O massacre da Tropa de Elite de Rietê

A inércia avassaladora invadiu-me o corpo, à mente e entrei numa espécie de desmaio. Senti o corpo lasso, a cabeça tombar e apaguei num átimo de segundo. Não sei se fiquei desacordado dez minutos ou dois segundos. Pelos acontecimentos que se seguiram, calculei que o estado de inconsciência não durou muito.

Tentei esfregar a cara com as mãos para melhor enxergar e compreender o que se abria ante os olhos. Em vão: eu não me sentia, não conseguia tocar-me ao próprio corpo. Feito grande lanterna, um facho de luz guiou-me o olhar à Castelo Branco e eu vi, mordaz, minha cabeça, feita tosca bola de molambo, rolando no asfalto! Ia rodopiando, bolando, saltando pequenos obstáculos, até despencar na ribanceira e atingir a contramão; e então esmigalhar-se debaixo do caminhão em alta velocidade. Restou do meu crânio apenas uma posta asquerosa, cravada no asfalto da rodovia, rodovia construída pelo ilustre conterrâneo.

Estupefato, tentei desvencilhar-me da nódoa vermelha e ver o derredor. Entre as ferragens retorcidas em chamas, avistei meu corpo derretendo-se em lingüetas de fogo a se precipitarem na poça gosmenta. As labaredas colossais consumiam tudo vorazmente. Vi também os meus amigos que nem tinham tempo de chorar ou sentir dor: as chamas os reduziam a nada antes que se percebessem!

Eu, então, ia acordando, compreendendo o ocorrido gradativamente. Mas ainda não me apalpava direito e não andava sobre o solo, flutuava no espaço, como se voasse, acerca de dez metros do chão.

Havíamos trombado com caminhão carregado de combustível que explodira no choque. O caminhoneiro fumado, cheirado, resolveu dar meia volta na rodovia e bateu de frente com o ônibus que nos levava ao Museu da Língua Portuguesa.

Era eu fechar os olhos e ver as manchetes nos jornalecos que cagam na língua: meia centena de GM’s de Rietê morrem carbonizados em desastre na rodovia Castelo Branco. O que diriam de mim, organizador da maldita excursão?

Um vento forte abriu a labareda gigante e avistei os escombros, a montanha de ferro retorcido, o que restou do moderno ônibus da Vale do Rietê. Sob esta, os trapos e farrapos de Guardas Municipais reduzidos a lama negra, asquerosa e, posteriormente, um amontoado de cinza fúnebre. Ganhando o espaço, caminhando sobre o nada, ao meu encontro, a fila de homens, atordoados, se perguntando o que havia acontecido:

- Estamos todos mortos! Olhem lá o fogo acabando de derreter o ônibus, nossos corpos... Foi praga da passiva que não convidei!

Abriu-se um berreiro só. Nunca vi tantos homens chorando ao mesmo tempo. Lamentavam a falta da mulher, filhos e da vida mundana. Eu estava preocupado com o motorista. Aonde teria se escondido? Já estávamos todos alí, sentado numa dessas nuvens mais baixas, enquanto o motorista: nem sinal! Foi então que o CD aventou:

-Vai ver ele não morreu.

E era verdade: voou sobre o caminhão e foi parar numa grande poça d’água, ao lado, e estava sendo resgatado pelos bombeiros: todo arregaçado, quebrado, queimado; mas, com vida! O único sobrevivente da tragédia que mandou a mim e a Guarda Municipal de Rietê ao quinto dos infernos.

Sobre a nuvem discutíamos o que fazer. Um grandão cheio de músculos chorava copiosamente porque não conseguia ir ao encontro da esposa – a única mulher com quem se deitara em vida, apesar de sofrer desconfiança diária. Sentia-se honrado, sentia macho, ante tal desconfiança. Antes ser policiado, vigiado, ter as roupas vestidas, cheiradas... Melhor do que a esposa tê-lo como cabação! Jamais conseguira fazer sexo fora do casamento e somente não se casara donzelão porque, quando menino, comera um viadinho, dentro de um barreiro cheio de água da chuva torrencial que atingira à região.

