Anjo Caído
Madrugada. Algumas pálidas luzes refletidas pelos postes tentavam mostrar uma réstia de luz através de uma névoa fantasmagórica. Essa mesma névoa intensa que recobria as ruas e trazia consigo um frio petrificante... Ao longe se escutava um rumor que talvez lembrasse uma música... Passos... Firmes... Botas.
Os passos concederam vida à estreita rua de paralelepípedos, de edifícios cinzentos e arruinados... Eram os passos de um anjo solitário, e o anjo revelou-se maior que tudo no meio daquela morbidez. Seus cabelos esvoaçavam assim como o sobretudo negro, a pele translúcida com uma maquiagem carregada sobre a face. Uma blusa decotada e uma saia de couro reluzente assim como as botas; este era um anjo, com seu passo firme, sua forma afetada de andar, sua triste aparência vulgar e sua bela expressão cansada. Seu peito estava compungido da agonia da vida... Haveria lágrimas para alguém assim? O que era a vida além de dar-se todos os dias para as mais variadas e ínfimas espécies de homens?
Havia um vazio intenso e nostálgico na alma daquele anjo-mulher perambulando pelas noites há tanto tempo. Ela acendeu um cigarro e iluminou seu caminho com o brilho do vício; névoa e fumaça misturaram-se. Ao passar em frente a uma casa, ouviu um choro, havia uma criança ali e uma luz acesa. Ela olhou para a casa com seus olhos escuros e depois voltou-os para o céu; no meio das nuvens negras, algumas poucas estrelas insistiam em reluzir... Suas pálpebras se fecharam por um instante e logo em seguida, abriram-se para seguir adiante, os pés doíam dentro da bota...
Um bêbado cruzou seu caminho e gritou “puta!”, mas ela continuou seu caminho inexorável. Ouvia isso muitas vezes, como elogio, como xingamento, de várias formas. Já não ofendia mais, era a sua condição... Queria que chamassem de “amor”? Um casal se esfregava junto a um poste sem luz, ela olhou e sorriu melancolicamente... Existiam drogados nas calçadas, e um puxou-a para si implorando dinheiro; ela enfiou a mão no bolso do casaco e arremessou-lhe uma nota. Uma rua deserta... Uma festa acabando, as pessoas observavam-na e riam, ela ignorou, já era tarde. Havia uma igreja em vigília, ela fitou seu interior indiferente. Existe Deus pra alguém assim? Seria melhor viver ou morrer? Há algo esperando no final?
Quando ela finalmente chegou em sua pensão a aurora começava a se estampar deslumbrante no céu. Em um quarto havia luz e cheiro de café. Mais adiante uma criança tossindo; havia um casal brigando. O chão estava sujo, havia fezes de animais no pátio e alguns preservativos usados, garrafas de álcool, cheiro de drogas... Podridão.
Ela abriu a porta e entrou rapidamente acendendo a luz. Bagunça, cama por fazer, toalhas e roupas espalhadas, calçados amontoados atrás da porta, uma garrafa de cerveja aberta sobre a mesa suja com farelos de pão velho. Papel higiênico na porta do banheiro, o vaso cheirando urina; e perto da janela livros, sendo que a Bíblia era o último livro da pilha. Um rádio com uma vitrola antiqüíssima e alguns discos de vinil, faziam parte da decoração.
Calmamente, ela se despiu, deixando as roupas pelo chão. Suas formas eram rígidas, sem máculas... Nua, jogou-se sobre a cama e dormiu o sono dos anjos. Sua pele não via o sol, era alva, absolutamente perfeita, só conhecia a noite... Quando a tarde chegou, ela acordou e como todos os dias cumpriu seu estranho e triste ritual, leu três velhos recortes de jornais: “Homem é assassinado ao voltar para casa no aniversário de sua filha de oito anos”. - “Padrasto abusa sexualmente da enteada de doze anos. A mãe revoltada, comete homicídio contra o estuprador e tira sua própria vida, deixando a menor abandonada”. - “Cafetão é encontrado morto por overdose num quarto que dividia com uma menor de dezesseis anos”.
