Sino dos Informes - As Árvores Mortas
Ainda trôpego, Goth checou seu relógio de pulso. O visor oscilava entre números improváveis atestando a fragilidade do mecanismo daquele aparato. A troca de mundos fora fatal para o Tecnhos que agora vacilava ante a dimensão corpórea. Um débil raio de luz, subitamente, entrou pela fresta da veneziana. O homem de vestes puídas apoiou uma mão na pilastra da sala e esboçou um tênue sorriso. Não estava mais nas trevas, na negritude opaca que permeava o mundo insólito dos informes. Não obstante, parte de sua mente permanecia imersa em um profundo estupor, como se o perigo ainda estivesse presente. Um doce tilintar ressoou distante. Goth tentou manter a calma, mas, como sopros fantasmagóricos, um zunido de estática despontou pavoroso. Sobressaltado, ele olhou por cima do ombro e percebeu que a tela da TV emitia chuviscos disformes que, aos poucos, ganhavam feições espectrais, semelhantes às que contemplara no mundo incorpóreo. Com os olhos fortemente cerrados, disparou em direção à porta de madeira maciça que levava ao pátio da casa. Sem hesitar, ele girou a chave com um acalentador click e abriu a porta, revelando uma pálida abóbada celeste, mas, antes que tencionasse o primeiro passo, uma força invisível projetou o seu corpo, com descomunal violência, contra o assoalho de madeira. A entrada tornou a ocultar, com um baque surdo, a vida terrena que jazia na parte de fora da casa. O homem sentiu parte de seu corpo adormecer, abriu os olhos cautelosamente e levou uma mão, pontilhada por pequenas chagas avermelhadas, à testa. A sua noção de realidade parecia distorcer-se, como se padecesse de algum veemente distúrbio cognitivo. As cores, antes vívidas, que imbuíam os móveis de sua sala, pareciam adquirir tons mais escuros, lúgubres e vórtices febris transformavam tudo em um imenso espiral, como se estivesse dentro de algum macabro ciclone. A dormência espraiou-se do epicentro para o resto do seu corpo e, segundos depois, sua consciência cedeu ao espetáculo virtual que parecia consumi-la.
Acordou castigado por pequenos pedregulhos que arranhavam suas costas. Receoso, abriu uma pestana. Sentia medo do que poderia encontrar. Má idéia! Uma imensidão escura descortinou-se diante de sua retina. Embora não pudesse precisar quão longínquo era aquele vale inóspito, intuía que fosse algo bem próximo do infinito. Vagueando perdido, aos poucos, sua visão foi acostumando-se ao intenso negror. Divisou um conjunto isolado de árvores estéreis poucos metros a sua frente. Deu alguns passos. Um pavor imensurável apoderou-se de suas entranhas Tinha a inexplicável e crescente sensação de que algo o espreitava maliciosamente. Girou no calcanhar com agilidade e perscrutou, com aflitiva atenção, os segredos daquela escuridão sem fim. Não encontrou nada. Apenas um silêncio apocalíptico e pressagioso. Volveu sua atenção ao lânguido complexo arbóreo. De forma sinistra, parecia mais distante, embora não pudesse ter certeza. Aturdido, fitou o relógio de pulso. O utensílio paralisara em um horário qualquer. Engoliu em seco e retomou novamente a caminhada. Não obstante, após algum tempo, constatou, com letal desespero, que, a cada passada que dava, a fúnebre vegetação de galhos retorcidos parecia, também, distanciar um passo, como se ele estivesse galgando em direção a um terrível espelho. Estancou amedrontado. Mirou o chão infecundo em que jaziam os seus pés e viu, por entre rachaduras, que lesmas e outros indefiníveis insetos irrompiam obscenamente. Sentiu um abrupto desejo de vomitar, mas conteve-se. Alguma coisa estava errada. Apertou a visão. Uma esfera vermelha cintilava distante no meio daquele vale abissal e sombrio. Goth tentou se mover, deslocar-se para longe daquela coisa que flutuava em seu encalço, embora os músculos não mais respondessem aos seus comandos. No meio do caminho, a bola passou a bruxulear um vermelho menos intenso até que, por fim, apagou-se. Trevas. Goth sentia-se como uma criança dentro de um trem-fantasma. Inesperado, um vulto disforme, mais escuro que a própria escuridão, assomou alguns passos a sua frente. Viu que, enquanto a silhueta aproximava-se, seus contornos vacilavam erraticamente, como uma negra ameba. De supetão, a mancha escura ganhou forma diante de seus olhos e, do vazio, brotou uma anomalia andante. Uma colossal cabeça de gato ocupava um corpo que deveria pertencer a um lagarto. Movia-se serpenteando tal qual o réptil embora miasse como um genuíno felino. Sem preocupar-se com a presença do estupefato homem, a aberração se pôs a devorar os sórdidos insetos que brotavam das fissuras. Goth, evitando tal onírica presença, desviou os olhos para as inférteis árvores que jaziam no inexorável escuro. Uma mortiça aura parecia pairar sobre as mesmas, conferindo-lhas um aspecto etéreo.
