"Permaneçam Dentro de Suas Covas!"

O que aconteceu com o estranho João Carlos foi uma tragédia sem tamanho. Ser espancado até a morte deve ser, de longe, a pior de todas as formas de fazer a inevitável passagem. Mas entendo que cada coisa que acontece em nossas vidas faz parte de um plano de merecimento, e, sob este paradigma consolador, atribuo a morte do meu amigo Juca a uma dívida cármica obrigatória.

Ninguém na pacata cidade de São Venâncio gosta de falar sobre este caso. Eu também não sou muito fã de dar corda a este tipo de história pois, quando chega a noite, dormir se torna um processo de superação dos mais profundos de meus medos. E a verdade é que, por mais corajoso que alguém seja, deve admitir que existem brenhas obscuras neste mundo que não devem ser cutucadas.

Tudo começou com o suicídio de um coveiro chamado Jacó. Ele trabalhava há menos de dois anos no Cemitério Maria Lourdes, e, apesar do medo infundado que as pessoas costumam ter de coveiros, Jacó era querido pela população do minúsculo município. Mas, tristemente, o bondoso Jacó acabou se deparando com uma verdade tão aterradora e intolerável, que acabou dando cabo da própria existência. Digo isto porque sei o que ele viu. Eu vi.

Por alguns dias o povo de São Venâncio manteve um luto respeitável pelo sacrifício de Jacó. Eu, que era um menino na época, dei muito trabalho para minha mãe, perguntando todo dia sobre princípios e causas da morte, os quais a pobre e ignorante senhora de meia-idade não poderia jamais responder. Quando eu quis saber o destino das almas suicidas então, minha mãe decidiu que era hora de me mandar para a igreja. Lá eu iria aprender melhor sobre os segredos de Deus.

Independente do rumo que minha vida tomou a partir daquele ano, a serenidade prolongada que reinava na pequena cidade foi levemente abalada com a chegada de um novo coveiro. Seu nome era Vicente, e ele em nada se parecia com o afável Jacó.

Seu Vicente era um velho mestiço, quase indígena, e andava sob trapos velhos que muniam a ele o aspecto de nada mais que um mendigo errante. Estava sempre fumando um cachimbo longo de madeira, e não sorria nem que lhe contassem a melhor anedota do mundo. Outra característica do ancião era seu amor pelo álcool. Vicente, em poucos meses, ficou conhecido como o maior cachaceiro de São Venâncio. E olha que a cidade tinha pinguços aos montes naquela época.

Além disso ele tinha a fama de ser um tanto tresloucado.

Não vou mentir. A verdade é que eu odiava Seu Vicente, e quase todo o povo dali também nutria esse sentimento, apesar das tentativas de disfarçar. Minha mãe também não gostava do velho, mas quando eu tentava compartilhar esse sentimento com ela, sabiamente ela me repreendia, dizendo que eu devia acima de tudo respeitar os mais velhos. “Eu devia tê-la ouvido”, penso eu todas as noites.

Meus três melhores amigos também tinham medo dele. A turma chegou a criar um apelido para o novo coveiro: “Mato Velho”, mas até hoje eu não entendo o porquê desta alcunha. Nenhum de nós tinha coragem de passar perto do Mato Velho, e também não ficávamos no mesmo lugar onde ele estivesse. E juro que não sei se hoje em dia eu, homem feito, agiria diferente se visse o estranho Vicente vagando pelas ruas com seu cajado. A não ser que eu não tivesse escolha...

Sim, ele tinha um cajado. Meus amigos e eu costumávamos nos sentar na varanda da minha casa duplex para conversar sobre isso. Criávamos várias hipóteses sobre a função real do pedaço tosco de madeira que o Mato Velho carregava consigo, e a noite, não conseguíamos dormir por culpa de nossos próprios devaneios.

Éramos quatro. Juca e Vanessa tinham dez anos, Clarinha tinha onze, e eu tinha doze anos. Apesar de ser o mais velho, eu era o mais medroso de todos quando o assunto mexia com mitos sobrenaturais. Quando a noite estava gélida e as sombras das árvores dançavam na parede do meu quarto, eu ia correndo para baixo do edredom dos meus pais.

Em um dia 13 de Agosto de algum ano que não poderei mensurar, minha mãe levou a mim e minha turma no aniversário de um colega da escola. Fomos a pé mesmo, pois quase todas as casas e lojas de São Venâncio eram tão próximas uma das outras que era até inútil ter um automóvel na garagem. Voltamos tarde, quase meia-noite, mas andar pelas ruas vazias do município não era motivo de temor, já que casos de roubo ou latrocínio na região eram raríssimos.

