A Beira Do Pantanal
Sol ardido na minha nuca. Preciso do meu chapéu. Mas esqueci quando te abandonei, agora é tarde, não volto mais. Nunca mais. Tenho que remar pra esquecer. Remar pra te esquecer.
Cadê o gim? Procuro, acho e entorno. Prefiro uísque, mas você não tinha na cabana, peguei o gim mesmo. Amargo demais, mas não tanto quanto meu peito. Não tanto quanto o nó em minha garganta ao te dar as costas e te deixar. Vou remando pra esquecer. Bebendo e remando, deixando você para trás.
Um crocodilo passa por mim preguiçoso, fazendo a água calma do Pantanal serpentear. Lembro como criança de doce, do balanço de seu quadril. Cintura perfeita. Pilão talhado a mão. Corpo belo e singelo, como poesia parnasiana. Que droga, cadê o gim?
Os mosquitos assoviam no meu ouvido, picam, furam, melam depois de espalmados. Sangue meu devolvido a tapa. Mas isso não incomoda. Incomoda é o zumbido persistente. Incomoda é a sua voz que na lembrança eu guardei:
"Por que meu querido, por que meu amor, cravaste em mim seu punhal? Meu peito tão jovem sangrando assim, por que este golpe mortal?"
Frase figurativa, mas de impacto. Sei que não ligou pro punhal. Ignorou e deixou de lado. Ouço mais atrás, na curva que deixei a pouco o som de remos. É você que vem atrás de mim. Não entende que não te quero. Remo mais forte. Remo pra te deixar para trás. Bebo o gim amargo. Remo com vigor deixando você se tornar passado.
Mais de dois anos vivi na cabana a teu lado. Não sei como nos encontraram. Fora o marido traído ou você mesma contou pra alguém nosso paradeiro? Não sei pouco me importa. Não te quero mais. Fique agora no meu passado. Deixo-te pra trás.
O jardim que eu plantei pra você nos fundos da cabana. Jardim belo que todos os dias reguei com meu amor e devoção é a única lembrança que terá de mim. Ele e meu chapéu que deixei caído em algum recanto da cabana. Lembrar de você regando a terra onde preparei o jardim é uma bela visão. Trabalhamos juntos e fui feliz aquele dia. Fiz-te um gesto sagrado de amor e por ele a terra você regou.
Como posso olhar para trás e esquecer que já te amei com devoção. Nem lembro o que foi que me fez calar teu coração. O meu se calou algum tempo atrás, quando me encontraram e vi que não era tu quem remava atrás de mim.
Estou aqui em minha cela, revivendo agora o que passei, escrevendo o que senti e pensei. Revendo o Pantanal na tela fictícia de minha memória. Rememorando o que me trouxe para esta prisão. Julgado. Condenado. Culpado. Culpa de amor, por amar errado. Eu e você pegamos perpétuas. Eu no concreto e aço, você deitada em seu regaço à beira do Pantanal. A lei dos homens me condenou: “Perpétua será tua prisão”. Porque fui eu mesmo quem calou com aço o teu coração.
E eu preso aqui nesta cela, deixando minha vida passar, escuto a tua voz, no vento que vem perguntar:
"Por que meu querido, por que meu amor, cravaste em mim seu punhal? Meu peito tão jovem sangrando assim, por que este golpe mortal?"
Queria apenas que parasse de me visitar todos os dias. Que não cruzasse as paredes de minha cela, figura passiva e etérea. Que nunca mais me despertasse com beijos antes de retornar para tua morada. Dei-te paz, um jardim, uma morada. De ti não quero mais nada, mesmo que teu espírito ainda clame por mim . Mas você ainda assim me ama, me segue, não me deixa, pela minha alma aguarda enquanto chama.
Fim.
Nota: Inspirado na música homônima de Raul Seixas. Segue abaixo a música:
A Beira Do Pantanal
Raul Seixas
Foi lá na beira do pantanal
Seu corpo tão belo enterrei
Foi lá que eu matei minha amada
Sua voz na lembrança eu guardei:
"Por que meu querido,
Por que meu amor,
Cravaste em mim seu punhal?
Meu peito tão jovem sangrando assim,
Por que este golpe mortal?"
Assassinei quem amava
Num gesto sagrado de amor
O sangue que dela jorrava
A sede da terra acalmou
E lá onde jaz o seu corpo
Cresceu junto com o capim
Seus lindos cabelos negros que eu
Regava como jardim
A lei dos homens me condenou
Perpétua será tua prisão
Porque fui eu mesmo quem calou
Com aço aquele coração
E eu preso aqui nesta cela
Deixando minha vida passar
Ainda escuta a voz dela
No vento que vem perguntar:
"Por que meu querido,
Por que meu amor,
Cravaste em mim seu punhal?
Meu peito tão jovem sangrando assim,
Por que este golpe mortal?"
Fim.
Richard Diegues é escritor, autor do livro "Magia - Tomo I", colaborador dos sites "Círculo de Crônicas" (www.circulodecronicas.com) e NecroZine (www.necrozine.blogspot.com), além de moderador dos Grupos "Tinta Rubra" e "Fábrica de Letras" pelo Yahoo!