Jantar

Tudo começou devagar, apenas com um suspiro na escuridão de meu quarto, poucos segundos antes de adormecer. Isso por si só não seria preocupante, mas considerando-se que o suspiro não foi meu, e estava sozinho em casa, foi com certeza ao menos estranho.

Mas talvez seja dessa forma que sempre começa, em todas as histórias de terror e monstros no meio da noite, sempre de forma discreta e sem chamar a atenção, pequenos acontecimentos que discartamos como coisas de nossas mentes inconscientes. Uma coisa todos devemos admitir, a humanidade é ótima em racionalizar as coisas e não gostamos de considerar as coisas que existem na noite.

Talvez eu fosse mais vulnerável ao que aconteceu exatamente por ser diferente, ao contrário da maioria das pessoas, minha hora é a noite, em nenhuma outra hora do dia estou mais desperto que nos momentos vazios e escuros da madrugada. Conheço intimamente os fantasmas que a noite pode trazer, aqueles pensamentos desesperadores que surgem com a hora do lobo. Durante anos recebi olhares de incompreesão pela minha escolha de viver quando a maior parte do mundo está dormindo, ou pelo menos a maior parte das pessoas no meu hemisfério está.

Não posso dizer realmente se escolhi a noite por ser um pouco louco, ou se isso foi resultado da loucura. E devo dizer que sou um pouco louco, anos de madrugadas acordado mergulhando em minha própria mente, buscando teorias e investigando meus próprios comportamentos, formulando piadas e pensamentos que poucos conseguiriam entender, não é qualquer mente que consegue se manter sã nessas condições, e há muito já aceitei que não sou forte o bastente para isso. Assim, tenho total conhecimento que não sou uma pessoa com idéias, pensamentos ou comportamentos normais. E eventualmente isso foi o que me causou tantos problemas.

Não sou alguém que tem medo do escuro na verdade me sentindo bem confortável perdido nas mais completas escuridões, o que me resultou em uma visão noturna excelente, nunca tomei um punhado de roupas jogadas por uma pessoa na meia luz de meu quarto por exemplo. Mas isso... Isso foi diferente...

Um suspiro em meu quarto, sabia que não havia mais ninguém em casa, sendo que vivo sozinho com apenas uma empregada cuidando da casa uma vez por semana. Sabia que o suspiro não veio de mim, no momento em que o ouvi meu pulmão já estava vazio, na verdade fui capaz de ouvir simplesmente porque naquele momento não estava respirando, num daqueles momentos que encontramos em ambientes barulhentos quando tudo de repente silencia para ouvir qualquer confissão vergonhosa que se pretendia fazer a alguém.

Não resisti, acendi a luz de meu quarto e olhei ao redor. Nada, como era de se esperar, meu quarto pode não ser o lugar mais organizado do mundo, mas com certeza não possui lugares para se esconder. A porta de meu quarto estava trancada como tenho feito ultimamente.

Isso talvez mereça uma explicação, uma vez que já mencionei morar sozinho e não ser alguém com medo de sombras e fantasmas. Bom, o que posso dizer, isso não é completamente verdade, vez por outra sofro de algumas procupações. ? interessante mencionar esse evento pois talvez tenha alguma relevância com o que está acontecendo. Vez ou outra tenho sonhos que se realizam, geralmente são casos clássicos de dejá vu, onde de repente se percebe que a situação em que está já aconteceu em seus sonhos. Não são todos os meus sonhos que se tornam reais, mas com os que se tornam geralmente acontecem em menos de dois anos, ou pelo menos era assim, nos últimos anos o período tem encurtado para às vezes seis meses.

Em meu sonhos estava dormindo na cama de casal de minha casa, tudo estava escuro, mas mesmo com os olhos fechados sabia que alguém estava do lado da cama. Abri meus olhos e vi um vulto com o rosto completamente encoberto por sombras. Antes que pudesse fazer algo fui agarrado pelo braço a jogado para for a da cama, atingindo o chão frio aos pés de meu atacante. Olhei para cima e vi o brilho de uma lâmina descendo, tentei levantar os braços, mas o vulto foi mais rápido, com dois golpes senti a lâmina entrando em meu pescoço, o metal cortando a carne. Estranhamente não senti dor, apenas a pressão do corte e o sangue saindo de meus ferimentos. Coloquei as mãos numa tentativa de diminuir o sangramento, mas sabia que estava tudo terminado, ainda que meu atacante não fizesse mais nada, perderia sangue até morrer, ninguém me acharia a tempo e não tinha mais forças para fazer nada. Fiquei apenas mais alguns momentos no chão, ouvindo as batidas de meu coração em meus ouvidos e sentindo o liquído grosso e quente sendo jogado por entre meus dedos. O vulto simplesmente sentou-se na cama e ficou admirando o seu trabalho. Em breve acabaria, já podia ouvir meu coração desacelerando e meu sangue já não jorrava de meus ferimentos...