Todos haviam-na deixado. Seu pai que tanto ela amava e admirava como modelo de dignidade e caráter; sua mãe, um tanto instável, mas sempre boa e o homem que com treze anos, ela achou ser o amor da sua vida, mas que acabou levando-a para um mundo nefasto... Nunca havia tido amigos, renegavam-na desde a morte de seu pai. Existiu uma criança em sua vida aos dezoito anos, mas ela jamais poderia ser um exemplo e nem conseguiria sustentá-la, um fruto gerado numa noite de prostituição com alguém que ela sequer lembrava o rosto... Abandonou-a em frente a uma casa num bairro de classe média. O que fazer para compensar tudo?
Gostava de música, sentava-se em seu banquinho de madeira e ficava apreciando a melodia das canções... Tinha preferência por letras que falavam de solidão, vazio da alma, morte, revolta ou que simplesmente eram tocadas, sem palavra alguma. Não acreditava mais no amor... Homens casados que se diziam apaixonados por suas esposas a procuravam... As mulheres e os homens se traíam mutuamente. O que importava para a maioria das pessoas além do dinheiro, era o sexo. Este era o seu trabalho! Entregar-se, gemer, gritar, realizar as fantasias mais absurdas, conceder o prazer todas as noites, várias vezes e tudo com o seu devido preço.
Existem as prostitutas de luxo, mas a maioria está por aí, fazendo as calçadas arduamente a cada noite, até mesmo por quantias ínfimas para ganhar o seu pão! Homens, mulheres, homossexuais, muitos na mesma situação de miséria, muitos anjos decadentes nas noites eternas... Um anjo decadente o que ela era, um lindo anjo no meio de uma subvida... Ela olhava pela janela observando o entardecer, a luz alaranjada no horizonte e sabia que daqui a algumas horas estaria novamente nas ruas, oferecendo-se para qualquer pessoa que pagasse o seu preço. Haveria esperanças de um dia aquilo acabar? O que era esperança?
Tinha de comprar comida, nem sempre um cliente pagava-lhe um jantar... Vestia-se displicente e saía, as crianças sorriam-lhe, os rapazes olhavam-na fascinados. Era um anjo lindo de qualquer forma, quando tentava passar por uma pessoa normal ao realizar tarefas do cotidiano; quando se vestia de forma exuberante para enfrentar seu ofício; e, principalmente, quando se despia, livre, na sua casa ou para alguém. É possível ser normal quando se é diferente?
Ela tentava, muitas vezes preferia ser uma mera sombra que passasse despercebida por alguém, mas a noite era sua, seu domínio, e ela precisava brilhar por algumas horas. Não havia emoção, não havia sentimento – havia o dinheiro, havia o alimento e as contas pagas no outro dia. Se beijava, se era invadida das mais diferentes formas, se era tocada pelos mais diversos tipos de gente; tudo isso lhe era indiferente, não havia classificação, o que existia era um prazer fingido, mecânico e pago.
Se fosse sádica, como muitas do ramo, riria dos seus parceiros medíocres e fracos, da sua submissão perante o sexo... Se fosse masoquista, sofreria por si e por cada um com que fez sua cama... Se fosse ufanista, ainda teria esperanças de sair daquela vida... Mas ela não tinha mais ilusões... Era indiferente... Talvez fosse um ser divinizado no etéreo da vida de amargura... Suas forças eram sobre-humanas, sua mente brilhante. Se era marginalizada numa situação que não conseguia superar, a culpa era da vida que lhe infligira a categoria de imoralidade social, a miséria, a servidão e lhe destruíra os sentimentos mais cândidos.
Quantas pessoas que perdem os pais e que não seguem por este caminho? Quantas pessoas são violentadas e nem por isso se prostituem? Quantas pessoas desacreditadas no amor conseguem se refazer? Mas, e agora, quantas pessoas, que por não terem uma estrutura sólida têm suas almas destruídas por estes mesmos traumas, e acabam por se prostituir, drogar-se, matar-se pelas esquinas? Haverá respostas algum dia?
