O rubi cigano
 
 
 
A água quente escorria lavando a pele suada, relaxando os ombros, encharcando os cabelos compridos de Moreno. Estava cansado e dolorido.
 
Mais uma loba faminta e ia precisar de Viagra para dar conta do serviço.
Depois de uma certa idade,  as mulheres ficam mais exigentes e querem tratamento completo.
Foi-se o tempo das acanhadas e inexperientes, atualmente diziam o que queriam e até como deveria ser feito.
A mulher já  acertado a conta do motel: - Preciso ir embora agora, tenho compromissos e não posso atrasar. Você é muito lento querido, anda com isso, está pior que minha neta se arrumando.
Moreno deu uma última olhada no espelho, alisou a roupa preta e o cavanhaque bem aparado. Os cabelos longos eram o atrativo principal.  O  ar cigano que a todas encantava.  Dono de uma lábia capaz de convencer qualquer uma que era a mulher da sua vida. Moreno era um pilantra amante da boa vida e da madrugada.
 
Um oportunista romântico, Don Juan de Marco Tupiniquim, sempre enrolado com mil mulheres.
Assediado o tempo inteiro, o celular não parava de tocar, choviam convites, presentes, pedidos e promessas. 

Aos quarenta anos,  nunca havia trabalhado, sempre havia uma namorada ou noiva custeando suas maiores loucuras. Já havia sido cantor, dançarino, guru e ultimamente era apenas músico místico.
 
Agradável , com sua  boa conversa acabava ficando semanas e semanas fora de casa, vivendo aparentemente com a família que o acolhia. 
Após algum tempo,  decidia ir embora, juntava suas coisas e desaparecia.
 
Com o passar dos anos tornou-se um vício conhecer novos lares. Viver por algum tempo uma vida diferente e depois pular para a aventura seguinte. 
Perdeu as contas de quantas famílias conheceu. Sempre como namorado ou noivo da dona da casa.
Era capaz de dançar com a avó, todas as tias e ser a atração da festa.
Dobrar o pai mais severo e conquistar os irmãos das namoradinhas para ele era muito fácil. Afinal também era um grande mentiroso.
 
Mudava constantemente as histórias de suas origens que dependendo da ocasião passeavam pelo Oriente, Índia , África e Europa sem escalas.
Puxava linhagens imaginárias e contava as melhores histórias. Era fascinante assistir como as pessoas deixavam-se enganar e partilhavam os delírios de Moreno.
 
Mas viver sem rumo não era o suficiente, com o tempo passou a colecionar pequenas lembranças. De preferência jóias e produtos importados. 
As mulheres nunca percebiam que havia sumido um brinco ou um anel. Até ser tarde demais para encontrar o amante.
 
O bar estava lotado, o público quase todo feminino e alvoroçado com o cantor. Meninas e mulheres de idades variadas exibiam o melhor visual.
 
Naquela noite,  Moreno cantou ‘’Espanhola’’ com toda emoção.
 Caprichou nos graves  fez o tradicional olhar carente e a platéia veio abaixo. Gritinhos e aplausos.
 
Sentia-se um rei em seu harém, cercado de ex, atuais e futuras. Havia convidado todas sem distinção. 
Na realidade nada significavam além de bons momentos e nunca havia gostado realmente de nenhuma. 
 
O que realmente o excitava era a caçada. Naquela noite havia uma garota linda na platéia. Olhos verdes e longos cabelos pretos, pele clarinha e ar de princesa. Ficou fascinado com a desconhecida.
  
 Visivelmente nervoso,  quase derrubou o dono do bar:- Rapaz, casa lotada, que loucura, nunca vi tanta mulher bonita aqui, vai virar atração principal....
 
- Valeu Marcio, te agradeço muito. Obrigada mesmo.
 
O amigo riu,  sabia que Moreno estava com pressa para encontrar alguma mulher. Conhecia a fama de conquistador e não quis atrapalhar:- Vai..anda logo que já vi tudo...boa sorte amigo.
 
