Vale dos Perdidos

A estória que pretendo contar não é fantasiosa, como o apinhado de mentiras que rasgam o ar gelado em aterradoras noites de fogueira. Não me julgo digno de esperar o respaldo daqueles que conseguirem ler o que tenho selado na minha mente. Mas, em meu íntimo, tenho bem claro que tudo que se sucedeu não foi obra do vigoroso medo que traspassava minha espinha, nem de um momentâneo acesso de loucura. Para meu infortúnio, a cena que presenciei foi real, assim como as equimoses e escoriações que ainda maculam meu corpo, e tenho muito sorte de ter escapado com vida. Infelizmente, nem todos tiveram o mesmo fado.

Ainda lembro, de forma nítida, de Andres gritando guturalmente no Fiat de Pierre. Seus diáfanos olhos azuis transbordavam vida:

- Hoje é dia galeraaaaa! Hoje é dia de quebrar tudo. UUURRRAAA – brandiu a garrafa de Natasha para o alto e despejou uma generosa golfada do líquido direto em sua garganta – AHHHHHH - balançou rapidamente a cabeça fazendo um som engraçado com seus frouxos lábios. O resto da turma explodiu em gargalhadas

- Ei. Passe isso para cá moleque. Isso não é só seu não. – falou Polaco, arrancando a garrafa das mãos do seu parceiro.

Andres arrotou quente e azedo enquanto passava a vodca e, mais uma vez, a matilha estourou em risadas.

Pierre, o mais sério do grupo, abriu o vidro de seu lado. O cheiro acre chegara a suas narinas como veneno. Acendeu agilmente um Free e continuou dirigindo. Estavam a poucas horas do destino final: a famigerada Serra Catarinense.

Mosca apertou um baseado com seus dedos esqueléticos. Lambeu uma borda da seda vorazmente e o acendeu com uma baforada profunda. Pierre os acompanharia se não estivesse dirigindo na mortífera BR 101. Foi a vez de Claus abrir a boca:

- Passa logo a bimba pra mim cabeção. Eita, mão de cola. – e puxou o gorro do franzino Mosca até cobrir todo seu rosto. Este, com a face ainda encapuzado, botou o cigarro na boca e deu mais uma tragada. Levantou as mãos e começou a oscilar em um movimento idiótico enquanto a fumaça esvaziava seus pulmões. Sonoras e divertidas gargalhadas eclodiram novamente.

Mas, aos poucos, o silêncio foi ganhando espaço em meio às palhaçadas até que, finalmente, o som da erva acendendo e apagando a brasa passasse a reinar no carro.

Quando terminaram de consumir o THC, ficaram anestesiados, como se estivessem sob o efeito de algum sedativo. Tudo parecia mais devagar e o experiente motorista ligou o Bob Marley The Legend que fluiu como ondas mágicas naquele exíguo espaço. Um a um, meus amigos foram adormecendo, despreocupados com as intempéries que uma das rodovias mais perigosas do país podia oferecer. Mas eu não conseguiria acompanhá-los, mesmo que tentasse. Ao contrário dos dorminhocos de plantão, eu tinha o hábito de assistir jornal todo dia e já estava traumatizado com notícias de nefastos acidentes automobilísticos. A cabeça de Polaco vacilou e caiu no meu ombro. Não tentei evitar. Lá dentro estava tão apertado quanto as abarrotadas celas dos presídios brasileiros.

Embora eu estivesse quieto na maior parte da viagem, resolvi papear com Pierre para que ele não sucumbisse frente à atmosfera viciada e impregnada pela essência da erva, que funcionava com um ardiloso sonífero (eu próprio já sentira vontade de dormir em situação análoga). E, então, ficamos jogando conversa fora até que chegássemos, duas horas depois, ao Vale dos Perdidos. Meu relógio de pulso da Technos marcava oito e meia da noite.

Andres dormia com a cabeça enviesada para trás, Claus encostava a têmpora no vidro umedecido pelo orvalho e Polaco apoiava seu cocoruto, preenchido por cabelos vermelhos e crespos, no banco do motorista. Mosca já estava acordado, fitando o nada em seu habitual mutismo pós-baseado. Pierre bradou com sua voz rouca e pigarrenta:

- Aee Galera do mal. Chegamoss.

Não houve respostas.

O motorista calcou a mão contra a estrondosa buzina de seu carro e um barulho estrepitoso perdurou por alguns irritantes segundos. Claus foi o primeiro a se manifestar:

- Pára com essa porra aí ô seu maluco.