Ela tomara o seu banho, depilara as axilas e saiu toda molhada do banheiro envolta numa velha toalha mofada... Sentou-se na cama vestindo a lingerie, as meias, tranqüilamente... Maquiou-se com meticulosidade, os olhos ficando mais escuros, as bochechas marcadas, os lábios vermelhos, mas quando olhou-se no espelho quebrado viu apenas um fantasma absolutamente ridículo. Tomou um pouco de café e se vestiu, calçou os sapatos e mais uma vez saiu. Estava limpa, imaculada e seria corrompida sabe-se lá quantas vezes... Saliva, suor, fluídos vários, bebida; assim ficava após algumas horas... Suja pela podridão dos humanos animais.
Às vezes, sentia dor e cansaço, mas não podia parar... O cliente precisava ficar satisfeito e ela precisava do dinheiro da venda do seu corpo e da sua alma aos demônios! Barulho, boates, brigas... Tiros, tara, tesão... Falsidade, fissura, fraqueza... Solidão, sexo, servidão... Dinheiro, Deus? Ela observava as outras moças, as “normais”, sorriam, brincavam, choravam... Menos ela. O que era aos vinte e um anos? O que havia conseguido? Família, filhos, faculdade, fama? Nada!
Ela um dia pensou em sair dessa vida, mas os fantasmas do passado estiveram sempre perto, e as pessoas? Elas sabem que existe a diferença e procuram esmagá-la. Não, ela não foi covarde! Foi apenas ela, um ser que o mundo abortou nas ruas! Se ela tivesse uma família? Encontrasse um homem honesto, disposto realmente a um compromisso sério e tivesse seus lindos filhos? Isso não é um conto de fadas moderno. Se ela alcançasse a fortuna, estabilidade suficiente para deixar esse mundo de dor em que se instalou? Se conseguisse um emprego decente? Uma pessoa com passagem pela polícia com envolvimento em prostituição dificilmente alcançaria algo sem que o seu passado sórdido viesse à tona! Uma faculdade? Já pensou encontrar um colega de classe ou pior, um professor pelas ruas?
Talvez ela estivesse esperando o anjo da morte para aliviá-la do sofrimento, talvez ele fosse o único ser que ela conseguiria amar, principalmente quando ele viesse observá-la com seus grandes olhos verdejantes, e tão branco como ela; talvez tivessem os mesmos preceitos, talvez na inanição ele lhe concedesse alguns minutos de paz... Talvez o anjo da morte fosse totalmente diferente de como se comentava sobre ele, talvez ele pudesse ser belo e bem simpático... Ele poderia aparecer através de alguma doença, de algum acidente ou uma bala perdida... Ela se entregaria e cairia em seus braços macios descansada.
A noite prometia, foi um dia movimentado na cidade. O primeiro cliente foi um homem jovem, moreno, alto, bem vestido, aparentando ter saído a pouco do seu serviço, provavelmente do seu escritório. Ele era mais um homem casado... Terminado o ato ela pediu que a deixasse numa avenida tal... Tudo certo... Quantas não perdem a vida desta forma? Passaram-se outros encontros. Ela agora estava voltando para sua casa como todas as outras vezes, mas percebeu em meio a névoa alguém caminhando em sua direção. Um assaltante ou um cliente? O homem colocou-se a sua frente e sorriu, estava com um chapéu, óculos escuros e um grosso sobretudo. Polícia?
“Você é linda!” – disse ele.
Injuriada, ela agradeceu e sentiu uma estranha sensação. “Se quiser tem que pagar” era a sua fala sempre pronta. Mas o estranho não quis, ele tocou em seu rosto gelado e sorriu novamente.
“Em breve a procurarei novamente...” – e se afastou em meio a névoa.
Pela primeira vez, ela chegou em sua casa e não conseguiu dormir, aquele desconhecido havia causado uma alteração em seu invólucro glacial e ela não sabia como e nem por quê. Não existem psicopatas que adoram exterminar as garotas de programa?