Moreno procurou pelo bar, foi até o terraço e  jardim. Já estava quase desistindo quando sentiu o toque macio no braço:- Oi, adorei seu show.
- Nossa, estava justamente te procurando. Fiquei emocionado quando te vi. Cantei pra você esta noite.

Ela riu, um sorriso irresistível, um perfume gostoso de jasmim chegou até Moreno:

-  Eu estou encantado, juro que nunca senti uma atração tão forte. Mal te vi e já estou apaixonado.
- Vai ver é de alguma vida passada, não acredita em destino?
- Claro, sou esotérico,  mago e  neto de ciganos
- Mas é evidente, este carisma tinha que ter uma explicação. É incrível seu poder de atração. Que lindo seu colar, posso ver?
- Claro. Foi do meu bisavô, são rubis húngaros, os primeiros ciganos fizeram esta jóia para o casamento de uma princesa, dizem que é mágico.
- São belíssimos. Não tem medo de andar por aí com esta preciosidade?
- Não. É minha proteção. Nada  de mal acontece com quem usa estas pedras , além disso atraem o amor.
- Hum....então estou enfeitiçada? E todas estas meninas também devem estar... Descobri seu segredo.
 
Moreno mal cabia em si, além de linda a moça também acreditava nas fantasias que ele usava para seduzir.  Sentiu que o caminho estava tranqüilo e seguiu em frente:- Vamos beber alguma coisa?
-  Gostaria muito,  mas aqui está cheio demais e a maioria das suas fãs não tiram os olhos de nós.
- Vamos para outro lugar.
- Moro aqui pertinho, quer conhecer minha casa?
 
Uma moça com ar zangado, caminhou na direção do casal trazendo um violão e uma grande bolsa. Jogou tudo em cima do cantor:- Já arrumou outra? Esqueceu que combinamos um jantar? 
- Ana, esta moça quer me contratar para cantar no aniversário da irmã, quer saber detalhes do show. 
- Desculpa, vou guardar suas coisas e te espero. Fui grosseira.
- Não precisa me esperar, deixe minhas coisas com a minha mãe. Ligo para você mais tarde.
 
Ana era a namorada, motorista e babá oficial. Fingia que acreditava em todas as explicações e mentiras de Moreno. Era tão apaixonada que não se importava em ser usada. 
Saiu apressada carregando tudo para o carro,  em dois minutos já tinha ido embora:

- Nossa, aquela moça é sua namorada?
 
- Não. É a  produtora do show, não tenho ninguém. Sou um homem livre.
 
- Ótimo, vamos andando? Adoro caminhar aqui em Santa Tereza.
 
Saíam de mãos dadas, conversando sobre a noite e o amor:- Seu  nome  é bem diferente  mas combina com seu jeitinho sabia?
 
- É de família, tivemos várias Doralinas. Somos bruxas sabia?
 
- Então é um encontro mágico, já te contei que sou um mago iniciado. Senti sua energia assim que a vi.
 
Moreno tentou beijar a moça. Ela não deixou:- Estamos quase chegando, olhe ali minha casa.
 
O casarão antigo era lindo, cercado por jardins e fontes. O prédio preservava a arquitetura original.
Dora abriu o portão com graça:- Bem vindo ao Solar das Feiticeiras,  fique a vontade.
 
Moreno estava fascinado com a riqueza da mansão, as luzes da varanda estavam acesas e as janelas da sala abertas mostravam a decoração impressionante, tudo era lindo naquele lugar:- Seus pais não vão se incomodar?
 
- Não estão em casa, viajaram, só estão os empregados. Fique tranqüilo, está tudo bem. Vamos beber alguma coisa.
 
- Doralina, tem certeza? Não quero causar problemas.
 
- Estamos sozinhos. Fique a vontade, sirva-se, vou pegar um vinho.
 