Nunca esquecerei aquela noite. Acredito que todas as pessoas presenciam eventos inexplicáveis em suas vidas, principalmente na infância, mas duvido que alguém tenha submetido sua sanidade a uma experiência tão mortificante como a que me assaltou. Ao passarmos em frente ao largo portão do Cemitério Maria Lourdes, ouvimos uma frase que, a princípio, não pudemos acreditar. Como se estivéssemos todos conectados por nosso inconsciente, paramos e fitamos a mortalha que cobria o horizonte da necrópole por entre as grades do portão.

Lá estava Seu Vicente. De costas para nós, apontava seu cajado em direção à lua, perfeitamente alta e magnífica na abóbada celeste. Árvores gris e secas balançavam com a mesma intensidade que nuvens negras deslizavam irrefletidas no plano tangente da esplanada que parecia culminar no mais profundo dos limbos. Pensei ter visto o mármore negro que lacrava um dos esquifes se arrastar lentamente ao lado do necromante maldito.

“Permaneçam dentro de suas covas!” disse o velho, e todos pudemos ouvi-lo claramente. Tive que me controlar para não gritar.

Meses depois desse evento, eu ainda guardava o terror em minha memória. A voz sepulcral do velho mago negro, ecoando por entre os féretros execrandos daquele cemitério pardacento, ainda passeavam buliçosos em minha mente de criança – e não posso dizer que as coisas mudaram hoje em dia.

- Ele é só um velho maluco – disse Clarinha para mim, dois anos depois. Porém mesmo ela sentia um inexplicável temor quando o inverno chegava, e quando a lua despontava alta no céu nos dias 13 de Agosto. Ainda mais quando outras pessoas da cidade afirmavam também ter ouvido àquela mesma frase, que me impossibilitava de tirar um cochilo que fosse sem ser ferido por um calafrio nefando.

- Esse homem devia sair da nossa vizinhança – disse eu naquele inverno. Talvez tenha nascido desta frase a mácula do destino de muitas pessoas daquela província.

Isto porque os meus amigos pareciam ter levado minha frase a sério. Estávamos adentrando lentamente no conturbado período da puberdade, e, por isso, acabamos tendo idéias pouco ortodoxas de como expulsar o Mato Velho de uma vez por todas da nossa pacata cidade. Por sermos crianças, acreditamos que podíamos salvar a vila de uma sombra maligna, agindo como se fôssemos os Goonies, ou algo do tipo.

- Vamos pegar aquelas roupas da festa à fantasia do ano passado – disse Juca, o primeiro a dar a idéia – eu vou me vestir de Frankenstein, Clarinha vai ser a mulher de branco, Vanessa vai ser o zumbi e você vai se vestir de vampiro – apontou para mim. Eu não estava muito satisfeito com a brincadeira. Como eu já havia dito, eu sempre fui um menino quieto, não gostava muito de me aventurar em terreno arriscado. Além do mais, eu estava começando a criar grilhões com os dogmas da igreja, e pra mim aquilo soava como uma brincadeira de muito mau gosto, que jamais faria Mato Velho deixar nossa cidade.

Naquele dia 13 de Agosto – dia que eu gostaria muito de apagar dos calendários de todo o mundo – colocamos nossas fantasias e saímos de fininho da minha casa, em direção ao peculiar cemitério Maria Lourdes. Era quase meia-noite. O frio e a solidão arrebataram-nos de tal maneira que, isolados naquela estrada escura e erma, tivemos a impressão que éramos as únicas pessoas vivas em um mundo negro e colossal.

Curioso é o fato de que nós não tínhamos nenhum plano de invasão ao cemitério. E ainda mais peculiar foi o fato do imenso portão de ferro do lugar estar aberto, como se aguardasse a nossa chegada. É claro que eu não gostei nem um pouco disso.

- Vamos voltar – disse eu, nervoso – ele já sabe que a gente tá aqui.

- Pára de ser covarde – inquiriu Juca a mim – você é o mais velho de nós! O que as meninas aqui vão pensar?

- Vamos logo, garoto – insistiu Vanessa – eu sabia que você ia afrouxar na hora H.

- Gente, se ele não quer ir, ele é que sabe... – disse Clarinha, fitando-me com ternura – ele não gosta desse tipo de coisa.

Eu empaquei mesmo, e ninguém ia me fazer passar por aqueles portões. Quando meus amigos perceberam que minha atitude não mudaria, entraram irritados na ravina enegrecida por uma noite sem estrelas. A lua estava obstruída pelas nuvens, e o horizonte havia sido tomado, subitamente, por uma estranha bruma que parecia expelida pelo pequeno bosque que ficava nos limites do cemitério.

