O Majestoso Piano de Cauda

Augusto era um adolescente com problemas mentais. Era autista, do nível mais grave, daqueles que vivem em seu próprio mundo. Hoje em dia me pergunto se não era preferível compartilhar desta dádiva, induzir em mim mesmo esse tipo de moléstia mental, para que não mais me lembrasse do efêmero dia em que estive na mansão onde Augusto, diariamente, arrancava estranhas notas de seu piano de cauda.

Ao passar pelo imenso portão do casarão eu já estranhei. Uma armação colossal de ferro que ostentava, meeiro, cordas de aço penduradas em lanças pontiagudas com alcatruzes dourados representando símbolos de proteção. Imediatamente, arquitetei um plano para ganhar algum dinheiro com aquilo.

Liguei do meu celular para uns homens que costumavam rondar meu bairro furtando jóias e carros dos moradores. Eu os conhecia desde criança, e confesso que algumas vezes até cheguei a participar de alguns crimes que a gangue cometia. Naquele momento, em frente à portentosa mansão, imaginei que aqueles adornos dourados pendurados com desleixo na entrada do jardim não fariam nenhuma falta àquela família. Sendo assim, combinei com os criminosos para que eles chegassem à noite e levassem as jóias, enquanto eu tiraria a atenção de quem pudesse destruir nosso plano.

Eu era o encanador mais famoso do bairro. Quando soube que o magnata Dário Mendonça me convocou para consertar o encanamento de uma cozinha de sua casa, aceitei o trabalho de imediato. Mas ao entrar na luxuosa residência, o que me impressionou não foram as riquezas, móveis importados e quadros valiosos do gigantesco salão central – e sim, um pianista de olhar vago que reproduzia canções fabulosas em seu piano brilhante, recém envernizado.

- É uma bela canção – disse eu, sem saber ainda que o menino sofria de determinado retardamento mental – é Mozart, não é?

O rapaz, ainda digitando com habilidade as teclas do instrumento, fitou-me friamente, com olhos injetados, e disse: - É uma música desprezível. Mas se o destino quiser, tocarei ainda hoje a mais perfeita melodia, composta pelas mais belas criaturas abismais...

- Como disse? – confuso perguntei, mas antes que Augusto pudesse responder-me, o homem que parecia ser o pai do moço apareceu, e por algum motivo, desconhecido pra mim, tentou tirar-me dali rapidamente.

Como se não tivesse entendido a situação, falei com o dono da casa, Dário: - O seu filho é um excelente pianista. Ele deve ter um professor de grande renome.

- Ele já nasceu aprendendo a fazer isso – disse Dário, secamente – Agora vou lhe mostrar o seu serviço. E peço, por obséquio, que o senhor não fale mais com meu filho. Nunca mais!

Achei estranha a atitude de Dário, mas como sempre fui um sujeito simples imaginei que aquele chilique era mais uma excentricidade que os milionários de berço cismam em colecionar. Além do mais, com este tipo de aversão direcionada a mim, meu bom senso desapareceu completamente, e eu fiquei convencido de que roubar aquelas jóias penduras do portão da casa era a melhor atitude a se fazer.

A tarefa era laboriosa, e por isso acabei ficando lá na mansão até à noite. Não que eu seja um bombeiro hidráulico incompetente – ao contrário, terminei o serviço antes do crepúsculo, mas para executar o pequeno furto o qual planejei precisaria ficar lá mais algumas horas, até acionar meus comparsas por telefone.

Foi isso que fiz, ali pelas nove horas da noite. Os bandidos disseram que iam chegar em meia-hora, e cumpriram com o prometido. Naquela fria noite de agosto os homens vieram, vestidos de preto, analisaram de longe o valor que as peças metálicas dando sopa no portão deveriam custar, e surrupiaram os brasões de ouro sem nenhum tipo de empecilho ou contratempo. Da janela, observei a ação, e achei aquilo tudo tão fácil que logo senti que devia haver alguma coisa errada.

