A vidente de Irajá

Desde pequena assistia a mãe ''lendo a sorte'' no copo d' água para clientes afoitas de todas as partes do Rio de Janeiro. Algumas chegavam de muito longe, após horas viajando de ônibus, trem ou carro particular. Todas tinham em comum a curiosidade em desvendar o futuro. E a mesma reclamação- Como é longe o Irajá, porque não mudam para o Méier?

Mas toda a família morava no bairro e era apaixonada pelo local. Gerações haviam nascido e crescido brincando nos parquinhos e calçadas do Irajá.

Quando a vidente era boa, não havia distância e mãe era famosa. A grande maioria das clientes vinha mesmo para saber se o homem tinha outra ou era fiel. Raras queriam saber sobre saúde ou trabalho. Quase sempre era caso amoroso. E Dona Julinha era mestra em esclarecer e dar bons conselhos.

Ana morria de vergonha de ser filha da ''macumbeira''.
Na escola, no balé ou entre os vizinhos, sempre havia algum engraçadinho para fazer piada:- Sua mãe não previu o que ia cair na prova? Assim vai ficar em recuperação. Sua mãe não acerta os números da loteria? Sua mãe..sua mãe...

Estas e outras gracinhas faziam a alegria na hora do intervalo de aulas. Preferia ficar escondida até o Recreio terminar.
Mas o maior sofrimento era saber que também tinha o Dom. Todas as mulheres da família herdavam esta sensibilidade estranha. Para Ana era uma maldição terminar a vida sozinha e com fama de feiticeira.

Lembrou a casamento dos pais. Só viveram juntos 3 anos. O pai não aguentou tanta pressão. Depois disto a mãe saiu com outros homens, teve alguns namorados. Nenhum deu certo.

O problema é que sabia quando estava sendo traída, percebia mentiras bobas e graves. O amor não sobrevivia a sua intuição aguçada. O namorado pensava na vizinha e ela já imaginava o romance.
Foi ficando triste e desacreditada. Não aceitou mais convites e vivia reclusa, trabalhando e cuidando da filha.

Quando completou 18 anos, Ana estava pronta para usar sua intuição. Trabalhou com cristais e desenvolveu uma grande afinidade com as ametistas e turmalinas. Gostava de meditar com as pedras e praticava com a mãe os ensinamentos e já não maldizia a sorte.

A mãe ficou doente e mal dava conta das consulentes. As dívidas cresceram e Ana procurou emprego em vários setores. A falta de experiência restringia os cargos disponíveis.
Após bater em várias portas e não conseguir vaga para nada, desistiu.
Talvez por comodismo tenha começado a ajudar a mãe.

Bem depressa estava com a agenda cheia e a propaganda corria de boca em boca. A casa vivia lotada. Antigas colegas, senhoras da Barra da Tijuca, toda gente vinha conferir suas previsões. E voltavam com uma amiga ou parente.
As consultas eram cobradas. Nada exorbitante, o suficiente para manter a casa e pagar as despesas.

No final de um dia lotado e cansativo escutou vozes alteradas. A mãe já não atendia as consultas era secretária, organizava agenda:- O que está acontecendo? Algum problema?

Um homem bonito, bem vestido, tinha o rosto transtornado de raiva, brandia uma foto na mão :- O senhor quer alguma coisa? Já encerramos por hoje

- Eu quero saber qual das duas mentiu para minha noiva. Disse que eu tenho outra mulher. Qual é a responsável por minha desgraça? Sou advogado, estou avisando.

- Calma. Não precisa gritar , vamos conversar. Quem é sua noiva?