O pouco que vi pelas frestas do portão de ferro foi suficiente para me fazer procurar um psicanalista no futuro. Nos dias de hoje preciso tomar drogas controladas para pegar no sono sem acordar minutos depois assolado pelos mais aflitivos pesadelos.

As crianças queriam espantar o Mato Velho. Juca ainda chegou a planejar uma frase para dizer depois que o estranho coveiro começasse com seus gritos: “não vamos permanecer em nossas covas. Vamos escoltá-lo para o quinto dos infernos!”.

Meu Deus! Quem é o maluco que tem coragem de entrar de madrugada em um cemitério e fazer uma barbaridade dessas?

Mas aconteceu. E não de uma maneira engraçada.

Ao longe, vi o velho se aproximar do cerne do campo de ataúdes, com cajado em punho, de olhar taciturno e vidrado. Meus amigos estavam escondidos atrás de um mausoléu branco, mas eu, aterrorizado com aquela visão espectral, nada pude fazer senão observá-lo pasmado pelo lado de fora do terreno.

Mato Velho ergueu seu cajado. O mundo parecia ter perdido a importância para ele, pois ele não olhava para lugar nenhum senão o céu estéril. Ao apontar o bordão de madeira para o firmamento, as nuvens que cobriam a lua foram arrastadas violentamente para longe, em direção ao norte, revelando um globo brilhante e desmedido denso em uma coloração parda surreal.

E então, veio a citação. Atingiu-me como um projétil nascido das profundezas.

“Permaneçam dentro de suas covas!”

Depois, silêncio absoluto. Nada mais pude ouvir, exceto uma coruja piando em algum lugar longe dali. O velho jazia em pé, com seu cajado apontado para o alto, imóvel como uma escultura. Nenhum sinal dos meus amigos.

Então veio o coice, que me fez despertar do mundo onírico que me aprisionava timidamente. Vanessa, Juca e Clarinha surgiram de seus esconderijos, berrando frases embaralhadas; gritos tão ensurdecedores e bruscos que o velho Vicente caiu para trás, alarmado. Rolou pela pequena colina gramada, e se espatifou próximo ao portão, perto de mim. Meu coração batia tão forte que pensei que fosse desmaiar.

- O que aconteceu? – berrou Juca para mim, lá no alto do platô – o velho desmaiou?

- Eu acho que ele morreu, Juca. Deus me perdoe! – então eu me afastei do portão pelo lado de fora, uns seis passos, e completei – Saiam daí logo.

Era tarde. O portão se fechou sozinho com uma lufada de vento que vinha do sul. Tentei forçar a abertura, mas era pesado demais pra mim. Mas como que tomado por uma verdade imutável senti que uma desgraça se avizinhava.

Então veio o fedor tórrido de podridão. E junto com ele, sons medonhos de clamores do além-mundo retiniram vertiginosamente para cada lado daquele campo funesto. Do umbral da entrada do mausoléu de mármore branco, um urro anômalo fez a terra tremer, destruindo lápides e fendendo esquifes de pedra polida. Uma escuridão mais negra que a própria morte desceu sobre a planície, despertando em mim um mudo pânico.

Quando tive coragem de olhar para dentro do cemitério de novo, pude ver a corrida desesperada de meus amigos em busca de proteção contra um mal que apenas eles haviam presenciado até então. Carnes putrefatas sob roupas decompostas deixavam seus tálamos eternos para singrar pelo extenso pátio contaminado há décadas por um horror ancestral. Não sei que sortilégio trouxe estas almas corrompidas para os corpos que a elas um dia pertenceu – talvez algum feitiço hediondo que Eritone tenha ensinado às bruxas em uma época de escuridão – mas atesto que aquilo foi real, tão real quanto o mundo incoerente que temos como cenário no tempo presente.

Sobre o pináculo de uma penedia, ao lado de um obelisco negro que posicionava-se escarninho contra a luz da lua, vi Vanessa ser mastigada violentamente por uma daquelas carcaças ambulantes. Aconteceu tão lentamente que eu pude ouvir cada choque daqueles dentes podres contra a carne da menina, que gritava em decorrência da atroz expiação. Estou certo que ela lutou com todas as suas forças para de desvencilhar daquela verminose humanóide, mas as garras imundas da besta perfuravam seu abdome e tórax profundamente.

