FANTASMA DE UM HOMEM VIVO

Na enorme sala da casa antiga em que morávamos quando pequenos, gostávamos de estar tocando violão e cantando à luz de lamparinas, eu e o meu tio mais novo, oito anos mais velho, quando não também acompanhados do meu irmão menor. Trata-se de uma casa de estilo português numa grande chácara situada uns cinco quilômetros a leste do Centro de São Leopoldo, construída, por certo, ainda no século XVIII. Os antigos contavam de muitos mortos que tinham sido velados naquela sala, também dos guarda-chuvas que giravam flutuando desde os fundos do terreno circundando a casa, sem contar a mula sem cabeça e o boi-tatá.

Tínhamos medo de andar na casa a noite desacompanhados de algum adulto, tanto que somente íamos de um cômodo ao outro levando uma lâmpada a frete para ver se não toparíamos com algum fantasma. Todavia, assim, na frente dos olhos, em vez de nos ajudar a enxergar, as luminárias impediam a visão. Portanto, se houvessem fantasmas, não veríamos.

Muitas noites de verão, juntamente com a Marli e a Martinha, nossas tias pequenas, ficamos a pular corda sob a grande amoreira em frente a casa. Enquanto isto, o Cirdo, nosso tio de dezesseis anos, que parecia não temer a nada, dedilhava o violão sentado numa cadeira junto ao tronco da árvore. Do meio da escuridão a lua cheia manchava de prata os arredores. Embora cansados e com sono, muitas vezes insistíamos em continuar até à meia-noite, quando entendíamos que o guarda-chuva girante, a mula sem cabeça e o boi-tatá apareceriam. Morríamos de medo que aparecessem, más tínhamos curiosidade de vê-los e pensávamos que se estivéssemos com algum adulto suportaríamos o medo.

Nosso tio Ivo, irmão mais velho do pai, era um tanto “indivíduo”, como o Anecildo o chamava. Gostava de viver isolado, passava muito tempo distante, tirando areia do rio para uma canoa, pescando ou trabalhando em alguma obra. Muito pouco ficava em casa e quando estava muito pouco ficava na cozinha ou na sala com os outros, mas no quarto lendo.

Certa tarde, entre os anos de 1974/75, saiu dizendo que iria para a beira do rio pescar e somente voltaria uma semana depois. Há muito ele contava sobre esse plano. À noite, após à tarde em que ele saiu para sua pescaria, eu e o Anecildo cantávamos ao som do violão no lado oriental da sala, quando a porta da frente abriu-se e por ela entrou o tio Ivo. Surpreso, o Cirdo perguntou se ele tinha desistido da pescaria. Ele, porém, nem mesmo olhou para o nosso lado, apenas seguiu em linha reta na direção do corredor. Corremos para alcançá-lo. Eu na frente, quase consegui pegar em sua camisa, e o Cirdo atrás, fazendo perguntas que não foram respondidas. Ele sequer se importou com nossa presença. Apenas seguiu intrépido rumo ao fim do corredor, onde desceu os dois degraus para o corredor transversal entre a casa grande e a menor, passando daí para a cozinha, fechando a porta logo atrás de si. Seguido ainda do Anecildo, pus a mão na maçaneta um segundo depois de ela ter retornado à posição normal e abri a porta, vendo a vó em pé no outro lado da cozinha junto ao fogão de lenha. Corri para o compartimento esquerdo da cozinha para ver se achava o tio Ivo, enquanto o Cirdo indagava da vó onde teria ido o “Individo”, que tinha entrado um segundo antes da gente.

Após a vó ter confirmado que apenas eu e o Cirdo tínhamos entrado na cozinha, lembrando que o tio Ivo fora pescar e não voltaria antes de uma semana, já tendo esquecido do episódio, voltamos a cantar ao som do violão na grande sala. Foi quando ouvimos ruído de carro aproximando-se da frente da casa aquém da porteira, ouvindo batidas na porta pouco depois. Ao atenderemos, vimos um táxi parado bem ali. Dele saiu o motorista que entregou-nos o tio Ivo tão bêbado que estava em estado de coma.

Wilson do Amaral Escritor
Enviado por Wilson do Amaral Escritor em 18/03/2008
Reeditado em 22/04/2008
Código do texto: T905981