Nut - Capítulo IX
IX
A fazenda era ampla e verde, todavia não parecia ser exatamente bem tratada. O carro vermelho estava estacionado à frente de uma enorme casa, como um igualmente enorme alpendre de onde se tinha uma vista privilegiada das terras verdes daquele local. Certamente um lindo cenário bucólico.
Demétris mantinha seu olhar fixo num ponto qualquer do horizonte, fitando o entardecer. Ele estava sentado numa cadeira que parecia ser feita de palha posta charmosamente junto com outras e uma mesinha de centro no alpendre. Dentro da casa, uma mulher chorava abraçada a uma senhora, enquanto um homem tentava consolá-la também com lágrimas nos olhos.
— Mãe... Eu não sei o que fazer.
A senhora de cabelos muito brancos e de aparência extremamente sábia alisava os cabelos da mulher.
— Minha filha, tudo vai ficar bem. Fiquem aqui o tempo que precisarem... Toda mudança leva tempo para ser aceita. Logo vocês vão aceitar o que aconteceu...
Lá fora a noite caia lentamente sobre os campos. As ovelhas, sempre bem organizadas, não se separavam, enquanto a boiada se acalmava com a chegada dos primeiros ventos noturnos.
— Demi...
A voz doce de Luna chegou aos ouvidos do jovem que, até então, continuava perdido em seu próprio devaneio. Luna se esgueirava habilmente pelo muro do alpendre. Trajava uma das camisas de Demétris, preta com frases desconexas escritas em vermelho. Ela foi, caminhando de quatro, até os pés do jovem.
— O que você veio fazer aqui – ele perguntou olhando para ela, mas sem demonstrar nenhuma surpresa.
— Não posso deixá-lo, Demi. Não agora.
E ele sentiu que suas palavras agora soavam como pequenos grunhidos sofridos de um animal machucado.
— Luna...
Demétris pegou a mão da garota e virou sua palma. Estava em carne viva.
— O que foi isso?
Ela baixou seu olhar. Seus pés também estavam machucados.
— O carro estava muito rápido...
Ele a ergueu, ao passo que também se levantou.
— Vou buscar algo para limpar suas feridas, espere aqui.
— Espere Demi. Por favor, não entre agora. Vamos terminar de ver o anoitecer... Como antes.
“Como antes...”
Essa última frase pareceu ecoar na mente dele de uma forma que o deixava tonto. Dando-lhe uma agradável sensação nostálgica. O jovem voltou e sentou ao lado de Luna, segurou-lhe a mão mais uma vez. Ela suspirou e de suas narinas saiu um ar quente, que Demétris logo notou não haver o aroma sanguíneo de outrora. Todavia, ele sentia que poderia beijá-la mesmo com aquele hálito de sangue. Que dirá sem ele?
Encostou sua cabeça à cabeça descabelada da garota. A noite já caíra por completo. Tudo estava silencioso, sem nem ao menos os intrigantes barulhos noturnos. Estavam sós naquela varanda e Demétris tinha a sensação de que aquilo já se repetira outras vezes... Um “deja vú”, talvez. Estavam se aproximando mais e mais...
O barulho de um estômago se rebulindo em fúria fez o jovem despertar.
— Desculpe – disse ela envergonhada.
Ele a olhou. Em seguida ergueu-se e a puxou pelo braço.
— Venha comigo.
Saíram pela noite. A grama fria dos descampados onde pastavam os animais aliviava a dor e o cansaço dos pés da jovem. Chegaram a uma cerca. Do outro lado algumas ovelhas se agrupavam uma pertinho da outra, sem que se pudesse distinguir onde começava uma e terminava a outra.
— Vá. Pegue uma. Não as deixe agitadas. Senão podem vir ver o que está acontecendo. Não quero que você coma pessoas.
Ela o fitou e mesmo com a penumbra viu algo faiscar nos olhos do rapaz. Olhos que até pouco tempo pareciam o leito de um rio negro profundo, mas que agora pareciam reluzir. Ele se virou, dando as costas para a cerca.
