O PIANO E AS ROSAS...
Ele sentava muito quieto e dizia:
–Toca para mim...
–O que queres que eu toque?
–Pour Elise, a Serenata de Schubert e a Valsa do Adeus!
–Não! A Valsa do Adeus, não! Quem sabe Elegia, de Massenet?
–Não... – e me olhava com aquele olhar muito doce: impossível negar!
–Está bem, meu amor, está bem. Mas depois tocarei algo mais alegre!...
Minhas mãos dançavam pelo piano. Os sons se ouviam com uma pureza cristalina... era, afinal, um piano de concerto, que herdara de minha avó. Mas eu não iria tocar por muito tempo, porque sabia que, ao terminar a Valsa do Adeus, ele me abraçaria suavemente, seus lábios, com uma suavidade inconfundível, beijariam meu pescoço e mil beijos viriam, e depois...
Mais outro final de tarde: eu chegava do trabalho um pouco antes dele. Entrava em casa feliz, pois sabia que poucos minutos faltavam para sua chegada. Estávamos juntos há tantos anos... Os filhos, adultos, moravam no exterior, já casados e com suas vidas bem resolvidas. Éramos dois que, durante toda uma vida tínhamos sido “um”, pois conseguimos manter nosso casamento feliz (com pequenas rusgas, de vez em quando, mas que acabavam em beijos e em nossa cama gostosa...) e conseguimos manter aceso o fogo da paixão. Talvez porque, em virtude do trabalho, só nos víamos à tardinha; despedíamos no café da manhã, e os nossos dias eram cheios de ocupação, o que nos impedia, talvez, o tédio. Nos finais de semana, fazíamos trabalho voluntário, eu em um asilo de idosos, o dia todo, tocando e cantando para eles e formando um pequeno grupo coral, e ele, ensinado LIBRAS (linguagem de sinais, para surdos-mudos) para pessoas, ou para as famílias destes portadores de necessidades especiais, ou professores que, acreditando na Inclusão, queriam trabalhar com estas crianças nas escolas e ensinar outros alunos a se comunicarem com eles.
Nos domingos, jamais deixávamos de ir à Missa juntos. Depois, o dia era nosso...
Às vezes, quando chegava, ele subia os poucos degraus de nossa entrada da casa, assobiando (tinha um assobio afinadíssimo!) e eu corria para a porta, me escondendo atrás dela; quando ele abria a porta, eu a puxava de repente e ele fingia que se assustava; outras vezes, escondia-me e fazia com que ele me procurasse... Éramos duas crianças de meia-idade, para quem o tempo não passou!...
Sempre nos despedíamos com um beijo e um abraço imenso... mas, quando chegávamos na porta para abrir a garagem e tirarmos nossos carros, eu sempre lhe dizia: “Mais um beijo! O da porta!!” E assim vivíamos neste ritual, felizes, completos...
Quando ele chegava, tomávamos um gostoso banho morno juntos, entre brincadeiras e beijos. Às vezes eu escondia seus óculos, outras vezes, ele os meus! E íamos direto para a sala: eu sabia que ele queria ouvir o piano. As duas primeiras músicas podiam mudar: Ou a “Dança Ritual do Fogo”, ou alguma de Liszt, Chopin, Strauss, Bach... ou ainda alguma mais atual, como Sei que vou te Amar, Hino ao Amor, Fascinação, mas a terceira (sim, porque nossa combinação era três músicas!) tinha de ser a Valsa do Adeus!
Uma tarde, ele se atrasou para chegar em casa. Preocupada, liguei para o escritório onde a “senhora da limpeza” ainda estava e ele me disse:
–O Doutor já saiu!
Agradeci e fiquei atenta. Preocupei-me. Liguei para o celular: desligado! Coisa de nunca!...Anoiteceu.
De repente ouço o assobio alegre e afinado de meu marido enquanto subia os degraus da entrada. Nunca entrávamos ou saíamos pela porta que dava direto para a garagem, a menos que chovesse, pois tínhamos nossas brincadeiras na porta! Abri, antes que ele subisse o último degrau; ele me trazia um buquê com doze rosas vermelhas! Feliz, agradeci. Ele era sempre um cavalheiro, abria a porta do carro para mim, auxiliava-me a colocar o casaco nos dias de frio, puxava e acomodava a cadeira para que eu sentasse, enfim, era um “gentleman”...
–O que aconteceu?
–Por que demorei? Fui comprar rosas para ti e o trânsito estava terrível! – um abraço demorado, um beijo... o piano...
Coloquei as rosas em uma mesinha de mármore que tinha ao lado do piano:
–Ficaram lindas! Como tu, que és linda!... – disse-me ele.
Fomos nos deitar, abraçados, como sempre o fazíamos.
Tudo pareceu normal até o momento em que o velho relógio da sala, que anunciava as horas com um belíssimo som de carrilhão, tocou as doze badaladas da meia-noite.