- A florzinha está de mau-humor agora? – gracejou Pierre.

Eu intercedi antes que a discussão começasse.

- Sossegado galera. Nós viemos para cá para nos divertir e não para brigar. Mas ainda temos muito o que fazer e ficar dormindo não vai ajudar muito. Vamos agilizar aí.

Andres abriu vagarosamente um de seus olhos azuis. Bufou alguma coisa ininteligível aos ouvidos humanos e entornou a garrafa que jazia no meio de suas pernas. De súbito, vociferou energicamente, acordando, de vez, o resto dos preguiçosos, com um susto.

- CHEGAAAAMOOOOOOOOOOO!

Polaco empertigou-se abruptamente como se algum carro desenfreado estivesse acometendo o Fiat de seu amigo. Suspirou comicamente ao perceber que já havia chego, são e salvo, arrancando algumas esmorecidas risadas da pequena platéia. Deu uma gravata em Andres e lhe aplicou um amigável cascudo.

- Você vai me pagar essa seu mongol.

Mosca tomou a iniciativa e abriu a porta. Lá fora, soltou esbranquiçados vapores pela boca atestando o frio rigoroso que fazia naquela noite. Pierre desceu do carro e acendeu um cigarro. Claus, Andres e Polaco o seguiram, cada um com sua respectiva mochila nas costas. Fiquei mais alguns instantes dentro do veículo. Se tivesse seguido meus instintos naquela hora, talvez não tivesse acontecido a desgraça que presenciei naquela fatídica madrugada. A placa de ferro que indicava “Bem vindo ao Vale dos Perdidos” (e que tinha pichado em baixo “Só cuidado para não se perder”) tinha quatro furos circulares e próximos. As bordas das fissuras estavam com nodoas avermelhadas e um rastro fino e cintilante descia de uma delas. Minha intuição preconizava que só podia se tratar de um filete de sangue coagulado. Todavia, não queria demonstrar medo ou fraqueza diante de meus corajosos amigos e, por isso, mantive aquela visão apenas para mim. Duvido que tivessem me escutado, de qualquer jeito.

Ainda não havíamos acampado naquele inóspito Vale. Todos nós portávamos o mesmo espírito aventureiro que nos impulsionara a levantar barraca em lugares recônditos, misteriosos, lindos, horrendos, inabitados, enfim, os mais diversos. Quando mais insólito o desafio, maior era a satisfação. Nossa última proeza fora passar a noite ao lado de um cemitério clandestino que ficava numa cidadela fora do mapa, de nome Nascituro. Descobríramos o inusitado e lúgubre local com o auxílio da Internet, e, bem me lembro daquele momento em que rapidamente nos entreolhamos e já sabíamos, pelo intenso brilho de nossos olhos, qual seria o próximo destino. Com o Vale dos Perdidos não fora diferente. Estórias estranhas perambulavam nas websites sobre tal região. Um casal de maratonistas embrenhara-se naquela mata densa para nunca mais ser visto. Uma menininha de oito anos adentrara no Vale, com sua bicicleta de rodinhas, para buscar uma bola que seu pai lançara e, em questão de minutos, já havia desaparecido, restando, apenas, sua Caloi Ceci caída no chão, com as rodas ainda girando ao relento.

Se tudo aquilo era verdade? Claro que não. Apenas fábulas polêmicas criadas para atrair turistas e curiosos (que nem nós) a lugares esquecidos. Pelo menos, era isso que acreditávamos até então.

- A trilha deve ficar um pouco mais adiante. – falou Pierre com as mãos no bolso de sua jaqueta.

Andres tomou a frente do grupo, tirou um facão do suporte de couro do seu cinto e o empunhou impetuosamente:

- Que venham os fantasmas - vociferou ele.

Dessa vez não houve risadas.

- Deixa de ser retardado Andres. – murmurou Polaco, fitando o chão com galhos secos e folhas espessas que crepitavam em consonância com o andar vagaroso e atento do nosso grupo.

- Alguém dá o gadernal pra criança. – zombou Mosca, que adquirira uma aparência estranhamente soturna com a bruma que estava cada vez mais baixa.

Eu sabia da ignorância de meu raquítico amigo e resolvi ficar quieto. Mas Pierre nunca perdoava gafes daquela monta.

- É gardenal, ô sua anta.

