Uma razão para aprender latim
Não existe coisa muito melhor do que ficar em casa numa noite tempestuosa, quando as janelas tremem e o vento assobia de forma sinistra, prometendo roubar o calor de quem se aventurar a encontrá-lo. A chuva caindo em gotas grandes o bastante para serem confundidas com granizo. Em resumo, uma daquelas noites onde parece que o mundo vai acabar.
Ficar em casa embaixo de uma coberta com um copo de chocolate quente anima qualquer um, por isso nem me incomodo tanto de ter que corrigir provas hoje, e depois, nunca tem nada de bom na televisão mesmo.
Ao contrário de alguns outros colegas de trabalho, eu até que gosto de corrigir provas, cada uma é diferente, algumas possuem letras bonitas, outras nem tanto, alguns alunos tomam cuidado para deixar a prova bonita, outros não. Existem aqueles que gostam de enrolar e aqueles raros que têm tanto a dizer que não conseguem colocar tudo no papel no tempo determinado, alguns escrevem muito bem, outros fazem gramáticos se revirarem em seus túmulos. Corrigir as provas é quase tão divertido quanto ver as caras dos alunos enquanto fazem as provas, as caretas quando tentam arrancar algo de suas mentes, vasculhando cada canto escuro atrás da resposta. Algumas vezes tenho que me segurar para não cair na risada.
Estava tudo indo bem, consegui fazer um progresso considerável graças a uma série de provas com letras legíveis, quando ouço um barulho alto, como de um tecido sendo rasgado. Como estou só em casa e meu apartamento é no quinto andar, começo a me preocupar. Olho em volta e da porta de um dos quartos cai uma figura toda machucada, com as roupas um pouco rasgadas e carregando algo.
Já estou com o telefone na mão para chamar a polícia, quando a figura no chão me chama pelo nome. A voz está rouca, sofrida e ofegante, mas consigo reconhecer Jonas, um amigo não muito próximo, na verdade, mais um amigo de um amigo.
Vou até ele, ajudo a se levantar e começo a levá-lo para o sofá.
- O que houve com você? Como entrou na minha casa? Realmente não sei qual queria saber mais, sendo que para chegar no quarto de onde ele saiu teria que passar por mim.
- Estive numa discussão com um demônio kandariano e vez ou outra quando ninguém olha posso viajar por trás dos angulos retos. Mas isso não importa, não temos muito tempo.
Eu diria que ele está delirando, mas desde que me lembro ele sempre falou coisas assim, num momento está normal e em outro começa a falar coisas estranhas. Sempre desconsiderei o que fala nesses momentos, ou seria mais verdade falar que nunca entendi mesmo.
- Quer que eu chame uma ambulância?
- Puxa, não sabia que você não ouvia. Leia meus lábios, NÃO TEMOS MUITO TEMPO.
- Por que não?
- Hmm. Por acaso eu estou passando a impressão de que acabei de sair de um jantar social?
Deitado no sofá vejo que um de seus olhos está inchado demais para abrir, seu rosto está coberto de arranhões, praticamente todo o resto do que posso ver de seu corpo está ferido ou roxo.
- Não.
- Isso mesmo, não foi um jantar social... embora no fim tenha sido um jantar de uma forma ou de outra, escapei por pouco. Pegue a caixa que trouxe comigo.
A caixa parece feita de cerâmica, coberta de desenhos e com quatro pedras preciosas triangulares na tampa, uma vermelha, uma amarela, uma verde e uma azul. Não parece haver nenhuma tranca e a caixa é surpreendentemente leve. Consigo carregá-la sem esforço.
- Muito bem, preste atenção, dentro de quinze ou vinte minutos o mundo como conhecemos vai acabar. Tudo que pode impedir isso é essa caixa, mas para abri-la você precisa traduzir a inscrição na tampa para saber a ordem em que as pedras devem ser pressionadas.
- Por que eu?
- Porque você é a única pessoa que conheço, viva, que estudou um pouco de latim.
- Mas isso foi há cinco anos atrás na faculdade, e estudei apenas um ano. Escolho ignorar o “viva” que ele falou.
- Vai me dizer que não seguiu meu conselho?
