O Mapa da Maldição

Quando nos mudamos para uma outra cidade, encontramos na casa onde iríamos residir alguns resquícios de seus antigos moradores, e logo começamos a nos desfazer dos mesmos. Uma coisa, no entanto, chamou-me a atenção, no fundo de um baú velho, carcomido por cupins, encontrei um papel amarelecido e dobrado num canto. Com um certo asco, segurei-o em minhas mãos, e lentamente o abri. Seu interior deixou-me intrigada, era como se fosse um mapa e uma história representada por alguns desenhos semelhantes aos das iluminuras medievais. Havia um título, escrito numa língua que eu não conhecia, mas no qual distingui, uma única palavra “Bavária”, imaginei que seria um relato fantástico desta região, fantástico não apenas por ser uma história de época que ali se apresentava, mas também pela ordem dos acontecimentos ali registrados.

Via-se no interior de uma taberna uma jovem, seu rosto mostrava uma certa placidez, o que era singularmente estranho, pois estava ela a servir uma mesa repleta de homens fortes e alvos, como pressuponho que tenham sido os bárbaros germânicos; o que era de fato assombroso, e que destoava da frágil aparência da moça, eram os seus olhos. Havia neles uma malignidade, algo de sombrio e misterioso. Em outros quadros, apresentavam-se cenas sangrentas de batalhas e assassínios, e em todas elas, a mesma jovem estava representada num plano estratégico, visível e com os mesmos olhos. Mais adiante, via-se a figura de uma moça, que pelos traços, deveria ser a mesma dos outros quadros; percebia-se nitidamente que a vida não mais habitava aquele corpo, que estava enrolado num manto branco, sobre uma fogueira, que é um hábito de culturas primitivas. Nos quadros que se seguem, não mais surge a moça. O quadro a seguir, representa um grupo de pessoas, todas de costas, vestidas de negro com as mãos estendidas para o alto. Nos próximos três quadros, estão representados animais, que, geralmente são denominados por pragas: uma barata, um rato e um escaravelho. No último quadro, simplesmente aparecia o vulto de uma mulher totalmente branco, ou seja, uma forma não muito definida, com os braços levantados ao céu.

Neste ponto, findava a suposta narrativa. Chamei por meus familiares e mostrei o objeto; meu pai tomou o papel de minhas mãos e o analisou minuciosamente. Bem onde findava o desenho, avistou alguns números escritos numa letra miúda, quase imperceptível, mas não foi possível saber do que se tratava. Deixamos o suposto mapa de lado, e fomos nos organizar.

Na sétima noite, passada na tal casa, um fato ocorreu. Estava eu deitada, já repousando, quando comecei a sentir uma certa inquietação. Despertei, sentindo como se algo corresse pelas minhas pernas, no mesmo instante pulei da cama e acendi a lâmpada... qual não foi minha surpresa ao ver uma grande e negra barata sobre os lençóis... precipitei-me para extinguir sua mísera existência, mas todos os meus esforços eram em vão, pois ela voava de uma parede a outra, como a zombar da minha figura; depois de um quarto de hora, acertei com precisão, um golpe sobre ela... claramente a vi cair ao chão, já inerte, e mais me espantei quando a vi tornar-se pó e desaparecer diante das minhas vistas. Esfreguei os olhos já cansados, procurei-a ainda por baixo das camas e dos objetos, mas não a encontrei; de fato, ela desapareceu diante dos meus olhos.

Tentei dormir, mas debalde conseguia esquecer o ocorrido. Lembrei-me, então, daquele papel com aquelas figuras enigmáticas. Procurei por uma lupa, e debrucei-me sobre a escrivaninha para descobrir que números eram aqueles tão miúdos. Senti uma espécie de calafrio percorrer-me a espinha, quando contemplei que se tratava de uma data e de uma hora, mas não era uma simples data e uma simples hora, e sim, a data e a hora do meu nascimento. Por mais que eu tentasse descobrir do que se tratava aquilo, menos encontrava respostas... não comentei o fato com mais ninguém, guardei em silêncio, na expectativa que a meditação no assunto me trouxesse as respostas que eu buscava.

Mais outra semana se passou, e mais uma noite chegou em que meu sono foi perturbado por ruídos insistentes e irritantes. Ao colocar os pés para fora da cama, senti algo quente e peludo correr sobre mim... meu coração disparou, novamente corri para acender a lâmpada e fiquei horrorizada com a presença de um rato grande e cinzento correr como um louco, sem sentido, de um lado para o outro...

