Tricky derrotado.
À híbrida Lúcia.
Os olhos de um azul quase escuro e cristalino observam através da janela do vagão, a outra margem do rio Elba. Mais precisamente o imenso porto de Hamburgo. A imagem que atravessa as retinas e grava-se no cérebro é de uma máquina que se assemelha a um grande escorpião cuja cauda apanha suas vítimas e as empilha com precisão matemática.
Não se intrigue o leitor pela descrição que vem a seguir. Há motivos.
Essas máquinas têm uma lança magirus (igual à escada de bombeiros) que sobe e desce por intermédio de dois possantes cilindros hidráulicos. Este aparato está montado numa plataforma com uma cabine envidraçada onde fica o manobrista.
Quatro pneus de quase dois metros de diâmetro sustentam esta plataforma.
A base da lança está fixada por trás da cabine.
Na ponta desta lança encontra-se uma espécie de robusta moldura de aço retangular, que se contrai ou se expande de acordo com o tamanho do contêiner. Esta moldura tem garras que seguram o contêiner, pesando até quarenta toneladas, levando-o para um lado a outro, suspendendo ou abaixando, como se fosse uma pessoa fazendo o mesmo com uma leve caixa de papelão. Tudo isto é manobrado por pequenas alavancas iguais a joy-sticky.
Tricky tem dúvidas se conseguiria manobrar uma máquina daquela. Ele pode dirigir de barcos a aviões e helicópteros, mas nunca foi treinado para controlar um carregador de contêiner. Com um leve sorriso ele se imagina montado num gigantesco escorpião comandado-o a seu prazer.
- Rathaus! Rathaus! – o som ecoa no vagão anunciando a próxima estação.
Algumas pessoas desembarcam deixando o vagão mais vazio. Tricky, com um pouco mais de um metro e noventa se ajeita no assento, preparando-se para sair na estação seguinte.
“Ela é sócia de Dow & Jones and Bros, em Berna. Acreditamos que ela não sabia que estava lavando dinheiro do russo, dono do Chelsea. Mas diante de uma acusação desta, ela nos entregou todos os números dele. Mas agora... aconteceu isto.”
A juíza Douglas fala como se Tricky não estivesse na bem decorada biblioteca vitoriana, enquanto beberica Bayle´s.
O “isto” que ela se referia era a fotografia de uma bela senhora perto dos quarenta, cujos cabelos loiros estavam um pouco ensangüentados devido a decepação da orelha direita.
“Isto chegou há vinte minutos. Ele fotografou com o telefone e nos enviou. O rastreamento do telefone foi infrutífero, é claro. Ele promete arrancar-lhe um olho dentro de duas horas...Um jato te levará até a base americana em Hamburgo. Lá, eles te darão uma motocicleta. Se você perceber que...que... algo pode acontecer a você, ao menos destrua todos os papéis.”
Tricky elevou uma das sobrancelhas, retesou as mandíbulas e tentou não dar atenção a última frase. Ele sabia que Mrs. Douglas era fria em assuntos profissionais. Por outro lado ela era a avó que sua filhinha não tinha por parte dele e de Doreen.
Caiservisky sabia que eles mandariam um agente só. Jamais uma equipe. Possivelmente alguém da SAS. Ele poderia vir nadando submerso e tentar surpreendê-lo. Ou chegar repentinamente de motocicleta. Até mesmo, sorrateiramente a pé. De qualquer modo, o antigo agente da KGB, agora um assassino da máfia russa, estava preparado.
Ele tinha seqüestrado Karinne naquela manhã chuvosa de outono, quando ela se dirigia para o consulado na arborizada Miltweg, que agora parecia mais uma fileira de imensos paliteiros espetando o infinito cinzento.
Caiservisky a havia sedado e rumou pra Sandhöft, cais arrendado por uma firma pertencente a seu patrão. O local estava deserto porque não havia nenhum navio operando e Karinne foi levada para dentro de um pequeno escritório. Depois foi imobilizada e amordaçada com fita adesiva.
Ele cortou-lhe a orelha com um punhal de face afiada. Ele segurou a cartilagem da parte superior e cortou pela parte detrás, descendo até o lóbulo, completando a mutilação. Praticamente não houve tanto sangramento. Karinne, apenas deu pequenos espasmos sem sentir o corte.
Quando voltou a si, parecia que estava surda do ouvido direito, pois os sons eram confusos.
Tricky desceu em Landsbrüken. Tomou um taxi e pediu que fosse pelo túnel. Antes que chegasse cerca de dois quilômetros, ele dispensou o carro. Se ele estivesse no lugar do assassino, já estaria alerta a qualquer ronco de motor. Foi por isso que ele dispensou a motocicleta.
Se valendo de toda sua prática de avanço e ataque, Tricky chegou até ao lado de uma das janelas do escritório. Ele consegue ver a loira sentada e amarrada a uma cadeira, só faltava localizar o facínora. No segundo seguinte a ponta do punhal alcançou o pulmão direito perfurando-o. Tricky não pode evitar o grito da dor lacerante.
Caiservisky havia deslizado pelo telhado e antes de cair ao chão segurou com a mão esquerda a gola do casaco de Tricky, desequilibrando-o. Ainda no ar, ele enfia o punhal com precisão cirúrgica, um palmo e meio abaixo da axila, sem atingir nenhuma costela.