Um uivo distante e de gelar a espinha desviou abruptamente nossa atenção. Ficamos tensos, pois o nevoeiro baixo impedia que enxergássemos o que estava logo adiante. Cada nova passada descortinava pinheiros, araucárias e nada da trilha. Estávamos adentrando em um sombrio labirinto e uma breve centelha de terror tomou conta de mim. Vale dos Perdidos... Aquele nome, antes hilário, e, agora, temível, começava a fazer sentido. Mas todos nós gostávamos de adrenalina, e, de uma forma sádica, era aquilo que estávamos experimentando.

Paramos um instante para descansar. A lua cheia escondia-se em nuvens negras e espessas que se estendiam como felpudos cobertores da morte. Em todas as direções, erguiam-se, monotonamente, pinheiros e araucárias, como furtivas sentinelas espreitando nossos movimentos, e não fazíamos mais a mínima idéia de onde estávamos. Ironicamente perdidos no Vale dos Perdidos! Entreolhamo-nos por um breve momento, e, subitamente, um horror coletivo apossou-se de nós. Um, dois, três, quatro, cinco... Estava faltando o membro número seis de nossa corja. Claus havia sumido... Pierre, genuinamente preocupado, começou a gritar arduamente pelo nome do amigo. O silêncio era aterrador naquele instante e o nome Claus, Claus, Claus ecoando no meio daquela floresta fria soava como o prenúncio de algo macabro.

De repentino, um vulto saiu detrás do tronco de uma árvore e pulou nas costas de Polaco, que estremeceu de cima a baixo com o susto.

- Te peguei – sussurrou Claus no ouvido do amigo de cabelos de fogo.

Polaco envergou habilidosamente às costas, jogando o estúpido companheiro no chão - ele treinava judô e já ganhara alguns campeonatos municipais.

- Ippon. – comemorou animadamente enquanto saltitava com os braços erguidos.

Fiquei furioso com a irresponsabilidade de Claus. Buscávamos aventura e não palhaçadas. Existia certo código de ética dentro de nossas inconseqüentes jornadas e manter a incolumidade física integrava, irremediavelmente, o mesmo. A noite já estava avançada, a visão prejudicada e brincadeirinhas inconvenientes não eram mais bem vindas. Mas resolvi permanecer quieto. Sempre fui um dos mais introspectivos. Ao contrário de Pierre.

- Você é um babaca mesmo né. Nem sei por que o convidei para vir junto. Só atrapalha. Filho de uma puta.

- E quem indicou você como líder do grupo? – Claus desafiou no mesmo tom de raiva – Os incomodados que se retirem.

Eu e Andres previmos o que estava para acontecer e cada um de nós se encarregou de segurar um dos contendores. Os olhos azuis de meu amigo estavam atentos.

- As duas moças vão parar ou não? – debochou Andres.

- Vocês estão muito estressadas. Estão na TPM é isso? – falei, resolvendo entrar na brincadeira.

Senti o corpo retesado de Pierre desfalecer e então o soltei. Andres fez o mesmo e o problema felizmente resolveu-se. O nível de testosterona saíra do ponto crítico.

Uma lufada fria passou rasgando no meu rosto. Parei por um instante e contemplei a beleza lúgubre quem envolvia aquela área. Mosca parecia estar fazendo o mesmo, embora eu não pudesse ter tanta certeza. Os olhos dele estavam vermelhos como sangue! Inesperadamente, fui tomado por um vislumbre nauseante. O rosto fino de Mosca adquiriu um tom branco enfermiço, quase lívido e seus olhos apontaram para cima, em uma expressão medonha. Lesmas saíam, serpenteando lentamente, de seu nariz... Ele estava morto. O crocitar de uma gralha azul que jazia no galho de uma imponente araucária despertou-me do devaneio (tinha algo de taciturno no modo como aquele bicho nos olhava, como se ele soubesse do que ainda estava por vir).

Mais alguns metros adiante e chegáramos a uma estranha porção da floresta. Um conjunto de árvores havia sido abatido, mas os troncos continuavam lá, inclinados e lambendo o chão, mortos, moles, podres. Não havia marca de machados, serra elétrica, nada. Era como se os volumosos troncos houvessem sido quebrados como palitos de dente. Pierre decidiu que aquele seria o local mais apropriado para levantar acampamento. Polaco tirou um grande saco plástico da mochila o qual abrigava sua Barraca Iglu para supostas quatro pessoas (o que, na verdade, não passava de uma grande piada). Andres fez o mesmo, só que sua barraca era no formato pirâmide e guarnecia dois “quartos”. A armação era metálica, pesada, enferrujada. Fora de seu pai anos atrás. O alicerce da barraca do ruivo era de algum plástico maleável e resistente.