Nessa hora acordei de sobressalto, estava na cama de casal de minha casa, o quarto estava na meia luz, e não conseguia respirar. Com esforço tomei um primeiro fôlego ruidoso, conseguindo respirar normalmente depois de alguns momentos. O sonho tinha sido extremamente real. Num primeiro instante meus mecanismos de racionalização entraram em ação, dizendo-me que o sonho foi um complemento da falta de ar que deveria estar sentindo, não é algo de que tenho orgulho, mas eu ronco, vez ou outra a pessoa que ronca pára de respirar por alguns intantes, talvez o que tenha acontecido foi que parei por alguns instantes a mais e somente isso.

O que mais posso dizer, o sonho foi muito real, embora não tenha realmente medo de morrer, não consegui mais dormir sem trancar a porta de meu quarto, e se esse fosse um sonhos dos que se tornam verdade? Não tenho medo de morrer, mas já não sou mais suicida.

A essa altura quem estiver lendo isso já deve saber que como disse, não sou muito normal, mas tudo bem, esse pequeno diário está sendo escrito mais para organizar minha mente, mesmo porque a maior parte das pessoas que encontrasse esses escritos iria descartá-los como obra de ficção no mínimo. Não importa, coisas estranhas estão acontecendo comigo, e não tenho em quem confiar esses tipos de pensamentos. Não que seja uma pessoa sem amigos, pelo contrário até, fui agraciado com a compania de diversas pessoas, quase todos eles gostam de minha presença e até personalidade, e me aceitam como sou, entretanto acho que nenhum deles realmente entende minha mente, e convenhamos, quem gostaria de entender? O resultado de tudo isso é que são pouquíssimas pessoas com as quais posso falar tudo que está em minha mente, meus pensamentos mais usuais e crenças pessoais, para alguns eu conto algumas coisas, mas sempre em pequenas doses. Então esse diário é antes de mais nada para mim apenas.

O que mais tem acontecido?

Não houveram mais sonhos, mas por duas outras noites tive a sensação de que alguém estava no quarto, não consegui dormir antes do amanhecer tão forte era esse sentimento. Como vivo em uma casa com três quartos, todos mobiliados caso meus pais queiram visitar, pude mudar de cama várias vezes na noite, mas não adiantou em nada. Sempre a sensação de alguém parado por perto.

Na noite anterior quando estava quase dormindo meus pensamentos estavam num redemoinho de idéias, passando por teorias e idéias quando no meio de todos eles ouvi meu nome sendo chamado, numa voz que não aquela de minha mente, como se outra pessoa estivesse aqui dentro comigo. No mesmo instante tudo parou e minha mente ficou vazia, como se diversas pessoas conversando tivessem ouvido algo na floresta e quisessem se certificar do que aconteceu. Não tenho certeza agora se isso aconteceu mesmo ou foi apenas em minha mente.

Engraçado, fosse minha vida uma história de terror, já estaria xingando o personagem principal pela sua idiotice em continuar na casa depois de tudo isso, pensando também que fosse eu já teria exorcizado a casa pelo menos e já estaria dormindo com pelo menos uma faca ao meu lado.

Mas, talvez isso seja parte do que está acontecendo, estarei eu preso como uma mosca na teia de alguma criatura? Confidenciei parte disso a uma amiga e fui convidado para dormir na sua casa, sem pensar recusei. O que está acontecendo? Só tomei consciência de minha escolha agora enquanto escrevo, no momento estava certo do que deveria fazer, mas agora...

Já chega, vou sair da casa nesse instante, tenho alguns amigos que me aceitariam as três da manhã...