- Márcia de Campos, veio aqui no sábado, olhe a foto. Veio com a minha irmã saber sobre o casamento. Eu não acredito nesta palhaçada mas elas insistiram e eu deixei

Tentou lembrar mas eram tantas pessoas, verificou a agenda e não havia Márcia: - Sua noiva nunca esteve aqui, sinto muito

- Mas ela deu seu endereço, contou detalhes, falou até que a senhorita era muito jovem

- Asseguro que nunca vi seu rosto, como poderia prever algo que não vi e eu nunca vi sua noiva

- Você deveria arrumar um trabalho decente e não explorar estas pessoas desesperadas e ignorantes. Voce disse para minha noiva que eu tenho uma amante, disse até o nome da mulher, minha irmã confirmou tudo

- O senhor está sendo grosseiro, não obrigo ninguém a bater á minha porta e muito menos exploro a desgraça alheia. Se me procuram é porque precisam de ajuda e estão desconfiadas

- Então não buscam a verdade, nem ajuda, querem apenas um responsável para confirmar as suspeitas

- Talvez, mas a sua noiva mentiu. Usou este pretexto para cancelar o casamento. Sinto muito, a culpa não é minha se ela não quer casar com o senhor e inventou esta história

- Está chamando minha noiva de mentirosa?

- O pior cego é aquele que não quer ver. Por favor vá embora da minha casa

André percebeu que havia sido vítima de uma grande farsa. Acusado de traição, pivô da separação sem nunca ter olhado para outra mulher. Um plano mesquinho e infantil completamente sem lógica.

A vidente tinha razão. Precisava investigar a questão com mais apuro, consultar alguns amigos e descobrir a verdade. Sentia-se arrasado. Pediu desculpas e saiu apressado.

Semanas depois André telefonou e pediu uma hora, a mãe não gostou mas ele foi muito insistente e acabou convencendo:- Ana, não acho bom este moço vir aqui novamente, o que ele quer? Não gostei dele, é muito descontrolado

- Mãe, vai ver ele só quer conversar um pouco, ou pedir algum conselho, não é para isto que estamos aqui? Coitado mãe, está claro que foi enganado. Marque para amanhã querida, temos hora vaga

A noite foi longa e cheio de pesadelos para ambas, no dia seguinte mal conseguiam abrir os olhos pesados:- vou cancelar tudo, você está muito abatida filha, vamos tirar um dia de folga

- Não. Bobagem, um bom café e fico inteira. Não dormi bem, apenas isso

- Pesadelos? visões? O que houve?

- Sonhos confusos. Nada coerente. Vamos nos arrumar para o dia, temos contas Dona Julinha, luz, mercado...vamos

O dia passou tranquilo, as 17 horas André chegou para a consulta acompanhado de uma moça muito bonita, de mãos dadas e silenciosos:- Entrem e fiquem a vontade, a consulta é para o casal?

- Esta é minha noiva, ela veio se desculpar, foi tudo uma brincadeira boba, reatamos o noivado, não é meu bem?

A moça já não sorria, estava pálida e trêmula. André apertava o braço da mulher com força:- E agora? Confirma tua história Márcia

- Eu menti para fazer um teste, queria saber se o André me amava de verdade, nunca vim neste lugar. Só lamento ter causado tantos problemas, vamos embora amor?

Ana percebeu que Márcia estava com mêdo e não estendeu o assunto:- Caso encerrado. Vamos esquecer este assunto,desculpas aceitas

- Não, viemos fazer uma consulta, queremos que veja nosso futuro

- Desculpe mas há muita tensão no ar, o clima não está bom, vamos deixar para outro dia

Realmente, apesar dos incensos e cristais espalhados pelo quarto arejado e claro, o ambiente estava carregado, pesado e denso. André tirou uma arma do bolso do paletó e apontou para a noiva:- Vamos ver isso agora ou mato esta vagabunda na sua frente. Não quero mais mentiras. Não vou ser mais enganado.

A agua na bacia de vidência estava ficando turva, imagens de sangue surgiam na superfície trazendo os piores augúrios. Ana sentiu uma forte pressão na fronte e a imagem de Márcia com outros rapazes surgiu límpida.

Podia ouvir a risada debochada da jovem enquanto escolhia roupas e jóias para o enxoval comentando a sorte de ter encontrado um noivo tão rico e crédulo. Bobo, apaixonado e completamente cego. O plano para terminar a farsa e cancelar o casamento foi planejado com a ajuda da própria cunhada, amiga de farras e álibe perfeito.

Ana sabia que não podia falar e André percebeu. Atirou em Márcia duas vezes.
Com o cano da arma na boca, olhou para Ana, o pedido de perdão mudo antes de apertar o gatilho.
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 02/04/2008
Reeditado em 28/10/2008
Código do texto: T928396
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