Mas, com a iluminação a tomar todo o ambiente, a criatura asquerosa estacou e fixou seus olhinhos repugnantes e raivosos em mim, eu tremia, nada conseguia dizer, nem um grito escapava-me dos lábios. Ele abriu sua boca mostrando os dentes afiados e amarelos, numa atitude ameaçadora e partiu, com fúria em minha direção, para atacar. Fiquei estática, o único gesto que recordo de ter realizado, foi cobrir o rosto com as mãos... senti os dentes fixados em meu pé, e uma vertigem me tomar a ponto de desmaiar.

Quando acordei, estava em minha cama. Não lembro de ter ido até ela, de ter me deitado, e muito menos de que alguém tivesse entrado no meu quarto, pois tenho como hábito trancar a porta ao ir dormir. Imediatamente descobri minhas pernas e procurei a marca que provavelmente estaria no meu pé, mas não havia nada... absolutamente nada, nem um arranhão, nem uma gota de sangue nos lençóis. O papel estava sobre a escrivaninha, dobrado, da mesma forma como eu o havia deixado. Abruptamente o desdobrei, e na mesma hora, percebi que alguma coisa muito pequena caiu no chão, abaixei-me e imediatamente senti toda a minha repulsa retornar, ali, em minha frente, estava um dente minúsculo e afiado. Tentei argumentar os fatos com os meus familiares, foi em vão, a única coisa que me disseram é que simplesmente haviam pegado um rato com a ratoeira. Fui ao lixo e com asco, observei o cadáver, mas não era o ser grotesco que me atormentara na última noite.

Na noite seguinte, não consegui repousar, lembrava os acontecimentos misteriosos envolvendo os dois animais repulsivos, revirei-me de um lado a outro na cama e finalmente decidi levantar-me e entender o que era aquele mapa, ou aquela história.

Quando abri o papel, eu não vi o rosto da moça, mas vi o meu próprio ali estampado. E as cenas se sucediam como num filme, moviam-se; eu não consegui conceber se estava sonhando, se aquilo era fruto da minha mente já perturbada ou algo do gênero, sei que firmemente segurei o papel em minhas mãos, enquanto via toda a história se apresentar para mim.

Eu me via no lugar da moça, via os atos cruéis praticados por mim, via coisas abomináveis, que completavam aquelas cenas e que eram todas manipuladas pela minha pessoa. Via a minha própria morte e o ódio das pessoas contra o que eu havia feito, e mais do que isso, percebia que aqueles animais eram uma maldição lançados para mim, por tudo o que de ruim eu havia feito. Sentia, no transcorrer dos fatos, as lágrimas correrem pelos meus olhos, e foi então que compreendi o que era, o que significava aquele papel.

Era um mapa de fato, um mapa da minha outra vida, da reencarnação passada. A data, a hora, os acontecimentos em geral revelavam isso. Deduzi que vim da região da Bavária, e que aproveitando-me da minha aparência esbelta havia cometido toda a sorte de vilezas e maquinações pérfidas, e que em decorrência disso, uma maldição recaía sobre mim; essa maldição teria fim na vida presente, pois a última figura lembrava alguém alcançando a redenção. Talvez, o fato de ter encontrado este mapa na nova casa onde iria habitar, seria uma trama do destino, que a todos persegue, para mostrar minha verdadeira identidade. Foi então, que percebi, que ainda faltava um animal, o escaravelho, e aqui gelou-me o coração, tive medo da dor, tive medo da morte, tive medo de sentir medo. Ainda havia de enfrentar aquela última maldição.

Esperei, esperei angustiada e silenciosa pelo sétimo dia, até que finalmente o sono me venceu, e depois de tantas agitações consegui repousar. Mas, que repouso breve... ouvi grunhidos, barulhos angustiosos. Na mesma hora, despertei e pensei na maldição... não consegui ter forças para me levantar da cama, estava apavorada, e inexplicavelmente a luz se acendeu.

Não consegui nem exprimir direito o pavor que senti, ao ver o quarto todo coberto de escaravelhos agitados, negros e brilhosos. Tentei levantar-me, lançar algo em direção a eles que os fizessem desaparecer, mas, não tinha como me mover... pensava em mil coisas, mil soluções, mas nenhuma era possível ali. Foi então que senti algo erguer-se, fluir dentro de mim, e dei um grito, o grito que saiu do mais íntimo do meu ser, e também o grito mais horrível, tenebroso e áspero que já ouvi em minha vida.

Na mesma hora, acordei com a luz do dia, e minha mãe a entrar no quarto, pois naquela noite, eu, por descuido, esquecera a porta entreaberta. Tudo não passou de um sonho...

Ana Claudia Brida
Enviado por Ana Claudia Brida em 14/05/2008
Código do texto: T989338
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