Para sorte de Tricky, Caiservisky escorrega numa poça d´água e cai arrancando o punhal das costas dele. A dor é excruciante, parece que ele está se afogando. Ao mesmo tempo em que aspira, sente que algo não volta com a respiração, parecendo que seu tronco iria explodir. E o que mais ele temia acontece. Um pouco de sangue lhe chega à boca. Agora ele tem certeza, sua árvore brônquica foi atingida. Ao tossir novamente, sangue espirra por entre os dentes.
Tricky reflexivamente sabe que tem que fugir. Tudo isto que acontece naquele exato momento e durante a desajeitada queda de Caiservisky. E quando suas nádegas se estatelam no chão, Tricky já está uns dez metros de distancia.
O azarado assassino deixa aparecer um sorriso de escárnio nos lábios. Ele leva alguns segundo para se levantar . Ele não tem nenhuma pressa, pois só terá que seguir o rastro de escarro sangrento de sua vítima. Assim, ele passa diversas vezes as mãos pelas nádegas, limpando a calça da umidade, ajeita o paletó e a gravata. Volta pra dentro do escritório, apanha um guarda-chuva. Antes de sair, fechando a porta, fala para a amordaçada Karinne.
- Acho que acabo isso tudo em meia-hora. Não se preocupe que eles virão buscá-la. Mas antes dê uma olhada dentro daquela geladeira. – E lança o queixo pra frente indicando onde está o eletrodoméstico.
Ele vê Tricky cair por duas vezes. Está uns duzentos metros a sua frente. Se Tricky, por acaso despisse o casaco, Caiservisky pararia de persegui-lo, pois só lhe interessa os documentos que estão no forro da peça.
- E ele poderia morrer em paz! – Ele não consegue segurar o riso, caminhando elegantemente com o guarda-chuva lhe protegendo da insistente garoa.
Tricky recusa a aceitar seu fim. Mas está sendo sobre-humano o esforço que ele faz pra alcançar a beira do cais e se jogar na água. Do jeito que ele está, afundará rapidamente, não dando chance a Caiservisky de recuperar os papéis.
Nisso, uma daquelas máquinas escorpianas aparece vindo em direção a Tricky. Ele parece um cristo moderno procurando o cálice da salvação, o suicido no qual seu corpo deverá ser esmagado. Ele cambaleia em direção às rodas do escorpião mecânico.
Caiservisky parece adivinhar-lhe as intenções e começa a correr para abatê-lo antes de as rodas o pegarem. O estranho é que ele, mesmo nessa situação, ainda tenta se proteger dos chuviscos e mantém o guarda-chuva inclinado pra frente.
O manobrista vê um homem tropeçando com o braço esquerdo passado embaixo do braço direito vindo em sua direção.Mas as forças lhe faltam e ele cai. Todo seu tórax e abdômen estão vermelho escuro.
Numa manobra rápida e irresponsável, ele força o monstro de quase sessenta toneladas a fazer uma brusca curva no exato momento que Caiservisky aponta uma Glock para Tricky. A energia potencial do balanço do contêiner de quarenta e poucas toneladas o faz soltar-se das garras da moldura retangular.
A manobra escondeu Tricky da mira da arma e Caiservisky sabe,o contêiner cairá pelo menos a uns cinco metros de onde ele está. Sua única preocupação e com a chuva que o deslocamento de ar, levará até ele. Novamente ele inclina o guarda-chuva pra frente.
Milagroso erro.
O deslocamento do ar de uma caixa pesando quarenta toneladas com uma área vélica de aproximadamente quarenta e oito metros quadrados é capaz de lançar ao ar um carro médio por uns cinco metros além.
O corpo de Caisevisky se eleva mais de um metro do chão enquanto é lançado para trás. As hastes de seu guarda-chuva se dobram no meio e o próprio tecido age como uma vela de barco dando velocidade e energia para que elas lhe penetrem no corpo. Algumas se amassaram nos ossos do tórax, mas onde era só carne, elas lhe vararam o corpo, só parando devido ao tecido negro. Seus olhos foram furado e seu cérebro atingido. Mas o que o matou foi a decepação da jugular, não tão cirurgicamente quanto a orelha de Karinne.
O manobrista desliga a máquina e corre para quem ele julga que ainda está vivo. Tricky o vê agachado junto a si. Ele aponta para o bolso do manobrista e faz o gesto como se estivesse escrevendo. O manobrista sem entender, lhe entrega a caneta bic.
Com muito esforço, Tricky consegue tirar o fundo e a carga dela. Em seguida, ele próprio a enfia pelo orifício feito pelo punhal até chegar um pouco pra dentro do pulmão. Um esguicho de ar, sangue e saliva faz uma curva no ar, assustando o manobrista. Tricky não quer mais morrer.
Em minutos Tricky está numa maca dentro de uma ambulância. Um dos paramédicos fala inglês e Tricky lhe diz onde está Karinne.
Logo, a porta da ambulância se abre e uma loira com mais de um metro e oitenta entra socando violentamente o que ela encontra do físico de Tricky.
- Por que não chegaste antes que ele me cortasse a orelha, ó panaca!
Tricky esboça um sorriso e sente a felicidade da morfina.