Não posso sair da casa, coloquei minha roupa e comecei a pensar na loucura de tudo isso, cheguei na porta e minha decisão de sair de casa já parecia loucura demais até para mim, o que exatamente penso estar acontecendo comigo? Estou assombrado? Essa é uma casa nova, ninguém morreu aqui e não possuo inimigos para me mandarem vudus ou coisa assim. Estou apenas deixando minha imaginação me levar, meu medo está se alimentando de si mesmo, crescendo cada vez mais, mesmo enquanto escrevo isso parte de minha mente está calma, sabendo que nada disso é real, mas minha parte emocional está como uma mar agitado, em constante movimento e gritando para que eu saia, saia agora...

Não importa, eu sou o mestre supremo de minha mente e emoções, nossos medos sempre parecem mais reais a noite, sei disso muito bem, vou dormir a amanhã tudo estará melhor e depois, ainda que tudo isso fosse verdade, quem quer que está fazendo isso comigo é que deveria ter medo de mim....

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Sempre me sinto melhor depois de escrever um pouco, não importa o que seja. Nessas horas eu penso que deveria ser um escritor, escrever livros e ficar rico... Dar entrevistas, posso até ver o que falaria nos programas, de onde tiro minhas idéias e tudo mais...

Quatro horas da manhã, estou cansado, escrever é bom, mas esgota a mente. Deito na cama e fecho os olhos... Gostaria de sonhar de novo o que sonhei ontem. Tento lembrar do rosto da garota, os contornos do seu corpo e as sensações... Talvez devesse escrever sobre esse sonho, foi tão real quanto o outro afinal, mas acho que não, esse é particular...

Viro na cama, ficando de lado quase que na posição fetal, no sonho a garota conversava comigo e depois me beijou, há quanto tempo não sentia um beijo daqueles, mas isso não foi a melhor parte, depois estávamos conversando e ela se apoiou em mim, ridículo da sua parte seu inútil, ela beijava tão bem e você perde a cabeça porque sentia o peso de outra pessoa apoiado em você, ah mas porque não, faz tanto tempo que não sentimos alguém que nos toca e que deseja nos tocar, sentir o calor da pele de outra pessoa, como disse inútil, qualquer outro iria estar pensando e querendo levar ela para a cama, você realmente sabe desperdiçar seu subconsciente, já falei diversas vezes que quem manda aqui sou eu então cala a boca e me deixa dormir... Todas as linhas de pensamento são interrompidas quando ouço meu nome sendo chamado numa voz que não é uma das minhas.

Levanto e olho ao redor, alguém está sentado no pequeno armário ao pés da cama. Num pulo acendo a luz e vejo um homem de quase quarenta anos, cabelos negros brilhando de gel, usando um smoking, está sentado com as pernas encolhidas. Ele me olha com olhos completamente negros e sorri para mim com dentes serrilhados como os de um tubarão.

-Ah, bem vindo, bem vindo. Você chegou bem na hora.

Tenho certeza do que ele vai dizer, mas não consigo evitar.

-Na hora do que?

-Tsc, tsc... Jantar claro.

-Claaaaro.

Sem mais salto da cama e corro para a porta, abro a porta do quarto e estou na porta de casa em menos de cinco batidas do meu coração, mas a porta não abre, giro a chave e nada. Encosto a testa na porta, sabendo que quando me virar ele vai estar lá. Ele não me decepciona.

-E se eu gritar?

-Ora, fique a vontade. Ninguém vai ouvir realmente, afinal você já não está mais em seu mundo.

Confesso que isso me deixou interessado e quanto mais eu fizer ele falar mais chance terei de conseguir alguma informação que possa me ajudar.

-Como assim?

-Ora, ora, não seja assim. Não se faça de desentendido. Você pode muito bem não entender tudo, mas algo com certeza você pode deduzir. Escolho minhas refeições muito bem.

-Obrigado eu acho.

Ele se senta em meu sofá e me convida para sentar ao seu lado. Logicamente eu me sento no outro sofá para manter meu olhos nele. Seus movimentos são fluídos e rápidos, não apenas isso, por vezes sua pele se deforma, como se algo embaixo estivesse se movendo.

-Então comecemos uma rápida lição antes da refeição, nada como um exercício mental para temperar a carne e deixar um no clima. Pode começar.

-Vamos ver, isso é uma outra dimensão. Provavelmente um reflexo de minha casa, por isso que a noite parece mais escura e a porta não abria.