Ele não estava bêbado e nem drogado, ela tinha plena certeza... Estava sentada ao lado da janela entreaberta, observando o sol cada vez erguer-se mais... Os olhos não queriam se fechar e nem a mente parar de trabalhar, imaginando a pessoa que estava por baixo daquelas roupas... Revendo o encontro de ambos em meio à neblina... Algo indefinível, místico!
Quando finalmente adormeceu, seu sono sempre profundo, sempre sem sonhos foi invadido por visões do homem tocando-a firme e suavemente, suas mãos chegando-lhe até os ombros e o pescoço gélido e o apertando cada vez mais intensamente, e ela não tinha medo, queria sentir a pressão até o final, seu prazer era quase orgásmico... Finalmente via folhas de papel repletas de palavras disformes e melodiosas escritas com uma exímia caligrafia. E esse sonho, inúmeras outras vezes, invadiu seu sono. Nas noites seguintes ao sair pelas ruas inconscientemente o procurava; cada vez que cruzava com um homem misterioso como ele, sentia um calafrio percorrendo sua espinha. Seus serviços estavam sendo prestados distraidamente, os clientes não reclamavam, mas imaginavam que fosse frígida.
Cansada, numa noite, caminhou até um bar vagabundo, sentando-se num banco próximo ao balcão, pediu uma água e ficou olhando para o copo. Por que aquele estranho mexera tanto com sua pessoa? Distraída, não percebeu que alguém sentava ao seu lado, e quando o indivíduo tocou sua mão, ela saiu do transe em que se encontrava e pôde constatar que era ele!
“Olá!” – disse-lhe sorrindo, apresentando a alvura dos seus dentes.
Estupefata, ela respondeu vagamente:
“O que deseja?”
Ele sorriu-lhe mais uma vez e ficou em silêncio por alguns instantes. Aquele silêncio no interior de um bar onde o ruído das conversas ébrias, o tilintar dos copos e uma música estrondante que não cessava, faziam com que o coração do doce anjo das noites palpitasse descontrolado. O homem percebendo que ela estava aterrorizada, exclamou:
“Não tenha medo, só desejo sua companhia... Você pode me concedê-la?”
Aquelas palavras soavam estranhas, desconexas da boca de um homem, mas ela tentou se agarrar em três suposições: ou ele era casado, ou tímido, ou também poderia ser as duas coisas.
“Quer sair daqui?” – perguntou ela com um sorriso que tentava ser insinuante.
“Posso levá-la a um certo local?”
Ela assentiu.
“Não estou de carro, portanto se você não se incomodar de caminharmos...”
“De forma alguma!”
Saíram de lá juntos, com destino ignorado. Caminharam ambos um percurso que parecia inexorável. O anjo noturno abaixou sua cabeça para os pés sem coragem para fitar ao desconhecido que seguia ao seu lado. Para onde estariam indo? Apenas os dois transitando pelos becos sombrios. Ela se sentia estranha em seu próprio corpo e o único ruído que ambos ouviam eram os dos próprios passos. Seu nervosismo era tanto, que ela sequer se apercebeu quando ele parou diante uma casa e continuou andando.
“É aqui!” – disse ele.
O angélico ser voltou-se com o rosto em brasa e o coração batendo sofregamente no peito dilacerado.
“Vamos entrar!” – comentou o homem educadamente.
Ela levantou seus olhos onde reluzia a escuridão da noite e contemplou a fachada da casa, simples, secular, cinzenta como as outras, mas havia um pequeno portão enferrujado e árvores em volta. Ao abrir o portão, o mesmo rangeu lugubremente. Como um cavalheiro, ele permitiu que ela passasse a sua frente antes de entrar. O anjo não tinha palavras, apenas contemplava tudo com os olhos petrificados de uma escultura. Subiram alguns degraus e logo estavam no interior da casa. Esta era extremamente aconchegante e organizada. A sala onde se encontravam possuía a quentura dos objetos de mogno, o sofá cor de vinho, a estante com uma televisão desproporcional, livros e discos devidamente organizados. Ele pediu para que ela se sentasse enquanto foi preparar um café. Sozinha, com a luz suave de um único abajur, ela largou-se no sofá, mas suas pernas inexplicavelmente não paravam de tremer, esfregou as mãos, porém estas estavam encharcadas por um suor frio. Seria um presságio?
