a temer o Deus da Podridão.

Ela apareceu quando o sol estava se pondo. E como já era de praxe, Letícia se jogou na sujeira enquanto o pai a censurava. Neste momento Armando saiu de seu esconderijo, furtivamente, e de súbito agarrou a menina pelos braços arrastando-a para dentro daquele pandemônio de imundície, sem expor a própria silhueta.

Horrorizado, o pai da menina gritou por socorro, e se projetou para o lixão desesperadamente, a fim de resgatar a filha. Algum maníaco estava tentando roubar a sua filhinha, e ele não deixaria isso barato. Sacou a pistola minúscula que carregava dentro do paletó, e avançou, usando o braço esquerdo e as pernas para remover todo aquele lixo entulhado de seu caminho.

Próximo a uma grade que divisava o entulho e o campo de futebol, estava um velho estrangulando Letícia. Surpreso, Armando soltou a menina, levantou, e tentou fugir pulando os obstáculos, mas era tarde demais. Levou dois tiros na cabeça. O velho caiu flacidamente sobre um aglomerado de papelões, já morto, salpicando sangue para todos os lados.

- Pronto, filha. Está tudo bem – disse o jovem homem, abraçando Letícia.

- Esse era o Monstro do Lixo, papai?

- Não, filha. Esse era só um velho maldoso. Mas ele nunca mais vai pegar criancinhas...

O ataque de Armando havia sido traumático, mas Letícia um dia esqueceria. Este tipo de coisa as crianças esquecem. Mas havia uma coisa de que ela jamais se esqueceria. Abraçada ao pai, apenas a menina de cinco anos de idade pôde ver, na rua que ficara deserta após os disparos, um vulto negro colossal se deslocar com rapidez por entre as colunas de lixo. O espectro demoníaco a fitou com olhos brancos como marfim, emitiu um ruído baixo de consternação, e desapareceu.

Diego Risan
Enviado por Diego Risan em 26/06/2008
Reeditado em 26/06/2008
Código do texto: T1052526