meu pobre amigo jogador

Meu pobre amigo jogador

Prazer! Não sei se esta é a definição do sentimento em conhecê-lo, ainda na época em que éramos acadêmicos de Letras. Recordo-me das notáveis conversas pelos corredores, reflexões, análises e discussões sobre inúmeros pontos de vistas, literários, sociais, humanos e filosóficos. Cultivei por ele imenso respeito e carinho, por sua sabedoria e pela forma como que me inspirava a lutar pelos ideais. Por coincidência, cultivávamos os mesmos sonhos: idealizávamos seguir os caminhos das letras. Matávamos as aulas e íamos nos embriagar, de vinho e outras coisas, como as belezas femininas que inundavam o ambiente, sempre bem perfumadas, penteadas e esbeltas, que faziam brotar em nossos corações o sentimento do amor.

Foi numa dessas afortunadas noites que meu amigo conheceu a mulher com quem havia de se casar. Sempre com seu doce hábito em recitar poemas, dizer coisas belas e singulares, que conquistara-lhe o espírito, e fizera nascer em Roberta o amor infinito.

Dói-me na alma dizer, e é totalmente o contrário do que desejava, que os fatos que descreverei nesta narração pouco a pouco se tornarão horrendos, e se iniciam lamentavelmente a partir destes instantes, pois até o presente comentei apenas os pormenores que me puseram a conhecer e sentir afinidade à personagem. Toda maldição e funebridade que cabem a mim o ofício de narrar, começam agora, visto que o terror e a melancolia na vida de meu amigo se sucederam após o seu casamento e perduram até os dias contemporâneos.

Desde aqueles tempos ele foi viciado em álcool e outras drogas. Por ser considerado sábio, não era questionado quanto a seus atos. Por achar tudo tão simples, não cessava em buscar algo à sua vida que pudesse torná-la mais prazerosa, mais excitante, para aí sim, ser cultivado algum significado em sua triste e melancólica passagem pela existência. Várias vezes não se suicidou, pois sabia que para aonde fosse voltaria a viver.

O que sempre desejou que não tivesse acontecido e que em absoluto repudiava, foi a fecundação do esperma no óvulo de sua mãe. Ele sempre reclamou por ter sido ele em meio aos 300 milhões a vir à vida.

Quando se casou, se viu como um ser humano normal, um simples homem que entrara na mesmice e na monotonia da humanidade. Seus pais, descendente de famílias abastadas, cessaram-lhe dinheiro após o matrimônio, e teve ele de arrumar um emprego para sustentar sua nova família.

Logo, digo poucas semanas após o casamento, a monotonia e a depressão adentrou terrivelmente em sua alma. Um sentimento de desgosto começou a aterrorizá-lo e já em seu semblante se notava uma maldita caricatura do pânico e do desespero. A cocaína, e outros produtos usados para se dopar, já não lhe traziam nenhuma sensação de alívio em relação ao mundo de horror em que se encontrava. Quando seu filho nasceu, o terror pela vida crescera mais ainda. Ele achava que não era digno daquilo que estava vivendo, ele não se achava capaz de dar uma educação aquele pequeno ser que viera ao mundo. Passou a se recusar em adentrar na sua residência. Passava as noites em bares, jogando, bebendo, tabaqueando. O maior sofrimento era o momento de se levantar da mesa, pois lhe doía voltar à vida normal, à vida monótona dos seres humanos, assim pensava.

Todas as noites, ao sair do trabalho, ia para o bar. Não tenho noção do porquê em o destino lhe propiciar essa macabridade, expor-lhe na alma esse trágico desespero, e ele nunca analisava qual o prazer em ficar naqueles ambientes mórbidos e fétidos, entre homens barbados e sujos, naquela atmosfera enfestada de fumaça de cigarro, e no cheiro de cerveja podre. Só queria fugir da vida.

Meu amigo, nesse tempo, não aceitava meus conselhos, e eu o via perdido, sem nenhuma chance de recuperação e nenhuma salvação, a não ser a morte, que estava lentamente se aproximando, se o pobre não tomasse alguma providência urgente.