Acordei sobressaltada: “Por quê?” pensei. “Nasci e me criei ouvindo o badalar do relógio?” Perdi o sono e me pareceu... ouvir o piano tocando... a Valsa do Adeus!! Saí apressada da cama: o piano estava fechado, as rosas... no vaso, onde eu as havia colocado.
Meu marido levantou-se, tranqüilo como sempre, e me disse:
– O que houve, querida, meu amor?
Eu tremia: não tinha sido uma ilusão!
–Ouviste o som do piano?
–Minha amada, como iria ouvir, se tu estavas dormindo ao meu lado, como um anjo? Eu te amo e sempre te amarei! Tu és a minha mais bela rosa!... Vem...
Voltamos para a cama; abracei-me bem a ele, mas uma angústia infinita me assaltava; sem saber porquê, comecei a chorar...
De repente, toca o telefone: meio tonta de sono, acendi a luz e atendi, meio entorpecida:
–É a esposa do Dr. Barão?
–Sim – respondi, e um calafrio me percorreu a espinha.
–Aqui é do Pronto-Socorro! Senhora, seu marido sofreu um terrível acidente de carro, por volta das 18hs. Já chegou ao Hospital em coma profundo. Seu peito foi muito machucado pela direção do carro; seus documentos, que trazia no bolso da camisa, ficaram muito sujos de sangue. Havia muitos pacientes para atender, pois o choque foi com um ônibus, que capotou. Tivemos muitos feridos, e a senhora sabe, somos poucos! Tentamos até agora fazer o que era possível, e só agora conseguimos identificar o nome de seu marido na Carteira de Motorista, pois a de Identidade, ficou destruída. Só que... seu marido acaba de falecer! Meus pêsames, senhora. Poderia vir até aqui?
–Não pode ser – respondi calmamente – pois meu marido está aqui, ao meu ...
Nossa Senhora! Ele não estava! Seu lugar na cama estava intacto...
Larguei o telefone e fui até a garagem: só o meu carro estava lá!...
Voltei: ao lado do piano estavam as rosas vermelhas... Mas, quem me tinha dado as rosas vermelhas? Foi ele, o meu amor adorado!
Acendi outra lâmpada mais forte e vi, um pequeno papel branco, entre as rosas; estava escrito. Peguei-o com minhas mãos trêmulas e li, na letra de meu marido, que eu tão bem conhecia, mas com a caligrafia trêmula: “Eu te amo e sempre te amarei, meu anjo, minha deusa! Estarei contigo e esperando por ti!...” 31 de março de 2007. 0h45min.
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Os dias, a partir daquele dia terrível, nunca mais foram os mesmos. Meus filhos vieram, mas chegaram tarde; o amor de minha vida foi velado com o caixão fechado e nem me deixaram vê-lo... Entre as ferragens do carro encontraram sua agenda, suja, rasgada, úmida... Com dificuldade abri no dia 31 de março: às 17h30min estava escrito, com sua letra amada: “Comprar rosas para minha deusa! Imensa vontade de oferecer-lhe rosas.”
Os dias foram se passando: por mais que eu quisesse, as rosas murcharam. Quando as tirei do vaso, enterrei-as no jardim, de onde eu poderia avistar o lugar onde as havia colocado de minha cama. Os dias se passavam sombrios. Nunca mais toquei piano!
Não sei quanto tempo se passou: vivia das minhas lembranças! Das minhas maravilhosas lembranças! Para cada lado que eu olhava, parecia que ele estava ali. Meus filhos queriam que eu saísse de nossa casa, mas eu não podia abandonar o lugar onde fui tão feliz...
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Uma noite, quando o relógio bateu as doze badaladas da meia-noite, eu acordei! O piano! Alguém o tocava! Era a Valsa do Adeus... Levantei depressa e fui até a sala! No lusco-fusco da luz da lua que entrava pelas janelas, lá estava ele, sentado em sua cadeira preferida, com um enorme buquê de rosas vermelhas! Levantou-se, tranqüilamente, e com um sorriso alegre nos lábios, disse:
–Estas rosas são para ti, meu amor, minha querida! Eu vim te buscar...
Senti seus braços tão amados me envolvendo! Senti o beijo pelo qual tanto ansiava!...
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Pela manhã, a empregada, que tinha a chave da casa entrou e foi fazer suas tarefas costumeiras. Estranhou o silêncio total na casa.
–Dona Bê! Dona Bê! Deve estar no quarto...
Qual não foi sua surpresa ao chegar na sala e encontrar sua querida “Dona Bê” caída ao chão, ao lado do piano, com os olhos fechados e um belo sorriso nos lábios... e suas mãos seguravam um belíssimo buquê de rosas vermelhas...
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Nota da autora:
Qualquer semelhança com fatos ou pessoas vivas ou mortas, é mera coincidência.