Os demais, matutavam, argüiam em profunda abstração. De quando em vez, um e outro diziam algo sem proveito que nem convém transcrever. Estávamos presos, sem que ninguém nos proibisse de prosseguir; estávamos mortos – porém conscientes – sem saber que rumo tomar. Então, um barulho abafado, um ruflo... Um ruflar de asas e o Querubim pousou alí, diante de nós. Bateu o pó das asas, reclamou da poluição desse mundo perdido e, todo afetado, colocou as mãos na cintura, jogou a bunda para o lado esquerdo, pôs o pezinho direito à gente, balançou a cintura e perguntou:

- São vocês as vitimas daquele acidente? – apontou para baixo na direção dos destroços que acabam de ser retirados da estrada.

- Sim – respondi.

- Então me acompanhem, por favor...

Perguntei a que lugar iríamos e ele, gentilmente, passou a explicar que passaríamos por uma triagem feita pelo Chefe; para nosso azar, o tal Chefe estava num dia péssimo. Havia brigado com o amigo e não estava para brincadeira. Para mandar um ao inferno, não pensaria duas vezes. Olhou de cima a baixo, fez uma cara de sindicalizado e perguntou:

- Por que você é diferente dos demais?

- Porque não sou Guarda. Eu só organizei a excursão.

- Refiro-me a sua cabeça quadrada – escutei risadinhas de escárnios entre os GM’s.

- É que sou de fora. Posso pedir um favor ao Querubim?

-Peça. Se eu puder e quiser atender...

- Em vez de me chamar de cabeça quadrada, poderia chamar-me CQ. É mais bonito.

- Tudo bem, CQ. Vou te encarregar de fazer o prontuário de cada um dos demais. Você tem letra bonita?

- Não tem computador? - perguntei assustado.

- A coisa por aqui piora a cada dia. Enquanto o inferno está equipado com o mais moderno da informática, aqui ainda é na caneta. Felizmente o chefe poder confirmar tudo num piscar de olhos... Ah, vou avisá-los: nem adianta mentir porque o Chefe sabe tudo. Poupem-lhe o trabalho respondendo-lhe a verdade pura, nítida, cristalina... Entenderam?

Abrigamo-nos num imenso salão ladeado de lindas nuvens, paisagens belas nos paredões, enfeites de outro e prata, anjos de vestes brancas, coroas e uma majestosa cadeira, o assento do Chefe, que em pouco tempo viria reger a triagem. Botemo-nos às conjecturas: quem iria direto para o inferno? Quem seria encaminhado à purificação no purgatório? Será que entre cinqüenta e tantos homens, algum iria direto para o céu? Chegara a hora da verdade!

Alvoroço no ambiente: o Querubim adentrou correndo e deu o alerta geral, dizendo que o Chefe se aproximava. Os anjinhos, aparentemente bem comportados, deixavam seus brincares e portavam-se como se de cera, mãos cruzadas à altura do peito, cada um no seu lugar e o olhar somente a dar conta de tudo o que acontecia no recinto.

Dentro de um manto enorme, enfeitado de lantejoulas, pedras coloridas, uma coroa cravejada de safiras, um cetro lindíssimo... E ocupou a cadeira imperial. Cruzou as pernas, lançou olhar fuzilante ao infinito, como que recolhendo o pescoço, aos saltinhos, inspecionou-nos a todos:

- Não tinham coisa melhor pra fazer do que morrer todos ao mesmo tempo?

- Tem um pedaço de nuvem preta no tamanco do Senhor? – avisei.

- Quem és tu, assombração?! – perguntou sacando do bolso interno um enorme leque multicolorido.

- É o CQ, Chefe. Morreu junto com os GM’s e eu o recrutei para preencher os formulários dos demais – atalhou o Querubim.

- Adorei o vestidão do Senhor! – falei ao Chefe.