Mosca e Pierre encarregaram-se da fogueira, enquanto o resto (incluindo eu) erguia solenemente o provisório abrigo. Juntaram galhos, folhas secas e alguns ramos putrefatos, amontoaram-nos e meu descarnado colega queimou um pedaço de papel que tinha em seu bolso com o Zippo. Flush! A fogueira estava acesa. A copa cônica dos pinheiros e os galhos frondosos das araucárias eram apenas manchas verde-escuro salpicando a bruma intensa e sufocante que adejava naquele momento.

Fatigados, reunimo-nos em torno do fogo, enfiados que estávamos em densas roupagens, e, finalmente, relaxamos. A adrenalina permeava todos nós e fazia com que nos sentíssemos homens pré-históricos desbravando um mundo desconhecido. Tal momento clímax sempre fora a força motriz que nos impelira a continuar explorando lugares pitorescos como aquele. Nem Mosca, que sempre fora o mais disperso, conseguia esconder a satisfação estampada em seu rosto. Claus e Pierre, que se atritavam constantemente, riam e conversavam descontraídos. Andres retomara a fiel Natasha em suas mãos e Polaco enrolava um cigarro de maconha, desta vez, mesclado com haxixe. E, assim, por um bom tempo, permanecemos entretidos em um falatório desconexo, lúdico, hilário (e que seria o último) enquanto os gravetos crepitavam ao sabor das chamas. Ao nosso redor, uma imensa e soturna solidão inundava as escuras, labirínticas e abjetas esquinas da floresta. Insetos indefiníveis entoavam seus cânticos característicos. A algazarra durou até cerca de duas e meia da manhã quando o ar arrefeceu-se ainda mais e o calor da fogueira já não mais conseguia combater o algoz frio polar que pairava. Recolhemo-nos à barraca, Polaco e Claus na Iglu; eu, Mosca , Andres e Pierre na Pirâmide. As coberturas de nylon de nossos abrigos tremulavam com o vento uivante que vinha de fora e a luz da fogueira bruxuleava um laranja cada vez menos intenso. Parecia que estávamos no topo congelante do Everest. Envolto por aquele ambiente sinistro, puxei uma vultuosa colcha para me aquecer e, em questão de minutos, o sono consumiu vorazmente minha consciência...

Quem dera a estória terminasse por aqui...

Passada cerca de uma hora, um leve tremor no chão despertou-me. Abri os olhos e percebi que Andres, que dormia ao meu lado, não estava ali. Pensei que estavam tentando pregar alguma peça, como de costume, e tentei voltar ao sono. Antes que conseguisse, porém, um tremor um pouco mais acentuado fez, novamente, o chão e, também, a armação de metal trepidarem. Levantei-me, de súbito, enfurecido com a suposta brincadeira pueril que meus amigos tramavam sorrateiramente. Saí da barraca e encontrei Andres, Polaco e Pierre reunidos. Mosca e Claus ainda estavam entorpecidos em seus respectivos leitos. Antes que eu falasse alguma coisa, Andres lançou-me um estranho olhar, um misto de pavor e desespero que eu nunca vira se esboçar naquelas copiosas íris azuis. Levou o dedo indicador ao meio da boca e sussurrou:

- Shhhhhhh – a cautela com que ele proferiu tal comando deixou-me nervoso e preocupado... Tinha alguma coisa ali!

Levantei a sobrancelha em um ar interrogativo e Pierre apontou o dedo para frente. Polaco tiritava quase convulso e, logo percebi que aquilo não era obra somente do frio. A princípio não tinha visto nada, mas, quando apertei os olhos, percebi que algo se esgueirava atrás de um pinheiro a, mais ou menos, uns cinqüenta metros de distância. Uma silhueta enorme e escura emergia incontroversa na bruma ainda baixa. Fosse o que fosse, era algo assombroso e desumano. De imediato, gelaram-se todas as fibras de meu corpo, num surto abrupto e psicótico. Uma sensação de morte iminente passou pela minha cabeça e cheguei a tontear, enquanto Pierre me segurava firme, com seus olhos esbugalhados. O vento sussurrava agouros inaudíveis naquele instante.