-Muito bem, agora você pode me dizer como você foi trazido aqui?

-Não senti nada, você trouxe meu corpo astral ou o físico mesmo?

-Impressionante, sabia que tinha escolhido bem, você é o primeiro que faz essa pergunta. Talvez sua raça esteja evoluindo de volta o que perderam. E respondendo, apenas o astral.

Se ele trouxe meu corpo astral talvez eu consiga voltar, tenho que ficar calmo, tem uma saída disso tudo, pensa rápido, ele gosta de falar, dá corda...

-A pergunta óbvia é se você me trouxe aqui ou se apareci aqui por meus próprios meios.

Ele começa a aplaudir levemente.

-Parabéns, se você chegou por seus próprios meios pode fugir da mesma forma, mas infelizmente é um pouco mais complicado que isso. A resposta é que por sua causa pude trazer você aqui. Durante as últimas semanas estive manipulando seus medos e sonhos, empurrando aos poucos para tumultuar sua mente.

-Como assim?

Isso, seja o discípulo, a saída está aí em algum lugar, não deixe ele ver você pensando isso.

-Obviamente existe uma outra dimensão atrás da sua, nessa dimensão eu e outras criaturas menos educadas estamos aprisionados, mantidos aqui pela sua raça deliciosa.

-Mas nem sabemos que vocês estão aqui.

-Não importa, você são os guardiões, suas mentes quando estão calmas mantêm a realidade estática e a barreira entre as dimensões sólida.

-Então me assustar faz com que eu inconscientemente aumente seu poder e torne essa barreira maleável?

-Isso. Impressionante, você realmente aprende rápido.

Essa é a resposta, não ficar calmo, se me perder no medo deixarei ele mais forte, mas essa barreira de que ele falou se tornará mais fácil de se cruzar, mas como achar uma passagem para uma dimensão superior num espaço tridimensional, qualquer direção para a qual ande estarei apenas me movimentando nas três dimensões desse lugar, onde está a ponte???

Num brilho lembro da resposta, anos e anos atrás, num dia em que assistia uma aula entediante olhei para o corredor fora da sala e o vi escurecendo, mesmo sendo dia, lembro de ter pensado numa história onde a ponte entre as dimensões estava na mente, apenas aquele que conseguisse enxergar os portais poderia usá-lo, enquanto os outros ficariam onde estavam.

Começo a respirar mais rápido, procurando disfarçar, deixo meu medo subir e olho ao redor, tudo está escuro, mas está o corredor que leva para meu quarto mais escuro? Só posso ver com minha visão periférica, não quero desviar meu olhar da criatura na minha frente, ele não deve saber, só tenho que achar como distraí-lo por alguns segundos, estou certo que se chegar ao corredor ele não conseguirá me seguir.

Ele me olha em silêncio por alguns momentos, é surpresa que vejo em seus olhos?

-Você é realmente rápido, quem diria que acharia a saída tão rápido assim. Mas pense bem, será que você realmente quer fugir?

Leu meus pensamentos, maldito telepata, era ele chamando meu nome, sua voz mental é diferente da que saí de sua boca.

-Lógico que quero, não é minha intenção ser devorado.

-Mas o que existe para você do outro lado? Sua vida é vazia e sem ninguém.

-Não é verdade.

-Você esquece que entrei em sua mente, conheço seus medos e desejos, provei dos pensamentos suicidas escondidos nos cantos escuros. Eu ofereço um fim para tudo isso.

Nem preciso mais tentar ficar com medo, começo a perder o controle.

-Não é verdade.

-Claro que não é, mas suas emoções temperam sua alma, sempre gosto de um pouco de dúvida e culpa em minhas refeições.

-Maldito.

Sem pensar jogo o que tenho a mão, uma almofada de todas as coisas, em seu rosto e saio correndo, sei que ele vai se transoformar em algo horrível, tenho que ir, apenas mais três metros, vou conseguir, do outro lado da escuridão vejo minha cama e meu corpo dormindo, dois metros, quase lá quando vejo ao redor de meu rosto dedos impossivelmente longos e logo antes de sentir a palma de sua mão em minha nuca sei que ele me dará uma morte horrível e cheia de sofrimento, serei estraçalhado e minha vida terminará sem mais...

Ele sussurra em meus ouvidos e novamente não me decepciona.

O melhor tempero é a esperança de escapar...