Sim, alguma coisa estava fora dos eixos. A noite, antes fria mas de céu aberto, foi coberta de forma quase sobrenatural por uma estranha névoa negra, assim que os assaltantes entraram em um automóvel preto e sumiram no horizonte da estrada. Da sala de estar vinham notas musicais esmeras, de tão horrendo agouro, que cominou em mim pensamentos mais mortificantes do que se eu ouvisse a marcha fúnebre dentro de minha mente. Atrás de mim, na escuridão do extenso corredor que dava para os outros cômodos da casa, senti uma presença alocar-se com ódio. Aquela coisa queria me atacar.

Volvi com um cano de PVC nas mãos, encarando o espectro que me espreitava. Era Dário, com um semblante arrasado, densas olheiras enegrecidas e cabelos despenteados. “O que você fez...” disse o homem, enquanto se dirigia lentamente ao faqueiro de madeira sobre a pia da cozinha.

- Senhor Dário, não faça isso. Eu tenho um cano pesado aqui em minhas mãos. Não se aproxime.

De fato, o homem não se aproximou. Empunhou a mais afiada faca do conjunto, e abriu uma punção no próprio pescoço, exaurindo grandes quantidades de sangue antes de tombar entorpecido no chão ladrilhado.

Eu precisava fugir, imediatamente. Joguei o cano no chão e adentrei o corredor submerso em mortalha de escuridão, com as mãos para frente para não dar de cara com a parede. A melodia demoníaca ainda passeava escarnecida por cada cômodo do imenso domicílio. Por algum motivo – sexto sentido ou qualquer outro efeito que prefiro não cogitar – percebi, antes mesmo de entrar na sala de estar, que me depararia com a maior atrocidade nunca antes vista por mim. Um pesadelo que jamais me deixaria descansar em paz estava lá, e eu me lembraria daquilo até após minha morte.

Não era Augusto que tocava o piano agora, mas o próprio diabo. Branco e sem pêlos no rosto, a divindade virou a cabeça, contorcendo o pescoço de forma incomum, e fitou-me com gigantescos olhos roxos e úmidos, antes de sorrir exibindo uma arcada dentária composta apenas por presas caninas. Do interior do majestoso instrumento, saíam aziagos vultos embaçados, que rodopiavam pelo teto emitindo ruídos similares a orações de algum idioma ímpio de tribos ancestrais.

Não posso, de nenhuma maneira, mensurar o horror que contemplei naquele momento. Por motivos desconhecidos por mim, eu e meus amigos rompemos o lacre que mantinha a santa paz naquele recinto ao furtar aquelas estranhas peças de grande valor penduradas no portão. Por nossa culpa, um mal transcendente foi desperto e, por esse motivo, não consigo dormir com tranqüilidade há mais de cinqüenta noites seguidas. Neste momento estou deitado em meu leito, esquelético e desnutrido, esperando que meu falecimento seja menos tormentoso que as soturnas almas que contemplei naquele fatídico dia.

Ouvi dizer que o físico Albert Einstein, certa vez, fez uma anotação de tal complexidade em seu caderno de notas, que concluiu que a humanidade não estava pronta para receber aquele tipo de revelação. Eu, sem querer me comparar ao grande cientista, faço minhas as palavras dele, ao dizer que os seres humanos não estão preparados para compreender os eventos ocorridos nos próximos minutos em que, inerte, observei grandes revelações feitas pelos espíritos que evadiram do interior do piano de Augusto.

Recomendo ao leitor que se aventurou em decodificar essas poucas linhas que tome todo tipo de atitude de precaução ao ir se deitar esta noite. Faça orações e pendure um crucifixo sobre sua cama. Talvez você não consiga dormir – ou pior – talvez o demônio de pele lisa que apareceu para mim brote em seus sonhos com as mesmas revelações nefandas que me foram abonadas naquela noite invernal de agosto.

Agora, se além disso, você ouvir as notas nauseabundas da mais complexa canção composta pelas forças das trevas, entregue sua alma para Deus, e implore pela salvação.

Diego Risan
Enviado por Diego Risan em 26/06/2008
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