Conto de Necrotério 1 - Exame Post-Mortem

- Cheiro desagradável, esse.

- É, eu sei. Ninguém gosta.

- Não estou me referindo só ao odor de formol do laboratório de patologia.

- Eu sei.

- Está fedido demais.

- É um cadáver em decomposição, você quer o quê, odor de rosas ?

- É algo que acaba com a dignidade de qualquer um.

- Quando se chega nesse ponto, meu amigo, não há mais dignidade. Há apenas uma carcaça apodrecida e deprimente.

- ....

- Vou começar. Ok... ligando o gravador...

- Por onde você começa ?

- Shhhhh não me interrompa, por favor. Pelo usual. Observação dos aspectos macroscópicos do cadáver.

- Sem abrir ?

- Ainda não. Caluda, agora. Vamos lá... homem de aproximadamente 35 anos, caucasiano, 1,82 m de altura, 90 kg de peso, cabelos e olhos castanhos, sem marcas de nascença. Nome... deixa eu ver na ficha... cadê a ficha ???

- Crisóstomo Arruda.

- Isso. Obrigado... Crisóstomo ??? Hahahahahahaha !

- Que falta de respeito é essa ?

- Er... hehehe, é verdade, é desrespeito. Mas que nome...

- Apelido Cris.

- É ? Bom, se você diz.... e Cris é melhor que Crisóstomo, sem dúvida.

- ....

- Hum, continuando... grande ferimento perfuro-cortante na caixa torácica, entre a quinta e sexta costelas, com bordos irregulares e escarificados. Pelo tamanho do corte e relativa precisão, indica o uso de arma branca ou qualquer outro objeto igualmente afiado. Penso numa faca serrilhada. Observando o ângulo de entrada e fazendo uma projeção pelo tamanho do corte, calculo uma lâmina de 15 a 25 cm. Com certeza atingiu o coração.

- Quando vamos saber com certeza ?

- Quando o peito for aberto.

- Ok. Agora ?

- Você está com pressa, hem ?

- Você não estaria ?

- Sinceramente ? Não.

- ....

- Putz, cara tenso... – o Dr. Lamontti riu hesitante da piada particular, antes de continuar – Demais cortes espalhados pelo corpo... cortes profundos na coxa direita, 15 cm de comprimento, panturrilha esquerda, 8 cm. Unhas arrancadas dos pés e dos dedos indicador e anular da mão direita.

- O senhor trabalha nesse turno por quê ?

- Resolveu dar para conversar, é ? Por que, o que estou fazendo aqui te incomoda ?

- E muito. O senhor pode imaginar. Bem... e então ?

- O turno noturno ? Para não ter que ouvir outros falando, e interrompendo meu trabalho a todo momento.

- ....

- Meu Deus... judiaram desse corpo... há queimaduras também... segundo e terceiro grau. Quem seria capaz de tanta barbárie ?

- Loucos. Psicopatas.

- Pára de falar besteira. Psicopatas são solitários por natureza, não matam em bando.

- Esses matam. A prova está frente a seus olhos.

- Mas como ???

- Um culto satânico. Eles queriam trazer algum demônio de alguma espécie ao mundo.

- Mas falharam. E nessa, trouxeram tanto sofrimento a um ser humano.

- É verdade. Incontestável.

- Um ser humano inocente...

- Não. Não há adultos inocentes. Não nesse mundo. Só os idiotas. E esse espírito não é idiota.

- Posso ver que não, está...

- ... diante de seus olhos.

- Isso aí. Ahn... vou abrir. – alguns minutos depois, o silêncio do necrotério foi quebrado pelo ruído de uma serra de osso. – Afastando as costelas... hmmm confirmado. Pulmões e coração em posicionamento normal. Pulmões de fumante... prestes a ganhar um câncer ou enfizema.

- Mas a Morte chegou antes... não foi uma sorte ?

- Sorte ? Com essa morte ? Você acha ?

- Mais que isso. Um milagre.

- Se te faz sentir melhor pensar assim... vou abrir um pouco mais.

- Essa crepitação... é assim mesmo ?

- Oh, sim, a serra faz uma tração nos ossos que leva o corpo a “sacudir”, digamos assim. Força aplicada a um objeto em inércia é igual a movimento.

- Objeto ???

- Desculpe. Corpo. – ruídos molhados – Confirmada a causa da morte: destruição do músculo cardíaco. Vê ?

- Desse meu ângulo, não. Dá para você levantar um pouco mais, para eu poder enxergar melhor ?

- Ok.

- Putz, não sobrou nada. Essa coisa estraçalhada aí é...

- Era. Devem ter esfaqueado várias vezes, para fazer isso. Não é à toa que o corte nas costelas está horroroso daquele jeito. E volto a afirmar: faca serrilhada. Um tanto exagerado para um sacrifício limpo, se foi o caso, mas esperar o quê de psicopatas ?

- Eles foram pegos ?

- Quem, os assassinos ? Ah, sim. Todos mortos.

- Mortos ?

- Não houve outro jeito. Eles não iriam se render, e aqueles animais, se eram mesmo psicopatas, como você afirma, não tinham cura... eram perigosíssimos vivos. Visto o que fizeram.

- É.

- Cavidade abdominal. Cortando... nossa, quanto sangue. Hemorragia interna, óbvio. Órgãos em sintopia, tamanho e coloração normais, aspecto consistente com o tempo decorrido da morte.

- ....

- ....

- ....

- Doutor ?

- Hmmm ?

- Por que se calou ?

- Não está vendo ? Preciso fazer as anotações sobre os órgãos internos.

- Seu gravador continua rodando. Assim, vai acabar a fita.

- Verdade, obrigado. Você poderia por gentileza...

- Não consigo.

- Opa, verdade, de seu lado não dá... deixe, eu mesmo desligo. Pronto.

- Falta muito ?

- Não. Só a cabeça.

- Isso é mesmo necessário ? Quero dizer, a causa da morte já foi diagnosticada e...

- Procedimento padrão de necrópsia.

- Entendo.

Mais ruídos de motor. Agora, um mais potente. Sobre a mesa, o cadáver trepida ainda mais.

- Isso deve dar uma tremenda dor de cabeça.

- Ora, ora, brincando ? Isso é ótimo, gosto de seu modo de encarar as coisas. Realmente, se não fosse um tecido morto, a dor seria insuportável.

- Doutor, com essa sua forma de encarar as coisas, consegue acabar até com o senso de humor de um defunto !!!!

- Hahahahahahaha você é uma graça !

- ....

- Bom, retirei o cérebro, aliás uma bela peça de... 4,1 kg. Em perfeitas condições. Esse, vou conservar em formol... para não achar depois que fiquei maluco.

- Hein ???

- QUÊ ? Você ainda falando ???

- É o que parece...

- Mesmo depois que retirei seu cérebro ? O que vou fazer com você, Crisóstomo ?

Rio de Janeiro, 20 de setembro de 2002.

Mônica Virgo
Enviado por Mônica Virgo em 06/04/2005
Reeditado em 06/04/2005
Código do texto: T10054