Agora me lembro vagamente de um dia, quando estava reclamando de ter que aprender latim e Jonas estava junto. Disse que não tinha motivo para aprender latim e ele, sério, falou que poderia haver um dia em que o mundo estivesse a beira da destruição e tudo que pudesse salvá-lo era um pergaminho ou algo assim em latim, e alguém teria que saber ler isso. Por isso eu deveria prestar mais atenção nas aulas. Claro que mandei ele ficar quieto e não me encher, nunca imaginei que poderia realmente acontecer.
- Ora, você não esperava realmente que eu fosse acreditar naquilo que você falou? Você nunca fala coisa com coisa.
- Tantos universos paralelos por aí e eu tinha que parar justo em um onde você decidiu não aprender latim, isso que dá aceitar o aluguel mais barato. Talvez seja um pouco tarde, mas deixa eu explicar algo bem simples, eu sempre estou certo, se falo algo, acredite. O fato de eu ser meio louco não significa que o que falo não é verdade, se você quer saber sou meio louco porque o que falo é verdade.
- Tá bom, tá bom. O que faremos agora? Talvez eu consiga achar alguém que saiba latim.
- Não temos mais tempo, eles me acharam.
- Quem?
Ele suspira fundo como se eu fosse a pessoa mais ignorante do universo.
- Um grupo de smurfs de quem roubei as calças. Você acha que me machuquei assim tomando café da manhã?
Estou prestes a dar uns tapas nele quando percebo que o assobio do vento se tornou um uivo e as batidas das janelas se tornam um pouco mais insistentes. Cometo o erro de olhar para fora e vejo sombras contra sombras, olhos vermelhos e dentes brilhantes, a imagem não consegue se fixar em minha mente, sinto o mundo parar e praticamente ouço meu conhecimento da realidade se quebrar. O que quer que seja na minha janela não deveria nem estar nesse mundo, muito menos do outro lado de um vidro tentando entrar.
- Não se preocupe, eles vão demorar um pouco para entrar.
Demoro um pouco para ter alguma reação, ainda estou em choque.
- Venha, tente traduzir isso.
Ando como se estivesse em um sonho ruim, olho a inscrição, mas não reconheço nenhuma palavra.
- Não consigo. Eu passei em latim apenas colocando meu nome nos trabalhos, nunca realmente aprendi.
- Isso é ruim. Bom, então vai ter que ser na tentativa e erro mesmo
Seguro sua mão.
- Você está louco? Quem sabe o que pode acontecer se você errar?
- Achei que já tinhamos determinado que sim, sou louco. Segundo, você parece não querer entender a situação. Se não fizermos nada, o mundo vai acabar de qualquer forma em uns dez minutos, já que esse é o tempo até as estrelas se alinharem e o pai desses bichos na sua janela acordar com fome, nós morreremos antes porque em uns sete minutos aquelas criaturas vão entrar aqui, as barreiras que coloquei na sua casa não são muito resistentes. Resumindo, teremos que nos esforçar muito para ficarmos vivos. Mas anime-se, são quatro pedras tenho uma chance em vinte e quatro de acertar.
Estou tremendo já, não entendo como uma noite calma e gostosa possa ter ficado tão ruim.
- Sabe, quem quer que fez isso poderia ter pensado em uma interface mais amigável ao usuário, as figuras em volta da caixa não dão pistas. Mas olhe pelo lado positivo, em alguma dimensão paralela você sabe ler latim e em pelo menos uma delas eu vou acertar a sequência, torça para que seja nessa dimensão. Bom, Por via das dúvidas, pense em algo feliz pois pode ser seu último pensamento.
Feliz? Estou pensando em estrangular você, miserável, eu estava bem em minha ignorância, por que você tinha que aparecer na minha casa e me acordar assim? O mundo poderia ter acabado e nem teria idéia. Isso é o que se passa em minha mente quando ele pressiona a pedra vermelha......
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Logo em seguida, em uma dimensão paralela vizinha.
- Está bem, você estava certo. Feliz agora? Ele já era normalmente convencido, agora nunca mais vai me deixar esquecer que aceitei que ele estava certo e que eu aprender latim poderia salvar o mundo.
Ele sorri e cai no chão respirando aliviado. Gostaria de saber de quem foi o idiota que teve a idéia de criar essa caixa. Não sei se foi piada ou ele era sacana mesmo. Leio de novo a inscrição, algo como “Para destruir o mundo aperte a pedra vermelha. Para salvar o mundo aperte as outras três em qualquer ordem.”