Um pulo repentino e hábil... Alguns animais correram em disparada enquanto um único desafortunado era estraçalhado pela jovem, que o estripava com voracidade, mas com o mínimo de alarde. Demétris ficou extasiado, mas em sua cabeça apenas uma coisa estava fazendo sentindo: antes com aquele ser, do que com os seus pais ou qualquer outra pessoa.
Do outro lado da cerca, escondido atrás de alguns araçazeiros, algo se rebulia e produzia um estalo no ar. Um som seco e desagradável, mas que ainda não chegara aos ouvidos de Demétris.
Luna já estava satisfeita. A carcaça do animal estava ao chão e ninguém poderia imaginar que aquilo jamais tivera vida. Ela pulou a cerca novamente e abraçou Demétris por trás, de uma maneira extremamente aconchegante e agradecida.
— Demi...
Ele se virou e sentiu seu hálito quente e com cheiro de morte invadir suas narinas e lhe excitar. Abraçou-a também.
— Por favor, Luna, diga-me: quem eu sou?
— Você é...
O som estalou aos ouvidos dos dois. Um som desagradável que gelava o sangue e paralisava os ossos. Algo medonho.
As ovelhas ficaram extremante agitadas. Bem mais agitadas do que com o ataque repentino de Luna. Os animais baliam freneticamente.
Um vulto se esgueirava pelo campo e perseguia as ovelhas. Ao longe, na casa, algumas luzes acenderam. Demétris notou isso e se perguntou: quanto tempo passara?
— Demi, olhe...
Ele viu olhou o pasto e distinguiu na escuridão algo que parecia ser um homem muito raquítico, estava de costas e acabara de agarrar uma ovelha, que levava arrastada pelo pescoço. Estava aparentemente pelado e seu andar era curvado, como se levasse um enorme peso às costas.
Luna se posicionou à frente de Demétris.
— Aquilo também pode ser “dele”.
— De quem – Demétris perguntou sem tirar os olhos do ser bizarro.
Um tiro passou ao lado do casal. O ser se rebuliu bruscamente e Demétris pôde ver que se tratava só de pele e osso. O notívago agarrou sua presa e desapareceu na escuridão em direção às matas que cobriam as serras, já nos limites daquela fazenda.
A senhora que atirara, abaixou a espingarda. Estava acompanhada pela filha e pelo genro. Eles vinham se aproximando da cerca.
— Eu preciso ir – disse o jovem, assustado – Se meus pais me pegarem aqui fora eu estou...
Luna o segurou firme pelo braço.
— Não. Fique aqui.
Ela o olhou e ele pareceu se desarmar. Ela continuou à frente dele quando o trio chegou próximo à cerca, iluminando tudo com lanternas. Viram a ovelha destroçada.
— Maldito “corpo seco” – bradou a senhora. – Dessa vez ele fez o serviço aqui mesmo...
— “Corpo seco”? – perguntou o homem, abraçado à mulher, que parecia muito assustada.
— Sim... Corpo seco... Maldito. Quase todas as noites ele vem e me leva um animal. Por hoje ele escapou, mas eu vou pega-lo. Ainda tenho forças nos braços para atirar com essa espingarda, que foi do seu pai, minha filha.
Foram embora. Durante todo o tempo, estiveram bem próximos a Demétris e a Luna, mas pareciam ter ignorado os dois.
— Demi...
— Eu preciso voltar para casa... Eles pensam que estou dormindo. Certamente não me viram porque eu estava com você e...
— Não foi isso.
Ela tentou o segurar, mas o jovem se desvencilhou e saiu em disparada pela noite rumo à casa-grande.
Luna fitou as serras ao longe, de onde, se aguçasse bem sua audição, podia escutar os berros da ovelha sendo devorada e aquele som que fazia todos os pêlos de seu corpo se eriçarem: o som seco da morte.
Continua...