Numa passagem por lá, no intuito de tentar mudar-lhe a postura, em que pedi dois uísques e nos sentamos numa mesa, esforcei-me a persuadi-lo a voltar a escrever, a ver as coisas belas da vida e cuidar de sua família, pois uma esposa invejável e um pequeno ser que continha o seu sangue precisavam dele, e me disse ele uma coisa que gelou-me a espinha, que não lhes relatarei, por que lhe confiei segredo, e uma vez prometido a não relatação... (se um dia, nobre leitor, me encontrardes por essas andanças da vida, e me indagares sobre o que meu pobre amigo me confessara, poderei até dizer-lhes... talvez!)

Mas acontece, já havendo alguns anos que ele estava nesse não viver, nessa lastimável precipitação, algo subitamente inefável aconteceu, que até meu amigo tomou como irrealidade: Vinha ele retornando para casa após uma noite de profunda bebedeira e jogatina, e ao chegar em casa e abrir a porta, uma sensação de inferioridade e depressão o atingiu por completo, deixando-o sem ações, de cócoras. Sua esposa, linda e bela como nunca, estava o esperando, com um doce sorriso e um semblante de bem-aventurança que só num anjo poderiam se confirmar. Ao entrar ela o abraçou, e seu leve perfume penetrou-lhe na alma. Envergonhadamente ele se esquivou do meigo abraço. Ela disse que poderia preparar-lhe o banho, mas devido a surpresa, não sei se agradável, mas certamente desapropriada e inimaginável por seu espírito, o fez não aceitar, e mandando-a voltar para a cama, ele mesmo o fora ao banheiro.

Na fumaça e nos converseiros da taverna no dia seguinte, ele percebeu, mesmo que abarrotado de dúvidas, que aquilo não era prazer. Se fosse, não era um prazer orgulhoso. Profundo. Mas superficial, irrisório. Enquanto os homens jogavam e fumavam seus grossos tabacos, ele refletia sobre sua melancólica existência, e aquilo que antes lhe trazia conforto, passara a lhe trazer ódio e terror, e vergonha de seu ser.

Ao se aproximar da residência, ele notou que havia um aroma diferente e solene pelo ar. Percebeu que vinha de sua casa. Entrou na porta, e teve uma das surpresas mais perfeitas de sua vida: sua mulher acabara de preparar um prato afrodisíaco, uma comida que nunca saboreara. Se vestia com a mais fina e nobre veste que havia e que poderia deixar sua pessoa extremamente linda. Se embriagou com a beleza de sua esposa, com o aroma da comida, e, a depressão o atingira... a vergonha... o pensamento de fugir dali, de ir para algum lugar e tirar sua própria vida.

Mas, ela veio caminhando docemente para sua direção, e com um sorriso terno o beijou docemente na boca. Sua língua passava uma doçura fascinante para a sua boca, ele retornou o beijo, mas sentia nojo de si, reparara que não era digno daquilo.

Ao terminar o primeiro dos muitos beijos que estavam por vir naquela noite e por toda a infinita vida, ela olhou profundamente nos olhos do marido e disse que o amava. O rosto dele .... enrubesceu, abaixou a cabeça.

Ela o levou ao banheiro, deu-lhe um banho que ele até hoje se lembra quando se encontra a sós, e depois foram jantar. Ao amanhecer o dia, ele saiu antes do sol para o trabalho.

Prazerosamente, movida pelo constante e inefável sentimento, todas as noites ela o esperava voltar de sua jogatina e das bebedeiras.