- Que vestidão?! Aonde você viu vestidão aqui? Acha que sou homem de usar vestidão? Isto é o manto da justiça, meu bem! Vê se se enxerga, viu, CQ. Não fui muito com tua cara, não...

- Perdão, Chefe. Posso limpar o tamancão?

- Pode. Ham!

Fazia-me subserviente, entrado na confiança dele, mas, não suportava-lhe à arrogância. Escrutinava-lhe cada músculo do rosto e ao primeiro sinal de contrariedade, o desdito já estava na ponta da língua. Minha recompensa era uma ou outra risadinha que emanava de entre os Guardas. Muitos riram quando falei do tamanco e do vestidão.

Após limpar os tamancos ridículos do Chefe, entreguei-lhe alguns prontuários e retornei ao meu lugar. Ele segurou um prontuário, olhou-o de cima a baixo, torceu o canto boca e a colocou atrás do ultimo. E assim foi folheando alguns até escolher e chamar:

- Então é você? Olha, o inimigo anda me acusando de racista porque somente na Igreja Matriz de Itu existe um anjo negro. Preciso colocar uns aqui. Tua ficha não é nenhum primor. Mas eu estou precisando e tu vais ficar no céu. Querubim, leve-o e providencie vestes celestiais para este. Chame-o Jozé.

Em instantes, Jozé voltava à sala todo paramentado, dentro de um vasto camisolão branco, uma coroa na cabeça e as mãos cruzadas à altura do peito e o olhar tímido parecia grudado ao chão. Não houve um GM que não risse ou estampasse na cara um vestígio de deboche.

- Campos, Deni Campos... Vixxxiiii... Esse é um cabação! Não fuma, não bebe, não... Mais santo do que eu. Nem tente tomar meu lugar, viu?

Chamou o Querubim e deu a mesma ordem. Em seguida o Campos perfilou-se atrás de Jozé com a indumentária de anjo que lhe caiu muito bem. Fazia mil caras e bocas, já que lhe faltava arrojo para reclamar abertamente das roupas e tamancos ridículos, cafonas...

O Chefe, então, prosseguia: embaralhava as fichas como se procurasse uma específica:

- Aqui, este. Nossa!!! Que ficha suja, hein?

Saradinho deu um leve sorrisinho, quase cuspe de lado, encheu a mão e deu bela arrumada na mala. Alí, o Chefe grudou o lânguido olhar, feito ímã:

- Malha muito?

- Bastante.

- Vem comigo...

O Chefe dirigiu-se à janela, descerrou a cortina de nuvens e apontou longe:

- Está vendo o Bangalô?

- Aquele pintado de amarelo desbotado? – perguntou Saradinho.

- Tinta amarela desbotada, Bofe? Eu sou homem de pintar casa com tinta amarela desbotada? Aquilo é ouro, ouro fosco, tolinho...

- Desculpe.

- Topas morar uns dias comigo enquanto eu decido o que fazer contigo? Garanto arriscar a própria pele para tentar te ajudar... Não posso fazer nada escancaradamente. A oposição está em cima e por qualquer bobagem, abrem CPI.

- Topo qualquer parada – disse Saradinho.

- Ainda bem. Mandar-te ao Capeta é muito desperdício. Aquela maricona chifruda, fedida a enxofre, não te merece. Agora vai... Espera-me lá.

Querubim fingia não estar vendo nada. Eu, só de olho no movimento. Ele, o Chefe, voltou à cadeira nitidamente impaciente, reclamando da letra... Berrou ao Querubim:

-Trás aqui meus óculos que não estou enxergando nada. Losado, Lozando... Que letrinha maldita... Esse CQ não sabe escrever.

- Não adiante óculos, Chefe. O tempo está fechando, a escuridão avança... O senhor não precisa de óculos; a culpa e da nuvem negra. Por que não suspense a triagem e espera passar a cerração?

Acatou a sugestão e foi correndo para o Bangalô...

Aguarde cenas do próximo capítulo.