Agilmente, a coisa trocou de árvore com um salto só, esgueirando-se atrás de outra araucária mais próxima. Folhas, pinhas e galhos despencaram com o tremor intenso de sua aterrisagem. Por alguns agonizantes segundos, eu pude entender como se sentem as pessoas que padecem de alguma forma de paralisia. O único movimento que consegui perfazer foi o arreganhar de meus lábios, que, boquiabertos, conseguiam exprimir o horror que aquela cena proporcionava.

De supetão, Claus irrompeu da barraca, xingando-nos de forma histérica. Mosca o seguiu preguiçosamente, calado, sem nada entender.

- Vocês não vão dormir não, ô merda?

Andres adiantou-se em tapar a boca do ranzinza, que, atônito, debatia-se debilmente até que fosse, por total, imobilizado. Pierre e Polaco seguravam os seus retesados braços. Ainda perplexo, nosso relutante colega torceu o nariz e fitou-nos com ar abobalhado. Retribuimos o gesto com tamanha seriedade que ele instantaneamente percebeu o seu erro.

Como uma tonitruante advertência, um grito medonho ribombou pavoroso em nossas almas...

- AHHHHHHHHHHHHHHHHH. – Polaco percebeu que o ser colossal e atroz perdera a timidez e agora andava pé ante pé em nossa direção. Tinha ao menos uns quatro metros de altura e braços tão compridos que pareciam roçar no chão. A brisa parecia ceder ante a presença da descomunal anomalia.

Ficamos, todos, paralisados, silentes, hipnotizados, compartilhando a mesma sensação onírica. O monstro estancara a poucos metros de distância, possibilitando-nos, mesmo imersos na negritude noturna, vislumbrar o quão grotesca era sua aparência, Estava completamente nu e tremia brandamente. Sua forma assemelhava-se a de um humano, embora a pele fosse mais espessa, branco-arroxeada (como se padecesse de uma pungente infecção) e com veias túrgidas e esverdeadas entalhando toda a extensão de seu tronco O cabelo caía pelas têmporas em sórdidos fios lisos e no tampo da cabeça; sedosos e esparsos tufos pretos empapavam-se em sangue. Seus olhos eram amarelados e ávidos e um líquido preto irreconhecível escapava incessante pelas largas narinas. Não fosse o bastante, esboçava um sorriso cruel que deixava à mostra alguns dentes que, de tão escuros, quase não se podia enxergá-los. Pierre gaguejou, desacreditado e aturdido:

- Que, que, que.... que porra que é essa?

Andres fez menção de se mexer e o terrível ser a nossa frente começou a rosnar em tom ameaçador.

Claus, por fim, gritou com toda a força que suas cordas vocais permitiam.

- FUDEUUUU!