Do outro lado, próximo ao muro carcomido, Clarinha havia sido encurralada por três ou quatro daquelas criaturas que excretavam grande quantidade de pus por seus tumores purulentos. Desprovidos de qualquer sentimento humano, os cadáveres atacaram minha melhor amiga sem piedade, dilacerando cada parte do corpo imaculado da garota, manejados por um apetite remoto e brutal. Alguns deles lançavam os pequenos ossos dela para longe, degustando exclusivamente da carne.

As visões de um fim infernal e apocalíptico me levaram a uma mudança brusca de sentimentos. Eu havia perdido Vanessa e Clarinha, e, talvez por um impulso insólito de minha parte, eu não podia permitir que o mesmo acontecesse a Juca. O menino corria pra lá e pra cá, com alguma desenvoltura, mas seria capturado em breve. Sabe Deus de onde eu tirei coragem para fazer o que eu fiz em seguida.

Usei toda a força que pude para empurrar o portão de ferro, e, limítrofe, entrei por uma pequena lacuna, que foi o máximo que consegui. Fui até o corpo do coveiro Vicente, esparramado no chão, e tirei o cajado de sua mão direita, com alguma dificuldade. O velho parecia não querer se livrar do item, mesmo depois de sua morte. Corri até o centro da necrópole o mais rápido que pude, antes que os zumbis notassem minha presença. Apontei o cajado para a lua infiel que brilhava no céu, escarnecendo os seres humanos, e pronunciei aquelas palavras que tanto me causaram asco, poucos anos atrás: “Permaneçam dentro de suas covas!”

Os cadáveres estancaram. Aos poucos, evacuaram a terra garrida e se dirigiram lentamente para suas respectivas tumbas, emitindo ruídos graves de indignação. A escuridão que tomara o lugar foi se dissipando, e as luzes dos postes na estrada puderam ser novamente contempladas. A estranha cerração vinda do bosque foi se movimentando e se alocando novamente pelas árvores secas em direção ao sul. Aos poucos, a macabra turba oriunda de algum círculo do Tártaro foi se abrandando silenciosamente, e se posicionando novamente a sete palmos de terra.

- Onde estão as meninas? – perguntou o entorpecido Juca – pra onde elas fugiram?

- Elas morreram – disse eu, firme, ainda com o cajado apontado para a lua – morreram por sua culpa!

- Vamos fugir daqui!

- Não! Temos que ficar aqui, até o dia amanhecer! – ordenei, fazendo questão de fitar o garoto com o mais profundo ódio que pudesse emitir – Esses monstros vão se levantar de novo, caso não façamos isso. E se eles chegarem à cidade?

- Eu não quero ficar aqui – disse Juca, choroso, preparando-se para correr – eu quero ir pra casa...

- Se você sair eu abaixo o cajado!

Ficamos lá, até o amanhecer. Nossos pais, desesperados, nos procuraram no dia seguinte. Estávamos bem na calçada em frente ao cemitério, dormindo profundamente, e encolhidos no muro branco sob o casaco esfarrapado do velho Vicente. Quando a polícia quis saber sobre o ocorrido – a morte do Mato Velho e o estranho desaparecimento de Vanessa e Clarinha – dissemos nada mais que a verdade, e fomos vítimas de todo o tipo de escarnecimento. Eles jamais acreditariam em uma história tão absurda.

O que aconteceu depois disso se apresenta pra mim quase como um delírio. Não consigo me lembrar de muita coisa daquela época, mas admito que não pude dormir desde então. Perdi veementemente o contato com Juca que, e como vim a saber alguns anos depois, tornou-se o coveiro da cidade. E contam os boatos que meu velho amigo João Carlos rendeu-se à loucura, cumprindo fielmente o ritual de evocar a citação de Mato Velho no cemitério Maria Lourdes, a cada dia 13 de Agosto dos anos que se seguiram.

Isso até ontem. Neste ínterim, Juca está sendo enterrado no mesmo lugar onde presenciou o horror que o levou à demência. Foi severamente espancado por golpes de porrete no dia anterior, e eu acabei sendo indiciado como o principal suspeito do homicídio. Mas mesmo enclausurado nesta claustrofóbica cela da cadeia de São Venâncio, sinto que agi corretamente apagando este homem desequilibrado de sua existência neste mundo.

Desta maneira, desejo com toda a força do meu coração, que as almas Vanessa e Clarinha descansem em paz. Quanto ao espírito do velho Vicente, tenho certeza que se sente desforrado neste momento, ainda que almeje conservar-se aqui ao meu lado, para toda a eternidade.

Diego Risan
Enviado por Diego Risan em 16/06/2008
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