Na hedionda cadência daquele vale, um doce tilintar eclodiu remoto e misterioso. Pulsantes decibéis, de algum perverso sino, passaram a ecoar, abjetamente, por todos os cantos da vastidão escura, tornando-se quase ensurdecedores. A mutação levantou sua cabeça felina, olhou para Goth com suas copiosas iris amarelas e arremeteu para longe, sendo engolida por malditas bocas que esgueiravam-se naquele inferno preto. O homem sentiu suas pernas esmorecerem ante tão inusitada cena. Inopinadamente, o sino cessou, restando, apenas, soturnos ecos que morriam no desconhecido horizonte. Mas, antes mesmo que o silêncio voltasse a reinar, uma gutural gargalhada explodiu. No inanimado arvoredo, o espectro de uma criança pendulava em um galho retorcido. Ela abriu um enigmático sorriso, revelando mandíbulas desdentadas, e, em seguida, contorceu seu semblante em um esgar malévolo. Mais risadas. Acometido por brutal pavor, o homem desatou a correr como nunca, chorando, extravasando a agonia que quase o sufocava. Risadas sinistras pareciam vir de todos os cantos agora. Um pedregulho afunilado, a cerca de duzentos metros de onde estava, transpôs a delgada sola de seu sapato e, desequilibrado, ele desabou no árido chão.
Passou a mão no rosto. Um líquido viscoso escorria pelo mesmo. Sangue. Levantou o braço para retirar o excesso do líquido vital da face, mas, antes que o membro chegasse ao seu destino, ele percebeu que feridas profundas maculavam toda a sua inteireza. Seu coração espancou o peito. Não se lembrava onde adquirira tantos ferimentos. Naquele mundo paralelo, sua memória parecia operar em vibrações debilitadas. De súbito, uma lufada fria o despertou de seus devaneios. Uma música peculiar começara a ressonar dentro de uma bolha túrgida e escura que parecia flutuar em sua frente. Sem que seu raciocínio produzisse algum lampejo de lógica, a bolha estourou e um tétrico parque de diversões assentou-se no verminoso chão. Almas desgarradas flutuavam em torno dos brinquedos, satisfeitas e despreocupadas. Espectros de humanos em decomposição assustavam uma dupla de menininhas incorpóreas. Um palhaço espectral divertia o público com cintilantes úlceras que salpicavam sua proeminente barriga. Descontrolado, Goth deixou escapar um esganiçado grito de repulsa, tornando-se, instantaneamente, a atração principal daquele circo de horrores. Olhos ávidos e mortos o espreitaram com sádico prazer.
Antes que entoasse seu último brado, um impetuoso e helicoidal vórtice consumiu toda a escuridão ao seu redor, impregnando aquele vale ermo e negro com imagens desfiguradas e surreais. Despertou deitado no chão da sala, atônito, porém com a memória recobrada. Escapara novamente daquele tenebroso abismo! Sem que pudesse, ao menos, respirar o ar de sua dimensão natal, um tilintar doce e aveludado retumbou sinistro. Goth tentou gritar por socorro, embora sua voz, naquele momento, emitisse apenas roufenhos grunhidos. Petrificado, fitou o teto da sala. Pingos de sangue gotejavam de visguentas nódoas escarlates aderidas ao mesmo. No assoalho, os glóbulos aglutinavam-se formando desenhos espectrais. Tudo começou a girar. O que era claro tornou-se escuro. Aos fundos, risadas histéricas acompanhavam o sino...