Aquelas palavras tiraram Mosca de seu profundo estupor, mas, antes que começasse a correr como nós, o monstro o agarrou com seus longos e fortes dedos. Andres atirou a garrafa de vodca no mesmo, que sequer se mexeu. Olhava sofregamente para meu infeliz e petrificado amigo. Sem que pudéssemos ostentar qualquer outro tipo de reação, o bixo levou Mosca até sua boca, arreganhou-a de forma sobrenatural e despedaçou-lhe o tronco em uma única mordida, como se estivesse devorando o primeiro pedaço de um sanduíche. O barulho dos ossos e da carne sendo triturados pelos dentes obscenos daquela aberração, até hoje, me dão viscerais calafrios. Em seguida, cuspiu a blusa de lã que meu amigo vestia, já estraçalhada, e abriu um largo sorriso. Suas presas exibiam nódoas de um vermelho vívido e sangue escorria pelas laterais de sua boca. O queixo, também lambuzado pelo líquido vital do recém morto, adquirira um aspecto bruto com a coloração negra que o permeava. A criatura levantou a cabeça para o céu e emitiu um grunhido esganiçado, rompendo o silêncio com letal facilidade. Uivos complacentes e distantes o acompanharam, enquanto várias espécies de aves levantavam vôo nas proximidades. Repentinamente, os restos de Mosca não deglutidos foram projetados contra Andres que despencou no chão como se fosse vítima do mais pujante dos golpes. Sem hesitar, desatamos a correr como desvairados; confusos que estávamos acerca de nossa própria vida... de nossa própria morte! Naquele terrível momento, em que o desespero atingia níveis inefáveis, nada mais importava. Era cada um por si; lutando por sua própria sobrevivência. Lembro de estar correndo sozinho por onde eu acreditava ser o caminho de volta, enquanto escutava gritos horríveis de meus amigos, agonizando em seus derradeiros suspiros. Tive a má idéia de olhar para trás e ver aquela coisa roxa, de nojentos cabelos longos, devorando Pierre. Engoliu-o de uma só vez e levantou aquelas órbita amarelas em minha direção. Muitas árvores haviam tombado atrás com a absurda inércia daquela criatura, abrindo-se uma espécie de clareira no meio da floresta intrincada. Aumentei o ritmo das passadas, movido por um medo insano, embora ainda esbarrasse dolorosamente em espessos troncos que não se deixavam ver pela bruma esfumaçada e, como mordazes barreiras, procrastinavam a minha fuga. Mas, por um instante, achei que tivesse despistado a besta e parei para descansar, arquejando profundamente. Não obstante, um vulto enorme surgiu diante de mim e brandiu a cabeça de Polaco, que se reduzira a uma expressão vidrada. Mais uma vez, encarou as nuvens negras - únicas testemunhas da chacina daquela noite - e largou um ganido ainda mais estridente e aterrador que o primeiro. Aproveitei o acesso de demência da coisa para correr como nunca, porém, alguns metros adiante, algo passou zunindo rente aos meus ouvidos. A cabeça de cabelos vermelhos fora lançada contra mim, indo de encontro a um caule poucos passos à minha frente. Consegui ver, de relance, que a face pendente de meu amigo desfigurara-se com o choque, como se fosse constituída por alguma massa de modelar. Aquilo me chocou, mas continuei correndo, chorando, esperando a morte. E ela não tardou em aparecer, quando algo gelado abraçou minhas costelas (quebrando algumas delas, inclusive) e, com estúpida violência, atirou-me contra o chão. Desse momento em diante, lembro apenas de uma dor lancinante, com epicentro no ombro esquerdo, irradiando-se como choque pelo resto de meu corpo. Em seguida, devo ter desmaiado, pois nada consta em minha memória. Fui acordar somente na manhã seguinte, no mesmo lugar em que eu fora arremessado.

Os pálidos raios de sol que inebriavam a aurora matinal entravam pelas pequenas fendas da moita em que eu jazia. Talvez esse seja a única explicação para o fato de aquela imensa e grotesca criatura não ter se alimentado de minha carne. Não creio que aquela coisa cheia de veias verdes já tivesse saciado seu apetite; e mesmo que o tivesse, teria me matado da mesma maneira, tamanha era a crueldade com que investia contra meus falecidos, porém eternos amigos. De alguma forma, a moita encobertou meu corpo e aquela mutação desgraçada não conseguiu mais me enxergar. E, graças à consistência macia daquela folhagem, não tive a totalidade de meus ossos esmigalhados contra o chão.

A repercussão na mídia do misterioso desaparecimento de meus amigos foi em vão. Seus corpos nunca mais foram encontrados; nem, ao menos, a cabeça de Polaco e os pedaços de Mosca. Arrepio-me ainda mais ao pensar que aquela coisa horrível possui resquícios de um intelecto que a permita eliminar vestígios norteadores de sua existência. Talvez seja apenas paranóia! A sofreguidão do Monstro da Serra o impelira a devorar tudo que lhe fora ofertado naquela noite de trevas e não restaria um único fio de cabelo, não fosse a imaculada e bendita moita.

Meus pais acham que o que aconteceu, na verdade, foi o efeito das drogas potencializando minha imaginação. Embora eu realmente tivesse acompanhado meus amigos nos cigarros de maconha, sei que, o que presenciei, não foi, de forma alguma, produto de virtuais lampejos de insânia. Minhas faculdades mentais, cedo ou tarde, denunciariam o distúrbio através de outras alucinações, ainda que mitigadas.

Alguns atribuem o ocorrido a um ritual satanista; outros, a um suposto serial killer que anda fantasiado. Dizem os psicólogos que o medo pode mudar nossa percepção da realidade e transfigurar as “coisas”... Quisera eu que fosse tão trivial quanto pensam! No abismo de meu inconsciente reside um ser maligno, que rosna baixinho, atacando-me em freqüentes pesadelos com seus terríveis e amarelados olhos bulímicos. No Vale dos Perdidos, ele ocupa o topo da cadeia alimentar...

Leonardo Grasel
Enviado por Leonardo Grasel em 18/06/2008
Reeditado em 22/06/2008
Código do texto: T1040022
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