Moreno nunca havia visto tanto luxo e bom gosto reunidos em um só lugar.
Haviam coleções e miniaturas em cristal, marfim e jade. Livros maravilhosos, estatuetas de todas as partes do mundo. Sentia os dedos coçando diante daqueles tesouros. Não percebeu a moça havia voltado:- Lindo não é mesmo?
 
- Sim, estou admirado com sua casa.
 
 
- Fique a vontade, pode tocar,  meus pais nunca me proibiram de mexer em nada. Tudo aqui é para ser visto, apreciado e sentido.
 
- São frágeis. Delicados demais.
 
- São objetos, foram feitos para isto mesmo. Sentimentos e pessoas são insubstituíveis, não bibelôs.
 
Dora derrubou um pequenino elefante em cristal Swaroviski . 
A peça partiu-se em mil pedacinhos. Moreno ficou assustado:  
- Porque fez isso? Acho melhor eu ir embora, você é muito estranha menina.
 
- Desculpe,  mas somos muito estranhos.
 
- Como assim?
 
- Eu fui muito brusca, desculpe, estou um pouco nervosa, estarmos juntos aqui parece um sonho
 
- Estou um pouco cansado, vamos relaxar um pouquinho?
 
- Está bem, mas antes venha ver meus quadros. Por favor.
 
- Está bem, depois quero ver seu quarto.
 
Dora acendeu as luzes da galeria, mostrou suas telas ao rapaz que pouco se ateve, olhava apenas por educação. Nada entendia de pinturas. Uma em especial chamou-lhe a atenção.  
Mostrava uma mulher belíssima segurando uma menina , o vestido negro, a lua cheia imensa boiando no céu escuro:
 
- Minha mãe. Não a reconhece?
 
- Não. Como poderia?
 
- Pense bem, o nome dela era Lina, dona de uma loja esotérica no shooping. Eu era uma menina,  nunca  te esqueci. Você morou conosco quase seis meses.
 
- Acho que lembro,  mas faz tantos anos que não a vejo...
 
- Você desapareceu com tudo que tínhamos de mais sagrado, levou nossos punhais de prata e toda herança das minhas avós, minha mãe desonrou a nossa família por sua causa.
 
Doralina encarava Moreno com os olhos frios e transfigurados. Parecia um grande felino pronto para dar o bote. Toda a beleza havia sumido, o rosto era uma máscara de puro ódio.
 
Em poucos instantes três homens apareceram e imobilizaram o cantor:- Pode gritar a vontade, ninguém vai ajudar , seus dias de golpes terminaram. Podem levar este traste e dar o fim que ele merece.
 
- Por favor, eu não fiz nada para sua mãe, tivemos um caso e terminou. Só isso.
 
-Ter sido enganada pela sua lábia já foi uma grande vergonha mas ela confiou em você.  Mostrou as peças dos rituais, ensinou coisas que nunca deveria ter  ensinado e você usou tudo isto para o mal.
 
- Mas eu não sabia que iria causar tantos problemas.
 
- Mentiras. Como consegue ser tão mentiroso? Ela te procurou e implorou que devolvesse as jóias, ofereceu dinheiro e você fugiu para Minas.
  
- Eu sei onde estão suas coisas, te levo até as pessoas, vamos pegar tudo de volta.
 
- Mentiroso. Eu recuperei cada peça vendida, levei anos para juntar tudo outra vez.
 Esperei quase dez anos. Só faltava esta jóia que por acaso é seu amuleto de proteção.
 
Arrancou  a cruz de ouro e rubis com violência, o brilho extraordinário das pedras eram como gotas de sangue.
O clã  estava reunido no grande salão aguardando apenas a presença da moça. 

Finalmente poderia ocupar seu lugar e seguir a Tradição. Moreno também teria um final fantástico, bem de acordo com a vida que havia levado, envolto em mistérios e magias.
 
 
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 13/05/2008
Reeditado em 28/10/2008
Código do texto: T988275
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