Imediatamente levantou-se e passou a caminhar pelos cômodos, todas as portas estavam trancadas, menos uma. O anjo entrou acendendo a luz. Bem no meio do aposento estendia-se um divã escarlate com uma poltrona negra ao lado, livros numa estante preenchendo toda uma parede, e uma mesinha de canto em cada lado. Havia no chão um carpete felpudo e ela sentiu uma infinda sensação de paz naquele recinto. Psicólogo ou polícia? O homem surgiu-lhe pelas costas com duas xícaras fumegantes, ela se assustou.
“Eu sabia que você viria para esta sala!” – disse ele.
Lentamente ela fixou seus olhos no rosto do homem e só neste instante pôde notar-lhe as feições, os lábios úmidos, grossos e vermelhos contrastando com a alvura da pele; o nariz imponentemente grego; os olhos percucientes com cílios longos e sobrancelhas delineantes; os cabelos cinzentos levemente desalinhados.
“Parece artista até!” – pensou ela dividida entre o fascínio e o desdém.
Ele sorriu como se tivesse lido seus pensamentos, os dentes extremamente alvos e alinhados.
“Quer tirar o casaco?” – perguntou.
O anjo perdido deu com os ombros. O homem colocou o pires sobre uma das mesinhas de canto e se aproximou dela para tirar a pesada veste. Através desta atitude, o anjo percebeu, ou antes, sentiu que os olhos dele fixaram-se morbidamente na alvura do seu pescoço. Para ter certeza de que ela estava ali, piscou inúmeras vezes; sentia um ardor gélido no ventre e nada havia que fizesse cessar as estranhas sensações tidas na presença deste homem. Ela lembrava do seu sonho... Com um riso sarcástico, ele disse acariciando o pescoço nu:
“Tranqüilize-se, não vou lhe morder...”
Ela tentou sorrir, mas foi com tanta dificuldade que empregou este ato, que a contração muscular fez-lhe doer a face.
“Quero que dispa-se e retire toda a maquiagem!”
Maquinalmente ela efetuou seu pedido, enquanto o mesmo apanhava umas folhas e um lápis que estava sobre um móvel. Em seus pensamentos, o anjo não era tolo – sabia que nenhum homem surpreendente tira do nada uma mulher da rua, mas sabia também que aquele que estava ali com ela naquele instante era um ser excêntrico e que lhe tirara o sono por várias vezes. Em muitas ocasiões, ela era paga simplesmente para que ficasse nua ou conversasse, não se sentia muito confortável nessa situação, pois a maioria das pessoas que a procuravam neste sentido eram absolutamente carentes e desejavam ouvir algo que lhes fosse aprazível... Logo dela, que queria apenas ficar só... Nestas horas, as suas leituras em muito a ajudavam.
Ela nada sentia por ele, apenas um presságio inesperado e um gosto metálico na boca. Ao sair das suas reflexões, percebeu ela o quanto ele a contemplava, de cima a baixo, de forma perscrutadora. Logo depois, solicitou que deitasse ela sobre o divã e aproximou-se endireitando-a numa determinada posição. Petrificada como estátua humana, o anjo viu que era retratada numa das folhas de papel. Lisonjeada e curiosa agora, ainda continuou no seu silêncio, mas os olhos ficaram a passear lentamente de um lado para o outro; descobriu na estante, um livro marcado por uma faixa vermelha. Ela o conhecia: a famosa queda do arcanjo Lúcifer e a perca do paraíso pelos dois primeiros seres da espécie. Em face desta descoberta, tentou imaginar em qual página repousaria a fita.
