Adoção
Meus passos nunca alcançaram o sacerdócio. Meu sofrimento levou-me a lugares bem distantes dele, mas era onde conseguia administrar minhas emoções, menos injustamente.
Eu tinha oito anos quando papai morreu. Deram-me de presente à família do Major Cariolano. Lá íamos eu e o meu choro de abandono morar em um lar desconhecido, fazer coisas que para viver nunca pensei tivessem que ser feitas.
Era sábado e chovia muito. Chegamos pelos batentes dos fundos do casarão eu e mamãe. Ela abaixou-se, limpou minhas alpercatas meladas de lama, deu-me um beijo de despedida e saiu. A parte inferior da porta da cozinha estava aberta. Ela disse-me: vai e nunca esqueças que te amo muito. A vida é assim mesmo. Nem necessitei abaixar-me para adentrá-la. Zefinha soltou a colher de pau que mexia a comida cheirosa no fogo e abriu os braços.
-Menino lindo, cadê tua mãe?
-Já se foi!
-Não pode ter ido embora...
Ela ainda a alcançou. Estava soluçando sob uma das pingueiras do oitão. O que conversaram, nunca o soube. Só me lembro de que Zefinha retornou chorando mais do que mamãe e me pôs nos braços como se quisesse acalentar-me. Havia ouvido algo muito triste.
Na hora do almoço gritaram pelo meu nome. Estava de cócoras atrás duma imensa jarra de barro cheia de água de beber. Levaram-me para uma mesa baixa, lá mesmo na cozinha, e comi menos da metade do que me ofereceram. No prato parecia terem misturado sobras dos outros deixadas pelos donos da casa. Mais tarde tive a confirmação do que, àquela hora, apenas desconfiara, fosse verdade.
O Major separou-se da esposa, os filhos foram estudar no Uruguai e eu: ofertado por uma segunda vez, agora ao Bispo. Tinha já treze anos. Passei a frequentar os porões filosóficos do seminário e a conhecê-lo desmedidamente. Estava a conviver a essa altura com mais outros vinte e oito enjeitados da vida. Ao menos dividia o tempo com pares de mesmas dores. Nada melhor do que ser tratado com igualdade.
Conheci Davi bem mais que os outros. Tive-o não apenas como um amigo. Ofereceu-me seu corpo num escape doentio das mazelas que cultivava dentro de si. Nunca havia conhecido seus pais e detestava ouvir endereços de quem quer que fosse. Dizia-se livre e libertino, mas se esquecia de que nem ultrapassar os muros altos imponentes do São Feliciano, podia, a não ser com autorização de um superior hierárquico. Era um jovem bom, mas de hábitos incomuns.
Acordava-me lá pras tantas da madrugada, quando não se aninhava sob o mesmo lençol e me acariciava. Sentia-me seu casulo, embora por certas vezes o tenha empurrado, sentindo as náuseas da repulsa. Não era aquele o meu lugar, nem tampouco o meu gosto. Mas, um estranho no ninho não podia ter outra condição melhor de sobrevivência. Tinha que permanecer onde estava, bom ou ruim achasse. Quando o tempo passasse, saberia para onde deveria ir. As coisas mudam, o vento passa.
Os anos foram então engolidos destinicamente e, quando dei por mim, estava no antepenúltimo ano antes do diaconato escolhido por estranhos para mim. Tive que parar de enganar-me e refletir sobre a tolice que iria fazer. Procurei meu superior, o conselheiro espiritual da congregação, e lhe expus os meus mais verdadeiros sentimentos. Havia decidido não mais fantasiar meu destino.
-Não posso viver esta brincadeirinha. Cansei de tanta ilusão, tanto martírio.
-E só agora soube o que devia fazer? É tarde. Há um dever a ser cumprido. A ordem investiu em seu abandono e o fez gente. É assim que vai pagar-lhe?
-Não devo nem posso pagar pelo que nunca comprei. Foi-me esta a imposição que a vida me deu. Pagar..., culpado..., remorso..., não pode o senhor falar-me de tais absurdos. Puseram-me aqui sem me perguntarem o que preferia.
-Você se desmoralizará frente à sociedade. Será pior do que um impostor da fé!
-Prefiro assim!
-Então já está decidido?
-Estou, Monsenhor..., estou.
-Recolha-se aos seus aposentos e, amanhã logo cedo, às sete, vá até meu gabinete.
Ele foi tão mau que até os pouquíssimos pares de roupa que eu tinha, confiscou. Saí do seminário apenas com a do couro e a outra na mão, dentro de um saco plástico onde guardava as cartas obscenas que Davi me escrevia, nas inúmeras noites em que, aos prantos, varava a madrugada.
Negaram-me os certificados de conclusão dos cursos que havia feito. Tive que importunar a defensoria pública até conseguir o certificado de conclusão do curso de Filosofia. Comecei a lecionar em um colégio evangélico, onde passei a vomitar o ódio destilado e, mais uma vez, enganar e ser enganado. Não consegui ficar nele por mais de dois anos. Deixei tudo para trás e fui morar e trabalhar em Belo-Horizonte. Casei, fui pai de três crianças saudáveis e inteligentes. Voltei a frequentar minha antiga igreja, eu e minha
família. As outras não me apeteciam.
Para minha grande surpresa, no Natal do ano passado, quando fui à Igreja Matriz assistir à cerimônia de consagração de um bispo amigo da família de minha esposa, imaginem quem estava lá..., paramentado, cercado por outros religiosos: ele.
Acho a vida um grande oceano cheio de tempestades e sombras e valores e desvalores e tudo. A gente mede muitas coisas que vemos, para outras fechamos e para uma minoria delas, nem explicações buscamos; o homem tem um medo perverso dentro de si que se auto-acumula e flora e anda e cai numa imensa boca e às vezes fere, às vezes chora, às vezes vive, às vezes morre.
-Você é padre há quantos anos?
-Treze. E você, o que tem feito da vida?
-Casei, leciono Língua Portuguesa e História do Brasil. Vou levando a vida sem muita ilusão.
-Você tinha tudo para se tornar um novo Lutero.
-Não..., a inquisição é coisa do passado. Não enxergo na história do Cristianismo aquilo que acontece por desastre. Minha fé é a mesma de sempre, embora minhas idéias tenham evoluído muito.
-Que bom! Deus o abençoe!
Beijei sua mão e ainda senti um suave aperto da sua sobre a minha como se quisesse dizer-me: perdoe-me, não sabia o que fazia. Mas dentro do anjo também há um monstro e eu o vi diferente e dali arredei o pé e passei a evitar reencontros... reencontros..., porque eu sabia o que fazia, o que tinha feito e o mal ainda não havia se ido com o vento do esquecimento e por isso senti um arrepio de prazer e de medo. Apanhei a mão de minha esposa, puxei-a para fora da multidão que ali assistia à cerimônia e desviei meu olhar de tudo.
-Você está estranho...
-Sua impressão!
-Quem era aquele padre?
-Davi!
-Conhecia-o?
-Era dos tempos de seminário...
-Ele não tirou o olhar de nós.
-Esqueça-o, Ísis. A máscara cobre mais o homem do que este a ela.
-Não o entendi.
-Esqueça. Ser-nos-á melhor assim.