Felicidade Movediça

O céu vestia luto. O vento corria na direção oposta do que se parecia seguro. Mas o “qualquer lugar” e o “não sei pra onde”, insistiam em aparecer no caminho daquele ser que corria. . . E como corria. Tamanha sua disposição, não havia dúvida que encontraria o que objetivava. . . Ou quem sabe o infinito. Enchia insistentemente os pulmões de esperança, tentando sem sucesso substituir pelos medos e as angústias que tomavam cada vez mais suas entranhas, ao conferir o passado. As gotas do céu se misturavam com a chuva que minava de seus olhos e a torrente de emoção que “sudorava” de cada poro “pestanês”. . . Carregava também, um filete de dor que descia cortando sua face, vindo a desaguar na morada do anseio.

Distanciando da presa e focando o horizonte pôde-se ver então, do que ou de quem o ser vestido de pavor se esvaia. Apesar das passadas largas de desespero, a maldição do cativo fagulhava seus calcanhares desnudos e mastigados pelas seivas secas.

A caveira da morte não tinha pesar nem misericórdia. . . Com apetite voraz porfiava em avançar ponto a ponto, momento a momento, almejando triturar sonhos e visões de felicidade.

O pior foi inevitável. . . Atado, amarrado e recluso de liberdade. . . O alento foi adiado para outras terras. . . Outros tempos. . . O anelo ficou à deriva. . . Em silêncio sesteava no breu miserável da proveitosa e tirana travessia. . . Sem curso, sem sina, sem porvir.

Um suspiro, uma boca árida, cheiro de morte e a visão ofuscada pela luz que não era o final do túnel e sim a beira do poço de calvário que o aguardava. Perfilado, seguindo a marcha para a alva ganância altiva, não sentia dor, nem fome, nem nada. Era um naco de gente . . . Carne e ossos pútridos e mais nada . . . Pronto para o talho do futuro incerto.

Na vitrina da praça pública perto dos trapiches, após encarar feição torpe e averiguação do maxilar , foi arrematado como troco de uma permuta de especiarias.

Almejou se despejar numa brecha entre a sacaria dentro da carroça, mas logo viu que seguiria o caminho nos calos. Pensava em fugir, mas o corpo mal nutrido não correspondia aos seus impulsos.Assim foi sendo compelido como um zumbi, até à propriedade dominante.

Arremessado ao solo oleiro, pôde sentir se um pouco mais perto do alívio do lar, que se encontrava apartado, além mar, mas ao mesmo tempo ali vivo no seu coração rente ao chão. Adormeceu.

Madrugada turbulenta . Raios e trovões ofuscavam a vontade de liberdade daquela mente infeliz. Que por um impulso saiu correndo cambaleando e adentrou o breu da floresta , apenas aclarado por lampejos vindos do firmamento.

Novamente ele correu ... Não com o mesmo ímpeto inicial . . . mas ele correu. . . E correu muito.

O ladrido dos irracionais serviçais que o perseguiam parecia ditar sua marcha de fuga.

Num certo momento, o clarão era constante, já clareava. Os ganidos estavam ficando mais altos, mais próximos . Em compensação, seu ritmo estava mais viscoso e o atenuante sonhado, escapava cada vez mais de um aprazível destino.

Arfando fadiga física e de espírito , defrontou com um bifurcado confuso entre o regresso à clausura ou um mergulho à precipitação.

Numa breve consulta ás lastimas do passado, assumiu uma feição serena e se lançou num vôo de paz suprema.

Plumou no ar . . . Flutuou como um pássaro clamando ao infinito por um grão de liberdade.O ventre terreno acolheu o inevitável ruir de seu corpo carcomido.

Com vidrados olhos calados ele ainda arquejou . . . Mesmo em frangalhos ele sorriu. De felicidade, tentou um gargalhar derradeiro . . . Mas sucumbiu num suave suspiro de refrigério.

FIM

"Dedico à memória dos meus antepassados!"