Tudo nessa vida tem um final, ou tem um meio tempo para se repor as energias, analisar e refletir, se as coisas estão certas ou erradas. Na derradeira noite na taverna, enquanto reparara seus amigos da boemia: olhou em um, o gordo nojento, jogador e beberrão, que ria e escarrava pelo chão, e depois olhou para outro, um homem sujo que não fazia outra coisa a não ser jogar, beber e fumar, sem família, casa e amigos, e outros ainda, e se viu naquele submundo drástico e fétido, onde a densa fumaça tirava toda a pureza do ar e o álcool era a única fonte de prazer daqueles seres, e via as cartas de baralho nas mesas e nas mãos do homens, e via em sua mão a fonte de melancolia e tristeza e de inferno, e numa carta que expressava o rosto de uma serena dama; analisou sobre o queria para sua vida. Teve naquele instante a certeza de que ali era realmente inferno. Tudo aquilo não era vida, ali era o poço. Tinha o céu e o inferno , era só escolher, era só decidir que sua felicidade estava a sua espera.

Imediatamente, meu pobre amigo se levantou da mesa, deixando ali todo seu passado e todo sofrimento e dor, e decidiu se emanar daquele terrível viver em que se encontrava. Saiu caminhado a passos decididos, iluminado pela luz do luar e o brilho das estrelas que chamuscavam no exuberante céu, e era a primeira vez depois de casado que olhara para o céu, ação que o fez rir de si. Coisa que fizera sempre quando solteiro, era contemplar a natureza, e agora teve a noção das coisas que perdera em todo esse tempo. Seguiu esperançoso para o céu que o esperava, para os braços e o perfume de sua amada.

Aproximando do portão, percebeu algo que imaginou ser obra exclusiva do sobrenatural. Havia um clima melancólico velejando pelo ar, e a casa estava em amplo silêncio. Sempre as luzes acesas, desta vez se encontravam apagadas. A porta estava entreaberta e balançava à moda da brisa.

O silêncio que havia no recinto era aterrador, meu amigo gostava era de barulho. Viu algo no chão que lhe doeu na alma: o porta retrato de casamento partido ao meio.

Abaixou lentamente e juntou as partes. Lágrimas, após muito tempo, escorreram dos olhos. Ele não imaginava o que acontecera. O mundo para ele que havia sido de constante macabridade, agora estava preste ao ápice de toda a dor.

O céu que esperava encontrar, sensação dava, de que não queria vir ao seu encontro. Levantou e foi se dirigindo a outros cômodos da casa. Em sua mente havia lembranças de seus pecados. Temia ser castigado de alguma maneira pelas suas faltas.

Já tinha ouvido falar em se pagar na terra o mal que se pratica, e agora se via em tal situação. Temia ele, sobre o que poderia ou não encontrar atrás da porta. Um dos últimos suspiros que lhe aferiu a espinha, foi o momento que viu marcas de sangue pelo chão.

Aumentou seus passos em direção a seu quarto, queria logo saber o que tinha acontecido.

A imagem que viu a seguir, em cima da cama, foi a pior que já vira em toda sua vida. Uma dor fina e surda corroeu seu espírito, e o desprazer pelo viver atingiu seu ponto culminante, pois na cama do casal, jazia sua esposa com uma faca cravada no peito, e ao lado dela, seu filhinho dormia como um anjo.

Por alguns segundos, viveu todas as lembranças do existir. Buscou os momentos felizes e melancólicos que já havia tido, e reparara que momentos alegres eram irrisórios. As lágrimas em jato surgiam, e o choro queria ser emanado. Ele queria fugir dali, queria fugir de si. Sabia agora que ele era o ser mais repugnante que conhecera. Ele sentia uma vergonha e arrependimento de sua pessoa, que jamais algum ser humano sentiu tal sentimento por um inimigo. Ele era agora seu principal inimigo.

Olhou o seu filho ao lado. Seu destino agora era filho. Se não fosse aquele pequenino ser, ele também se desfazia por inteiro, se queimava, se liqüefazia...

Caminhou morbidamente para o rumo de sua amada. Contemplou-a por longos dolorosos segundos. Deu um mudo e demorado beijo em seus lábios, reparara que ainda estavam quentes. Pegou seu filho no colo, e se foi embora daquela fim de mundo.

Antonio Fabiano Pereira
Enviado por Antonio Fabiano Pereira em 19/01/2006
Reeditado em 24/10/2010
Código do texto: T100842