Após terminado o retrato, ele chegou e aconchegou-se a ela para a concretização do ato carnal. Nunca, em toda a sua existência sentiu algo desta maneira, ele sabia perfeitamente o quê e como fazer, mas era frio, uma carne gélida e dura como o aço. Consumado seu desejo, ele adormeceu brevemente, dando tempo suficiente para que ela caminhasse pelo ambiente. Dum lado do aposento, encontrou ela, uma Bíblia; e do outro, o mesmo objeto. Cada uma delas estava aberta numa página; a primeira relatando a marca posta por Deus em Caim; e a segunda, nas terríveis profecias de Isaías. Era um pouco estranho, duas Bíblias marcarem textos tão distintos, e até mesmo sinistros.
Cautelosa, para não fazer qualquer barulho, vistoriou o seu retrato – lindo e ao mesmo tempo, demonstrando tanta pureza – achou-o estranho. Mas por descuido, deixou o anjo cair outras folhas, que rapidamente abaixou-se para pegar. Violentamente o sangue começou a correr pelo seu corpo, numa velocidade vertiginosa, e o coração com toda a força o bombeava, quase percebia-se os estampidos das batidas. Eram retratos de outras três moças, todas muito belas, porém seguidos por cópias horrendas em que as mesmas moças estavam com um sinal em forma de cruz sobre a testa e o flanco ferido, com uma chaga sanguinolenta semelhante a uma facada. O homem era um psicopata! Rapidamente, o anjo ergueu-se, mas, no mesmo instante deparou-se com o olhar gélido e letal do aço que lhe lançou; e ele calmamente caminhou em sua direção, nu, com as mãos às costas. Desesperada, tentou ela correr, fugir da serpente que se postava magneticamente a sua frente e tentava hipnotizá-la.
Como homem forte, augusto, prosseguiu ele em seu passo majestoso, e num ato imperioso conseguiu capturá-la e aprisioná-la fortemente contra seu corpo. Todos os esforços dela eram debalde em vão e a única coisa que tinha noção era do ardor que sentiu na fronte e da quentura do sangue a molhar sua face. Sarcástico, ele a libertou e contemplou, embevecido da sua obra celestial. O corte não era tão profundo, mas era suficiente para deixar uma cicatriz por toda a vida. Dorida, as mãos na testa, tentou ela estancar o sangue que insistia em conspurcar-lhe a pele, e no entanto, seus olhos ainda seguiam o ser desatinado. Qual a razão daquilo tudo? Daqueles assassinatos? Sentiria-se ele um deus? Seriam as outras prostitutas como ela?
“Agora a lança...” – afirmou ele, como um pintor a dar os últimos retoques numa tela.
Eis que o anjo a tudo compreendeu – o homem era um fanático religioso que realmente não se sentia um deus, mas o próprio Deus e tentava reescrever a odisséia bíblica a sua maneira doentia. A marca de Caim e a chaga de Cristo eram os veementes sinais da sua obsessão. Angustiada, correu ela por todos os cômodos e como um milagre, pela abertura de uma janela conseguiu escapar.
“Madalena!” – ouviu-o gritar.
Nua e petrificada parou no meio da rua, e pelas trevas da madrugada, contemplou a luz acesa da casa amaldiçoada. Viu pela janela, o doente com uma coroa de espinhos sobre a cabeça, desiludido por ter deixado escapar a presa e com a lança na mão. Seu movimento rápido e incisivo feriu a si próprio. Não poderia suportar a perda.
O susto perpassou tão violentamente o corpo da jovem, como ondas espasmódicas intensas. Tinha a impressão de ter estado face a face com o legítimo anjo da morte. Mas como podia alguém chegar a esse ponto de loucura? Ela mesma tão só, tão sofrida, tão despedaçada pela vida não sucumbira à demência. Que acontecera a tal homem para ser tão marcante e ao mesmo tempo, tão ensandecido? Pressupunha ser ele extremamente religioso, mas o que a religião pôde acarretar na sua alma psicopata? Qual o significado íntimo para todos aqueles símbolos?
As perguntas ficaram sem respostas, pois ao término destas cogitações, um veículo descontrolado atingiu a rua, e a toda velocidade, deixou prostrado o anjo caído no asfalto.